30/12/2006

Tiro nos miolos

Abraão estendeu a mão e agarrou a faca, para sacrificar o próprio filho. Mas, do céu, o mensageiro do Senhor chamou por ele: “Abraão! Abraão! (…) E Deus disse-lhe: “Não levantes a mão contra o menino; não lhe faças nenhum mal.(…)Abraão voltou-se e viu atrás de si um cordeiro que estava preso pelos chifres a um arbusto. Foi buscá-lo e ofereceu-o em sacrifício, em lugar do seu filho. Génesis, 22, 10-13

Todos conhecemos esta história que vem narrada no primeiro dos livros da Bíblia. Para os muçulmanos, que também entendem Abraão como seu fundador, este acontecimento transformou-se numa festa importante: a do Aid El Quebir que se celebra, anualmente, após o Ramadão, sendo a festa do sacrifício ou do cordeiro.

Dando cumprimento a uma sentença iníqua, o governo iraquiano enforcou, hoje, Saddam Hussein. Dificilmente poderia haver decisão mais estúpida: a festa do Aid El Quebir coincidirá, este ano, com a nossa passagem de ano! (1)


Este não é um tiro no pé, é um tiro nos miolos! Pode argumentar-se que foi uma decisão de muçulmanos, mas todos sabemos que ela só aconteceu devido à invasão ocidental do Iraque. E, embora haja iraquianos a comprazerem-se com a morte do seu tirano, muitos outros milhões por todo o mundo entenderão o acontecimento como intromissão dos cristãos em assuntos e terras islâmicos. Apesar de detestado por quase todos os muçulmanos do mundo, na sua morte, Saddam transformar-se-á em pretexto para agudizar as tensões religiosas do nosso tempo. Quem decidiu a sua morte e a data da execução tinha obrigação de pensar em tudo isto!

Reli, hoje, estas palavras que o ismaelita Faranaz Keshavjee publicou na véspera de Natal:


Já tinha ouvido o Aga Khan, o Imã dos Ismailitas, dizer numa entrevista recente que não se pode pensar em choque de religiões quando existe tanto em comum entre as religiões de Abraão. De resto, também o sr. cardeal-patriarca Dom José Policarpo recentemente o disse, que há muito mais convergências do que divergências nestas tradições religiosas. Agora, reflectindo sobre o que fiquei a conhecer, compreendo melhor o que isto quer dizer.Jesus é para os muçulmanos não só um Profeta mas também um Guia Espiritual que se demarcou de muitos outros tanto na forma como o Alcorão o descreve, enquanto um ayat (sinal) de Deus, mas também como um exemplo a seguir, na forma como os Evangelhos Muçulmanos proporcionaram o conhecimento sobre Jesus e moldaram a espiritualidade nas várias civilizações islâmicas. Jesus surge no Alcorão e nos Evangelhos (ditos) Muçulmanos como o Profeta do Amor; o Guia das virtudes cardinais: a Paciência, a Humildade, a Renúncia ao materialismo, o Silêncio. Jesus também aparece como o "obreiro dos milagres"; o "viajante"; o "arrependido"; o "Redentor". Jesus é para os muçulmanos o Selo dos Santos. Jesus, é o grande Sufi. Jesus também é muçulmano! (…)



Há uma semana, estas palavras pareceram-me uma porta aberta. Hoje, a náusea só me deixou sentir um nó na garganta.

(1) Pelos vistos não fui a única a dar importância à coincidência das datas. No seu editorial do dia 1 de Janeiro no DN, António José Teixeira faz notar isso mesmo.




17/12/2006

Acende-se Jesus

Acenda-se de novo o presépio no mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
Passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
Para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
Como a casca do ovo ao latejar-lhe a vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
Dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumo, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o presépio nas almas,
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

David Mourão Ferreira



Este poema de David Mourão Ferreira tornou-se, desde que o li pela primeira vez, no meu poema de Natal. Ofereço-o a quem me lê, muito embora não seja meu!

******************

Fui ler o Público depois de ter publicado o post. Um artigo de António Marujo intitulado "Quando Celebrar o Natal é Proibido" deixou-me uma sensação indescritível de mágoa, porque de perda. Transcrevo o início e o fim do artigo que vale a pena ler na íntegra (não há link disponível):

Espanha, Reino Unido e Estados Unidos com polémicas sobre comemorações natalícias para não ofender não-cristãos
Festas de Natal proibidas numa escola em Saragoça (Espanha) para não ofender crentes não-cristãos, empresas que não querem festas natalícias no Reino Unido, árvores de Natal removidas e depois recolocadas no aeroporto de Seattle (EUA) na sequência de polémicas sobre as decorações. O Natal, festa que comemora o nascimento de Jesus Cristo, está a ser limpo da sua raiz, com argumentos como o pluralismo e a laicidade.
(…)
Em Portugal, a Associação República e Laicidade resolveu protestar com a lembrança dos factos históricos que estão na origem do Natal. Em causa está a revista Professores do 1º e 2º Ciclos do Ensino Básico. No seu número de Dezembro, a publicação decidiu apoiar os professores que queiram desenvolver uma "Representação do Nascimento de Jesus". Citando excertos do texto sugerido na revista, a associação pergunta: "Quantos professores estarão habilitados para "trabalhar", para "analisar" e "aprofundar", com as crianças que têm sob a sua tutela pedagógica, as questões que aquele "simples" auto de Natal pode facilmente suscitar?"


Historicamente não me lembro de tal esquizofrenia, de tamanha onda suicida! É como se as árvores de uma floresta transformassem os galhos em mãos possantes e se arrancassem a si próprias pela raíz! Para tal mundo nem um "rico enterro" se pode augurar!

11/12/2006

O mestre e os discípulos



Li um livro que me foi emprestado. Gosto de ler livros emprestados, simplesmente, porque gosto de ler e comprar todos os livros que a minha ânsia exige seria incomportável. Assim, as bibliotecas e os amigos fazem o favor de permitir que sacie a minha sede. Eles nem sabem o tamanho do meu bem-hajam!

A Senhora Sócrates, de Gerald Messadié é um excelente romance aparentemente policial. Entenda-se: a Senhora Sócrates é Xantipa, esposa do filósofo Sócrates, ateniense do séc. V a.C. O texto é um excelente retrato de Atenas, mãe da democracia, aquela que excluía as mulheres de qualquer participação na vida da pólis. O autor propõe-se narrar toda a história segundo um ponto de vista feminino, ou seja, segundo a interpretação de Xantipa, pessoa de quem, na História, apenas conhecemos o nome. Claro que tudo resulta num relato crítico, mas esclarecido e correcto.

Sócrates foi mestre de Péricles, o homem que consolidou a democracia, nomeadamente acabando com o patronímio que, queiramos ou não, é sempre motivo de distinção social, pela positiva ou pela negativa. Atenas pagou a Péricles acusando-o do roubo de bens da cidade, mesmo usufruindo de todos os edifícios que se construíram a seu mando durante os 15 anos em que, sucessivamente, foi eleito estratego e devendo-lhe a derrota dos persas.


Os tempos a seguir à morte de Péricles foram conturbados: Alcibíades, seu protegido, foi eleito estratego. Alcibíades fora, desde menino, discípulo de Sócrates, nas suas andanças peripatéticas. Era belo, encantou o filósofo e ambos tornaram-se amantes. A par de Alcibíades (no estudo, entenda-se) outros discípulos rodeavam Sócrates, sendo Platão aquele que, no nosso tempo, mais destaque merece. Mas Alcibíades conduziu Atenas a uma guerra imperialista para a qual não tinha vocação. Julgado e condenado, fugiu e foi oferecer-se a Esparta, a maior inimiga da democracia que não perdeu tempo a voltar à guerra e a perpetrar pesadas derrotas a Atenas. Eu só não sei como é que ele, amante do luxo, conseguiu tragar o caldo dos espartanos, mas enfim… A verdade é que não respeitou a hospitalidade e envolveu-se amorosamente com a rainha. Apanhado, fugiu novamente e foi oferecer-se aos persas, ou seja: Alcibíades foi responsável por muitos anos de guerra mas, acima de tudo, é um grande traidor. Ainda regressará a Atenas, mas o seu ser não dá descanso a ninguém. Atenas, cansada da democracia, regressa a uma forma de tirania onde pontuam outros discípulos de Sócrates.

Ora, é aqui que bate o ponto, pois parece-me Gerald Messadié deixa uma acusação a Sócrates: foram os seus ensinamentos e os seus conselhos que formaram estes homens que são traidores ou tiranos ou defensores da tirania. Deixo no ar a mesma questão: é o mestre responsável pelos actos dos seus discípulos?

01/12/2006

1.º de Dezembro

Há algumas décadas que se perdeu, em Portugal, a ideia de povo. O povo iletrado, terceiro elemento do corpo social, foi substituído pela classe média ignara. Nunca Portugal esteve tão em perigo!

Ao longo destes oitocentos e sessenta e três anos de existência, sempre o povo primou por não ceder às pretensões hegemónicas, primeiro de Castela, depois, de Espanha, mesmo que a lei lhe não desse razão, como aconteceu em 1383. O povo pensou bem: os acordos insanos celebrados por um rei vaidoso e fraco não têm que condenar a Pátria. Exerceu, então, aquilo que os iluministas, muito mais tarde, viriam a designar por “direito à revolta”.

Em Santarém, em Junho de 1580 o povo, e só ele, proclamou D. António, Prior do Crato, rei de Portugal. D. Henrique, o cardeal-rei, falecera em Janeiro, velho e doente, acompanhando no destino as vinte e cinco mil mortes nacionais provocadas pela peste. Desde Abril do ano anterior que os pretendentes ao trono escreviam à coroa, a seu rogo, expondo os argumentos em defesa da respectiva pretensão. O velho rei nunca chegou a decidir. Decidiu o povo por ele! Mas o povo não tem armas, nem tácticas militares, nem dinheiro para subornos. Filipe II tinha e serviu-se em abundância!

Recebi de V.M. a três de Agosto e outra de D. Cristóvão em que me diz quanta mercê V.M. deseja fazer a esta sua casa; e só com entender a muita justiça que V.M. tem à sucessão destes reinos eu estava determinada de pôr por ela os filhos, estados e vassalos, com diferente gosto o farei agora que V.M. se mostra disso servido e mais ficando de novo obrigada com esta tão grande mercê e favor que V.M. me fez. (…) Meu filho beija os pés de V.M. Da Vidigueira a 5 de Agosto de 1579
Beija as reais mãos de V.M.
A Condessa da Vidigueira


*
Por último, direis ainda ao Sereníssimo Rei, meu tio, que pois o tenho no lugar de pai, me não negue o de filho primogénito, que me deram Deus e as leis; e considere atentamente nas misérias e calamidades públicas (…), obrigando-me a tomar outro caminho que não o da brandura, amor e liberdade, que proponho (…)

(Carta de Filipe II ao duque de Ossuna, seu embaixador em Portugal, escrita a 24 de Agosto de 1579 )

Nesta carta Filipe II fazia inúmeras promessas que repetirá nas Cortes de Tomar de 1581 em que será aclamado rei: que o herdeiro do trono será educado em Portugal; que teremos administração própria, moeda própria, lei própria, separação de impérios, mas que o império espanhol estaria aberto aos portugueses, enfim… haveria união dinástica mas não de reinos. Este é o pedacinho do cinismo que lhe fica bem a ele mas muito mal à nossa nobreza.

Cedo se constatou que tudo não passava de palavras, saindo à nossa nobreza o tiro pela culatra. Distantes da corte, tornámo-nos periféricos e a nossa nobreza tornou-se provinciana (veja-se Rodrigues Lobo e as “Cortes na Aldeia”). O povo tinha razão, mas a nobreza só se deu conta disso 60 anos mais tarde, porque deixou de ter o que pensava que teria.

Hoje, já o disse, não existe povo. Temos uma classe média que lhe não herdou o ser, e se consome na ânsia de ter. O pecado da nobreza atingiu as classes baixas. Hoje, qual aristocracia de há 623 anos e de há 426 anos, estes nacionais a nada mais aspiram senão a ser espanhóis. Porque lhes invejam o ter e se esquecem da História.

Amo profundamente a minha pátria, mas já não sei se amo os portugueses!

28/11/2006

Há dias!



Há dias em que a dor é tão intensa


que só sabemos gritar para dentro!



Dali, Persistência da Memória

26/11/2006

Cesariny



Ontem, saudades de um. Hoje saudades de outro - Mário Cesariny, poeta e pintor do surrealismo português.




Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos















ESTADO SEGUNDO

XX


Não houve

nunca

acima do mundo

a alegre aventura

de um sol militar


24/11/2006

Gedeão

Poema da Malta das Naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes, no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas prais de Portugal.


Rómulo de Carvalho faria hoje anos. O cientista e o professor são um com o poeta Gedeão que me acompanhou na descoberta da poesia. É dele uma das sínteses mais poderosas acerca do ser português: "provo-me e saibo-me a sal". Bem-haja por ela, uma vez que "não se nasce impunemente nas prais de Portugal."

23/11/2006

Apontmentos

Tem-se discutido muito sobre se a Europa pode manter o Estado social. Ora, eu pergunto-me é se a Europa o pode dispensar!

Estas são palavras que ouvi ontem, dia 22 de Novembro, ao Dr. e ex-Presidente da República, Jorge Sampaio. Não são textuais porque, como é meu hábito, cito de cor.

Já tinha saudades de ouvir uma voz de esquerda. Afinal, nem toda a gente se esqueceu do essencial. Que bem me fez ouvi-lo!

*

Também ontem, na RTPN, assisti a um debate sobre a TLEBS. Fraquinho e redundante, diga-se de passagem, já que a entrevistadora resolveu fazer as mesmas perguntas duas vezes, porque um convidado chegou atrasado. Depois da segunda ronda esgotou-se o tempo e tudo ficou por ali, que é como quem diz, com respostas por dar e com muitas perguntas por fazer.

Eu já tinha lido e não queria acreditar, mas ontem ouvi-o pelas vozes da Presidente da Sociedade Portuguesa de Linguística e do Presidente da Associação dos Professores de Português. Os grandes argumentos a favor da nova nomenclatura são os seguintes:

1 – os alunos não aprendem todos a chamar os mesmos nomes às coisas da gramática;

2 – nas escolas não se estuda, ou estuda-se pouco e mal, o funcionamento da Língua.

Estes senhores mereciam um valente chumbo em qualquer curso elementar de retórica e de dialéctica! Aqueles não são argumentos e, muito menos, convincentes. É preciso quase nada de inteligência e de bom-senso para os fazer cair pela base.

1 – Se os professores não ensinam, todos, aquilo que os programas exigem e a nomenclatura em vigor manda, que sejam mandados cumprir a lei e que as universidades, responsáveis pelos estágios pedagógicos, não aprovem a competência científica de quem fizer diferentemente!

2 – Ideia peregrina: como, dizem, não se ensina gramática nas escolas, a solução encontrada foi... inventar novos nomes para os nomes antigos! Então é por causa de ser criada nova nomenclatura que a gramática passa a ser ensinada? Se não fosse trágico estaria a rir-me!

Hoje deu-me para isto.

20/11/2006

A mão



A mão é condição de humanidade!

Que fez o símio para deixar de o ser? Libertou a mão da marcha e tornou-se um de nós!

Nada, na evolução humana, é tão revolucionário como este acto. O primeiro ser a consegui-lo fê-lo há pouco mais de quatro milhões de anos e, na nossa necessária mania taxinomista, ainda o classificamos como “macaco” (piteco); como vivia a Sul, chamámos-lhe “austral”. É, pois, o Australopiteco o ser revolucionário que se não conformou com a condição de quadrúpede, apesar de ter a inteligência dos símios. Teria, certamente, dentição omnívora, mas a fragilidade física condenava-o à condição de herbívoro e de presa na cadeia alimentar.

Com a libertação da mão veio a verticalidade, ainda rudimentar no Australopiteco, mas ambas conferiam-lhe vantagens: de, erguido por entre a savana, avistar os predadores e fugir a tempo; e de não deixar para trás os alimentos recolhidos. A sua mão, de que não precisa para andar e que vai adquirindo um polegar oponível, permite-lhe segurar as coisas. Abriga-se e, abrigado, pode continuar a alimentar-se. A mão é a sua arma.



A mesma mão que trouxe a verticalidade obrigou a coluna vertebral a deslizar: ninguém, que queira caminhar verticalmente, pode suportar o peso de um crânio a empurrá-lo para a frente, desequilibrando-o. A coluna passou a assentar na base do crânio, permitindo-lhe que crescesse. Primeiro ganhou nuca; depois ganhou testa e depois cresceu em altura e, em cada etapa, ia aumentando a sua capacidade e a inteligência. Estas coisas aconteceriam mais tarde, com outros seres que estão na linha da evolução humana, mas tudo isto, desde os primeiros utensílios – os rudimentares seixos quebrados – até ao programa espacial dos nossos dias, só foi possível porque um ser, há quatro milhões e duzentos mil anos, decidiu que era melhor andar sobre dois pés.

Sem mão não haveria humanidade. Nem alimento semeado, nem poesia, nem esta quadra do Torga:

Foi a mão, como um ralo a semear
Que me disse que sim, que acreditasse
Que a vida é um poema a germinar
E portanto, cantasse.

17/11/2006

Neandertal

Podia passear-se entre nós. De calças de ganga, t-shirt desfraldada e boné na cabeça, ninguém daria pela diferença. Seria baixote, espadaúdo e cabeçudo, com arcadas supraciliares salientes e queixo recuado: quem não tem amigos assim?


O Homem de Neandertal, no entanto, não é um de nós. Assim ficou provado pela descodificação do seu ADN mitocondrial.

Há revelações científicas que entristecem. Esta entristeceu-me, porque me habituei a estudar os artefactos produzidos pelo Homo Sapiens Neandertalensis, a mirar-lhe os ossos, a tentar perceber-lhe o modo de vida… e a querer-lhe bem. Em tudo me convenci de que era um ancestral e que as diferenças no esqueleto se deviam a etapas distintas de evolução. Com toda a propriedade, era um sapiens, e com toda a certeza era um ser religioso porque sepultava os seus mortos, embelezando-lhes o corpo com ocre e cobrindo-os com pedras. Isso, acima de tudo, faz dele humano. Outro, que não um de nós, mas não menos que nós!



As primeiras ossadas apareceram antes de Darwin ter publicado As Origens das Espécies: primeiro na Bélgica (1833) e depois em Gibraltar (1848), mas ninguém lhes ligou meia. Em 1855 acharam-se aquelas que viriam a dar o nome à espécie, no vale (Tal) do Neander, na Alemanha, faz este ano 150 anos mas, de início, a comunidade científica interpretou-o como um ser humano deficiente. Só muito mais tarde, à medida que as teorias evolucionistas ganhavam credibilidade, é que se começou a dar-lhe importância.

Sabemos que viveu até há 30 000 anos e que o seu último refúgio foi a Península Ibérica. Pensou-se, devido à semelhança física, que se poderia ter cruzado com o Homo Sapiens Sapiens (Cro-Magnon, na Europa), e até se encontraram esqueletos que comprovavam tal hipótese, como a criança do Lapedo em Portugal e mais outros, na Croácia. Que isso não é verdade, é o que nos dizem agora os biólogos. Como contra factos não há argumentos, teremos de começar a tecer novas hipóteses para as ossadas que conhecemos, embora haja arqueólogos e paleontólogos que põem em causa as conclusões dos testes porque eles só permitiram recuar até há cem mil anos.

Não tendo havido cruzamento de espécies, o Homem de Neandertal passa a integrar o grupo dos hominídeos sem sucesso. Sobre a minha mesa pesam, agora, duas perguntas: extinguiu-se por si (por inadaptação, pelas mudanças climáticas que houve e provocaram alterações no seu habitat) ou extinguiu-se por ser incapaz de competir com a nova espécie que chegou aos lugares que ele ocupava? É verdade que a utensilagem lítica do Homem de Neandertal, sendo muito variada (lâminas, furadores, raspadores, pontas de lança, machados…) praticamente não evoluiu ao longo dos 150 000 anos da sua presença na Europa!



Tal como o Neandertal, o Sapiens saiu de África e dirigiu-se para a Ásia e para a Europa. De início, os utensílios que este fabricava eram semelhantes aos do primeiro, mas rapidamente foram aperfeiçoados e outros foram inventados, permitindo-lhe, por exemplo, caçar à distância e com maior eficácia devido ao uso do propulsor. Caçava sem se expor demasiado e, em competição, quem caça à distância não corre o risco de espantar a caça nem de ser ferido por ela. Quem não dispõe destas armas perde a capacidade de sobreviver e parte em busca de novos territórios, enquanto o mar lhe não barrar o avanço. O litoral português, sabemo-lo, foi o último refúgio do Homem de Neandertal.


Houve, afinal, segundo Génesis?

10/11/2006

Numa véspera de S. Martinho

Os transmontanos não podem exercer cargos públicos: médicos, professores, advogados, etc. perderão os postos de trabalho.
Nenhum estudante transmontano poderá frequentar escolas do Estado Português.
São proibidos os casamentos entre transmontanos e cidadãos portugueses.
Os transmontanos não têm direito à nacionalidade portuguesa.
Os transmontanos não podem residir em Portugal.

Este texto pode parecer um rematado disparate: caberá na cabeça de alguém amputar o país de parte significativa dos seus nacionais? A resposta é um trágico sim, se substituirmos Portugal por Alemanha e transmontano por judeu. São os vergonhosos decretos de Nuremberga, citados aqui no seu espírito, não na sua forma, e datam de 1935. Entre 1935 e 1938 estes decretos foram regulamentados aos poucos, que é como quem diz, esmiuçou-se a possibilidade da perfídia. Por exemplo, todos os judeus foram obrigados a declarar cada um dos seus bens; as suas lojas e escritórios, mesmo que minúsculos, tinham de estar criteriosamente assinalados com a estrela de David para que nenhum não judeu lá entrasse ao engano, a mesma estrela que eram obrigados a trazer na lapela; os judeus perderam o direito legal ao inquilinato; para eles foram criados passaportes especiais em cuja capa figurava um "J" acusador e, que subtileza, cada nome próprio de cada judeu foi acrescentado: Sarah, sendo mulher; Israel, sendo homem.

O cadastro dos judeus e as suas lojas e escritórios assinalados foram o ponto de partida para a ignomínia que se avizinhava: a “noite de cristal”, meticulosamente preparada por Goebbels, chefe da propaganda nazi.

Na noite de 9 para 10 de Novembro de 1938, por toda a Alemanha, Áustria (já anexada) e Sudetas (territórios já conquistados da Checoslováquia), as lojas dos judeus foram pilhadas, as suas casas assaltadas, as sinagogas incendiadas e as obras de autores judeus queimadas em pilha monstruosa, numa orgia de horror. Seria o primeiro dos muitos progroms que estariam para breve. O saldo, por alto, foi o seguinte:

100 mortos e milhares de feridos
30 000 capturados e enviados para campos de concentração
2 000 sinagogas incendiadas
Vários cemitérios e escolas vandalizados
8 000 lojas pilhadas e destruídas
Incontáveis volumes da mais rica literatura e filosofia mundiais reduzidos a cinzas.

Nem precisaram de queimar a Bíblia, porque era o próprio Cristo quem ali ardia!




Entrada da Universidade de Erlangen (9/11/1938). Em cima, um cartaz anuncia a interdição da entrada a judeus. Mais abaixo, uma faixa apela à filiação no Partido Nazi

07/11/2006

Corrupção

Será a corrupção um mal nacional? Será que se aplica à corrupção a máxima que usamos em tom de brincadeira: "não é defeito, é feitio"?

Vem isto a propósito daquelas classificações que alguns organismos internacionais fazem. Desta vez foi sobre índices de corrupção, tabela em que ocupamos lugar de destaque. Este assunto já foi tratatado pelo Jorge Guedes em O Sino da Aldeia, pelo que me abstenho de o abordar pelo mesmo prisma. Sendo assim, deixo aqui dois poemas de duas épocas distintas e que podem ajudar à reflexão.

Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado,
porque fiz lealdade; enganou-m'i o pecado.
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.

Se traiçon fezesse, nunca vo-la diria;
mais, pois fiz lealdade, vel por Sancta Maria,
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Per mia malaventura tive um castelo en Sousa
e dei-o a seu don' , e tenho que fiz gran cousa:
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Per meus negros pecados, tive un castelo forte
e dei-o a seu don' , e ei medo da morte
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Diego Pezelho (jogral)

Este poema integra o chamado ciclo da entrega dos castelos. Não me vou alongar em grandes explicações históricas, mas é importante esclarecer que, tendo D. Sancho II sido excomungado pelo papa, este ordenou que o trono de Portugal fosse entregue a seu irmão, D. Afonso III e todos os cidadãos nacionais ficavam desobrigados do dever de obediência a D. Sancho. Pior: quem se lhe mantivesse fiel incorria em risco de excomunhão. Os alcaides dos castelos eram figuras importantes devido ao papel essencial que desempenhavam na defesa do território nacional e a relação que estabeleciam com o rei era uma relação de vassalagem, ou seja: os laços que os uniam eram pessoais e baseavam-se na confiança mútua. Muitos alcaides, como o que é referido no serventês, recusaram-se a faltar à palavra dada a D. Sancho. Mas era o poder que lhes exigia que assim fizessem! Portugal entrou num tempo muito complicado.

O poema seguinte data do séc. XIX. Não se lhe conhece o autor e costuma ser integrado na poesia popular. Data do reinado de D. Maria II. Diz assim, de forma eloquente:

Quem diz que é pela rainha
não precisa de mais nada
embora roube à vontade
ninguém lhe chama ladrão
todos lhe apertam a mão
é homem de sociedade!

Acima da pobre gente
subiu quem tem bons padrinhos
de colarinhos gomados
perfumando os ministérios
é dono dos homens sérios
ninguém lhe vai aos costados!

Nota: José Afonso musicou este poema.

06/11/2006

Os crimes da Sadam

É impossível enumerar todas as vítimas do tirano. Hoje recolhi os dados fornecidos pelos jornais. Estes dados não incluirão todos os crimes, mas são comprovadamente verdadeiros e fundamentam as acusações pelas quais Sadam Husseim e outros criminosos estão a responder.

1982 - 399 pessoas foram detidas e torturadas. Destas, 148 seriam executadas, na sequência do atentado contra Sadam Hussein. As vítimas são todas da terra ou da família do organizador do atentado

1988 - 5 000 curdos são mortos em ataque químico contra Halabja

Década de 1980 - 180 000 mortos curdos na sequência da sua deslocação forçada do Norte para o Sul do Iraque. A morte por inanição era frequente.

Década de 1990 - Repressão sangrenta da revolta no Sul (Xiita) após a expulsão das tropas iraquianas do Kuwait.


Sadam Hussein, ontem, foi condenado pelo primeiro caso citado. As leis do novo regime talvez não permitam que venha a responder pelos restantes. Será enforcado antes disso.

É importante que se olhe às datas, para se reparar na omnipresença dos anos oitenta. O Iraque estava em guerra com o Irão (já então, entre outras, pela questão curda!) e era apoiado pela Arábia Saudita, EUA e, curiosamente, também pela URSS (o Irão contava com o auxílio da Síria e da Líbia). Entre 1981 e 1993 os EUA têm na presidência Ronald Reagan e Geoge Bush. Os crimes de Sadam, apesar de sobejamente noticiados e documentados, não lhes perturbam o sono. Apoiam-no. É por esses crimes, de quando era aliado contra o “eixo do mal”, que Hussein está, agora, a responder. Que nomes estão omissos na lista dos réus?

05/11/2006

Mais corpos sem vida

Saddam Hussein foi condenado à morte. Ele e mais dois outros cúmplices da sua mania assassina. Sadam umas vezes fuzilava, outras vezes lançava gases tóxicos. A sentença que saía do seu pensamento, assinada por sua mão, era sempre a mesma: morte.

Sadam Hussein foi condenado à morte. O pensamento de alguém assim o determinou; as mãos de alguém assim o assinaram. Porque é que estes têm razão? Porque é que o pensamento destes e o gesto destes é diferente do pensamento e do gesto de Sadam?

O corpo de Sadam e o corpo dos que assassinaram em seu nome serão corpos somados aos outros corpos mortos. Mas a morte de Sadam vai outorgar-lhe a auréola das vítimas. Outra coisa, que não a verdade e a justiça, lucrará com o seu enforcamento. A democracia sairá a perder: quem não a conhecia, ficou a saber que ela também é capaz de matar. Que a distingue?

Digo isto porque não me apetece escrever sobre a barbaridade que é o enforcamento. Até na escolha do modo de matar, quem perde é a democracia. Da humanidade nem se fala!

03/11/2006

Abandono

O peso do céu abateu-se sobre a terra em bátegas longas, repassando os corpos de quem se via obrigado a enfrentar a rua. O brilho intenso dos relâmpagos assustava os meninos que, ao ribombar dos trovões, escondiam a cabeça como fazem os passarinhos. Os estados da atmosfera são, para os garotos dos subúrbios, a única face da natureza que lhes é permitido conhecer. Por isso não lhe têm amor.

Em muitas escolas do nosso País, milhares de crianças, estando dentro da escola, vêem-se obrigadas a enfrentar os elementos para mudarem de sala: os passadiços cobertos são fingimentos inestéticos de quem, sabendo que não, quer mostrar que criou condições de estar. A roupa das crianças absorve a água que o corpo há-de secar, num processo que se repete de hora e meia em hora e meia, quando não é de três quartos em três quartos de hora. Algumas escolas são constituídas por numerosos pavilhões – seis, sete, nove… – dispersos por terrenos de declive acentuado, estando os diferentes níveis ligados entre si por vários lanços de escadas. Estas escolas desconfortáveis são, frequentemente, o único lugar de carinho e atenção para muitos meninos.

Comecei o artigo pela descrição do dia de hoje. No dia de hoje, o António entrou na minha aula, encharcado como os outros, mas com um pé calçado e outro descalço. O António é um menino doente mas a família, por ter alguém ainda mais doente do que o António, rejeita a ideia da sua enfermidade. Ao fazê-lo, nega-lhe a hipótese de tratamento e invalida-lhe o futuro.

- António, tu não podes andar descalço porque ainda adoeces!
- Eu não sou António! Sou Joaquim!
- Mas tu chamas-te António!
- Não! Chamo-me Joaquim. Joaquim é o meu primeiro nome!

Mas não. Joaquim é o seu segundo nome, embora eu aceitasse calmamente a sua decisão enquanto ele insistia que se não podia calçar porque tinha uma ferida sobre os dedos do pé. O próprio pai, que o levara de carro até à escola, achara que essa era a melhor solução. Foi então que a tragédia do António se materializou perante mim. Abandono!

Hoje vim doente para casa.


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Naturalmente, António Joaquim é nome fictício.

29/10/2006

Vamos por partes IV

Uma pessoa pensa que está a fazer uma grande coisa, mostra-a ao mundo, e o mundo não dá por ela. A coisa feita existe ou não? Dito de outro modo: a realidade existe por si própria ou existe, apenas, na medida em que é conhecida? E conhecida por quem, dado que é impossível todas as pessoas da Terra terem conhecimento de todas as coisas?

Estas são algumas das perguntas mais banais que a Filosofia se faz, mas que exigem reflexão profunda e um adequado conhecimento do si em si e do si integrado no mundo, compreendendo e compreendendo-se. A Filosofia obriga a pensar, impele à organização do pensamento estruturante do ser e conduz à compreensão da realidade que é múltipla.

Algumas das respostas às questões com que iniciei este artigo são dadas pela História, mas serão sempre insuficientes se não forem abordadas do ponto de vista epistemológico que só a Filosofia permite. Hoje, mais do que ontem, porque a História, quando os jovens começam a ser capazes de pensá-la, é de acesso restrito a poucos e, dentro destes, somente àqueles que se não guiam pela lei do menor esforço. Os programas de História do segundo e do terceiro ciclos do ensino básico são bons programas, mas a realidade transforma-os em caricatura atendendo ao tempo ridículo que é atribuído à disciplina. Nada se ensina, nada se aprende, porque não há tempo para fazer mais nada senão aflorar os assuntos. Por culpa própria, a Geografia transformou-se em coisa nenhuma, porque fala de tudo menos do que importa à ciência ela mesma. Se as disciplinas fundamentais para a compreensão do indivíduo em si (História) e no meio (Geografia) estão transformadas na aridez do vazio, não é de espantar que os senhores que decidem tenham optado pela exclusão da Filosofia no ensino secundário. Quem faz as transformações no ensino, e arrogantemente lhes chama reformas, sabe pensar e sabe inferir as consequências das decisões que toma, por isso, tal decisão é pragmatismo puro! Os tribunais deveriam julgar os seus mentores por traição à Pátria!

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Aqui há dias criei um neologismo. Dizer que fiquei contente comigo própria é dizer pouco. Está publicado nestas minhas páginas, mas ninguém reparou nele (ou terão pensado que era gralha...)! E se, daqui por algum tempo, alguém com visibilidade utilizar a palavra que criei?

O resalgar nos rimances

Embora o tempo seja de semear, vou falar aqui de tempos de colheita.

O trabalho da segada (ceifa), por ser tão árduo, era acompanhado por cantigas que, mais do que animarem os segadores, serviam para marcar o ritmo da labuta. São as cantigas da segada cujo poema, de temas muito muito variados, pode adequar-se às horas do dia e constitui o rimance. A música é, quase invariavelmente, a mesma para todos os poemas. Meu pai ensinou-me umas quantas, algumas no meio de muitos risos por serem tão marotas!

Os rimances podem organizar-se por grandes temas de que destaco, por exemplo, o de Santa Helena (outra, que não a mãe de Constantino). Tal como acontecia na Idade Média (grande parte delas vem, precisamente, desses tempos), uma cantiga tem sempre muitos autores e, numa, misturam-se versos de outras, sendo difícil discernir qual delas é a primeira.

Vem tudo a propósito dos resalgares cujo veneno é sobejamente conhecido dos transmontanos.
Santa Helena era a filha mais nova de um pai abastado (ela bordava em seda). Um cavaleiro, depois de receber pousada em casa do pai de Santa Helena, rapta-a e assassina-a. Sobre a sepultura da vítima alguém constrói uma capela. Passados sete anos, o cavaleiro regressa e pede perdão a Santa Helena. O desenlace da cantiga é eloquente:

- Perdoa-me ó Santa Helena serei eu o teu romeiro
domingos e quintas-feiras durante um ano inteiro.

- Como te hei-de perdoar, meu lobo, meu carniceiro
fizeste-me a mim como o lobo faz ao carneiro!

O tema de Santa Helena foi colado à cantiga que se segue, mas de cujo início meu pai se não recordava já. Ei-la, tal e qual ele ma ensinou, afirmando que se cantava à hora da merenda:

- Apeia-te ó cavaleiro, que te darei de merendar.
- Que tens tu ó D. Eugénia, que tens tu para me dar?
- Tenho queijo de sete anos para te dar a provar.
Tenho vinho d'outros sete para te dar a fartar.
Cavaleiro bebeu o vinho e começou-se a agoniar:
- Que fizeste ao teu vinho que me fez tanto mal?
- Deitei-lhe cobrinhas vivas e o sumo do resalgar.
Arrebenta, arrebenta cavaleiro, acaba de arrebentar!
Cavaleiro arrebentou, ela cobriu-o com folhas do mato
(...)
Perdoa-me ó Santa Helena, serei eu o teu romeiro
Domingos e quintas-feiras durante um ano inteiro.



O resalgar, pode ver-se, tem má fama e bom proveito dela.

Nota: para evitar consulta constante do "Brègancês" escrevi os poemas de acordo com a norma do Português corrente.

28/10/2006

Roquelhos

Surgem no tempo da castanha. As terras, amaciadas pela chuva, deixam que eles venham à superfície sem lhes macular a carne. São roquelhos, nome genérico que os bragançanos atribuem aos cogumelos.

Há roquelhos de sabor tão delicado que só permitem uma passagem breve pelas brasas que os tisnam e lhes fazem emergir a água de que são compostos. As rocas e as carneiras são dois dos cogumelos mais comuns por terras de Bragança e podem servir de almoço (jantar por aquelas bandas) àqueles que não querem interromper a apanha da castanha para irem comer a casa.

Quem é da terra sabe: roquelhos há-os de muitas espécies e bondades, e que os forasteiros se não deixem seduzir pela beleza porque, normalmente, é chamariz de incautos.

As ilustrações dos contos infantis, vá lá saber-se porquê, quando representam cogumelos pintam-nos de vermelho manchados de bolinhas brancas. São os resalgares!


O resalgar é lindíssimo embora, comprovadamente, seja uma das espécies mais venenosas. Por esses campos fora, quem os vê, só lhes toca com a biqueira do sapato, porque um leve roçar de mão, que distraidamente se leve à boca, pode ser fatal. Nunca vi nenhum bicho tomar-se de amores por ele, provando que conhecem, por herança, a eficácia do seu veneno.







Mas o malvado, mesmo à nascença, é tentadoramente atraente!

23/10/2006

A castanha


Em ano de pouca bolota de carvalho, o porco montês faz pela vida e atira-se às castanhas. Os ratos encontram nelas refasto abundante, os esquilos roubam-nas... enfim, o tempo da castanha é de festança para a bicharada e o dono dos castanheiros tem que competir com os seus irmãos bravios, para ter acesso ao seu quinhão. Por isso, faça chuva ou sol, esteja a temperatura amena ou o aço da geada tolha os movimentos, não há dia inicial de Novembro em que, debaixo da copa de um castanheiro, se não veja alguém ajoujado, depenicando com os dedos cada uma das castanhas. Uma soma-se a outra, enche-se uma cesta que se despeja na saca que, quando puder ser, há-de carregar-se até abrigo seguro.


É árduo o trabalho da apanha da castanha. No chão, os ouriços escondem algumas por baixo da sua carne de espinhos, e há que afastá-los; outros caem fechados e há que desouriçar. Ferem-se as mãos e cada músculo do corpo sofre do esforço de estar submetido, por tempo tão longo, a posição tão pouco natural. Mas ver encher a cesta e reconhecer em cada castanha apanhada o toque das nossas mãos dá tamanha satisfação, que a toda a dor se ultrapassa e todo o desconforto se justifica!

O ouriço é a flor feminina do castanheiro. A masculina ainda lá está (seg.ª fotografia), discreta, por detrás das folhas, esperando que o vento a transporte até ao chão.

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Muitas castanhas não chegam a desenvolver-se. Chamamos-lhes "folecras" (vêem-se algumas na primeira fotografia); os negociantes intermediários servem-se disso e descontam 2% no peso final que têm que pagar. Ou seja, por cada 1000Kg, o produtor recebe o dinheiro de menos 20Kg. Os consumidores fiquem alerta e peçam, no quilo que compram, os vinte gramas a mais a que têm direito. É tudo uma questão de equidade, pois o intermediário já lucra de sobejo com a desproporção entre o preço a que compra e o preço a que vende. Só para se fazer uma ideia: no ano passado, o produtor vendeu a colheita a preços que oscilaram entre os noventa cêntimos e um euro por quilo, mas o consumidor pagou o mesmo quilo a mais de quatro euros!

19/10/2006

Margatoso


É um castanheiro e a sua longevidade dá-lhe o direito a ter nome próprio: Margatoso. Nunca recebeu enxertia mas, para assar, nenhuma castanha é melhor do que as dele. Por isso minha mãe fazia questão de guardar delas para consumo de sua casa. Pertenceu a meus pais que o receberam de meu avô. Meu avô nasceu nos idos anos oitenta do século XIX e já recebeu este castanheiro a produzir boa castanha. Agora é meu. Mais do que centenário, perdi-lhe a conta de quem o plantou e o das gerações a quem sua beleza seduziu.









Ei-lo: visto de Poente ...













... de Sul ...







...e de Norte. Do lado Norte crescem-lhe lampos, uns vindos da própria raiz, outros nascidos de castanhas perdidas que germinam no húmus feito de ouriços e folhas apodrecidas.




Protegido dos ventos pelos lampos novos, o tronco abriga outras colónias e, dele, nascem cogumelos como este a que chamamos línguas de boi.

De qualquer lado que o miremos, o Margatoso é belo e imponente. Magnífico!

17/10/2006

Scarborough Fair



Are you going to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary and thyme
Remember me to one who lives there
For once she was a true love of mine


Have her make me a cambric shirt
Parsley, sage, rosemary and thyme
Without no seam nor fine needle work
And then she'll be a true love of mine

Tell her to weave it in a sycamore wood lane

Parsley, sage, rosemary and thyme
And gather it all with a basket of flowers
And then she'll be a true love of mine

Have her wash it in yonder dry well

Parsley, sage, rosemary and thyme
Where water ne'er sprung nor drop of rain fell
And then she'll be a true love of mine

Have her find me an acre of land

Parsley, sage, rosemary and thyme
Between the sea foam and over the sand
And then she'll be a true love of mine

Plow the land with the horn of a lamb

Parsley, sage, rosemary and thyme
Then sow some seeds from north of the dam
And then she'll be a true love of mine

Tell her to reap it with a sickle of leather

Parsley, sage, rosemary and thyme
And gather it all in a bunch of heather
And then she'll be a true love of mine

If she tells me she can't, I'll reply

Parsley, sage, rosemary and thyme
Let me know that at least she will try
And then she'll be a true love of mine

Love imposes impossible tasks

Parsley, sage, rosemary and thyme
Though not more than any heart asks
And I must know she's a true love of mine

Dear, when thou has finished thy task

Parsley, sage, rosemary and thyme
Come to me, my hand for to ask
For thou then art a true love of mine

Este é o poema integral de uma canção imortalizada por Paul Simon e Art Garfunkle. O poema data do fim da Idade Média em Inglaterra e, pela sua temática, certamente não foi escrito por gente da nobreza.

Scarborough Fair era uma cidade mercantil que, talvez por essa razão, tinha leis severíssimas contra o crime e qualquer desvio era imediatamente condenado, e o acusado enforcado sem demoras. Ainda hoje, em Língua Inglesa, “Scarborough warning” significa “sem aviso”.

A primeira quadra é um primor de duplos sentidos. Pergunta-se a alguém se vai para Scarborough Fair (vai fazer comércio ou vai morrer?) e diz-se que nessa cidade vive alguém a quem se amou muito (já morreu?).

O poema é de uma beleza imensa. Ao viajante é pedido que transmita, à amada, os pedidos de quem a ama. E que pedidos! Que mundo de sonhos! Que ideal de mundo! Que ideia de paraíso! Confesso que, devido à ideia de perfeição que transmite, uma das minhas preferidas é esta: Have her make me a cambric shirt / Without no seam nor fine needle work. Pede-se o impossível e, candidamente, confessa-se: Love imposes impossible tasks / Though not more than any heart asks. Mas porque o amor exige tanto, também é capaz de dar o mesmo em troca, assim se compreendendo a repetição do segundo verso: Parsley, sage, rosemary and thyme”(1): enche-te de coragem, recorda o nosso amor e alcançaremos o bem-estar e uma vida longa (eterna?). O poema é de teor nostálgico. Referir-se-á o poeta à sua amada morta, imaginando o reencontro na eternidade? Mas é belo, muito belo, mesmo se dele não compreendi nada!


Simon canta, com algumas adaptações, apenas as quadras assinaladas com cor mais escura e aproveita para transformar a canção em manfesto contra a guerra do Vietname. Fá-lo, acrescentando às três últimas quadras, os seguintes versos:


Tell her to make me a cambric shirt
On the side of a hill in the deep forest green
Parsley, sage, rosemary and thyme
Tracing of sparrow on snow crested brown
Without no seam nor fine needle work
Blankets and bedclothes the child of the mountain
Tthen she'll be a true love of mine
Sleeps unaware of the clarion call

Tell her to find me an acre of land
On the side of a hill a sprinkling of leaves
Parsley, sage, rosemary and thyme
Washes the grave with silvery tears
Between the salt water andthe sea strand
A soldiers cleans and polishes a gun
Then she'll be a true love of mine

Tell her to reap it with a sickle of leather
War bellow blazing in scarlet battalions
Parsley, sage, rosemary and thyme
Generals order their soldiers to kill
And gather it all in a bunch of heather
And to fight for a cause they've long ago forgotten
Then she'll be a true love of mine


Há ideias boas e muito bem conseguidas.
Nota: sem esperar por pedido expresso à oferta que fizera em comentário, o Jorge Guedes teve a gentileza, mais do que me ensinar, de me enviar já tudo prontinho. E a música soa, pelas suas mãos.
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(1) As plantas referidas estão associadas, respectivamente, às seguintes propriedades: salsa: alívio da dor; sálvia; força e longevidade; rosmaninho: amor e memória; tomilho: coragem.

15/10/2006

Salazar e a censura

Há tanto por onde aprender!

No seu Abrupto, Pacheco Pereira tem vindo a publicar documentos inéditos sobre a censura em Portugal. Atribuiu à secção o seguinte título:

PARA SE COMPREENDER O PORTUGAL DE SALAZAR E O PORTUGAL QUE FEZ SALAZAR

O último documento que reproduz (e que está aqui em baixo), diz-nos o historiador, foi retirado "Do boletim confidencial dactilografado da Direcção Geral dos Serviços de Censura à Imprensa - Boletim Diário de Registo e Justificação dos Cortes , secção "Questões de ordem moral", de Junho de 1935":



Pela amostra ficamos a saber, em primeiro lugar, que os censores escrevem calinadas grossas. Depois, percebemos que não se pode noticiar a violência, nem sequer a simples tragédia individual, como o desaparecimento de dois menores. Em terceiro lugar proibe-se, por imoral, a alusão ao aparecimento de novos costumes femininos (aprender a conduzir automóveis) e uma crónica que tenta, ironicamente (embora lhe reconheça pouca graça e elegância), criticar o modo de vida de alguém da classe média.

Dito de outro modo: o país que a censura permitia que fosse noticiado era o país do faz-de-conta, tão irreal como o das fábulas, país sem miséria, sem sofrimento, pacatamente vivendo de acordo com a moral (?) que, cada censor, supunha a moral adequada e própria. Era assim que não havia suicídios, que os portugueses não tinham que emigrar e que havia pleno emprego. Estes mitos estão de tal modo enraizados na mente colectiva que é muito difícil ultrpassá-los, por isso é forçoso concluir: a censura moldou-nos de tal maneira que, nos seus efeitos, está a obra principal de Salazar e que o mantém presente e vivíssimo, passados 36 anos da sua morte e 38 do seu afastamento do poder.

Ao iniciar este tema, Pacheco Pereira referiu uma meia-verdade: de que a censura era anterior a Salazar, vindo da I República. É verdade que a República aplicou a censura, mas fê-lo somente nos anos da Grande Guerra e os jornais podiam deixar em branco o espaço das notícias cortadas, ficando o público informado do corte (possibilidade negada com Salazar, o que obrigava as redacções a autênticos malabarismos). Mal acabou a guerra regressou a liberdade de imprensa. A lei da censura foi a primeira decisão tomada pelos homens do 28 de Maio e, em 1933, foi-lhe concedida a honra duvidosa de figurar na Constituição. Foi a primeira a ser abolida com Abril e, honra a quem a merece, o Dr. Raul Rêgo, director de A República, não esperou pelo seu fim, nem por saber de que lado era o golpe militar, para mandar a censura às urtigas, assumindo o risco de, na noite de 24 para 25 de Abril, não enviar as tiras das notícias à comissão de censura, apesar dos telefonemas insistentes. E foi assim que A República se tornou no primeiro jornal livre e pôde inserir em rodapé na primeira página da primeira edição do dia: "Este jornal não foi submetido a qualquer comissão de censura" (cito de cór). Mais nenhum teve tamanha honra!

14/10/2006

Mértola, sempre a ensinar-nos

Em Mértola descobriu-se importantíssimo achado arqueológico. Como não se trata das pirâmides do Egipto, foram muito poucos os meios de comunicação social que a noticiaram. Fê-lo a Antena1, com o meu aplauso.

O achado é um tesouro para a percepção do povoamento da zona: muralhas da Idade do Ferro (ainda por datar rigorosamente, mas o ferro chegou cá no séc. VIII a.C.); uma casa do séc. VI ou VII (sendo, seguramente, visigóticas) sepulturas do período almóada (posteriores, portanto, ao séc. XII. A entrada almóada em Portugal foi travada em Tomar em 1190 pelos Templários); um forno cerâmico do séc. XVI recheado de materiais da última produção. Além disto, ainda foram referidas, sem serem identificadas, “estruturas romanas” entre os sécs. II a.C. e II d.C.

Descoberta espantosa!

Estou particularmente curiosa quanto aos achados da Idade do Ferro. Será que trazem informações sobre a tão pouco conhecida civilização Tartéssica? Pela forma como foram designados, o mais provável é que não, mas pode ser… pode ser…

Lembrei-me de mim, jovem estudante, em campanhas arqueológicas Alentejo dentro. Com que entusiasmo encontrei, numa delas, perto de Ferreira do Alentejo, uma esculturazinha igual a esta:


Era uma deusa com olhos de sol (como baptizá-la de outro modo?), divindade adorada pelos Tartessos, povo que sabemos ilustre, que ocupou o Sudoeste da Península Ibérica enquanto os Celtas ocupavam quase tudo o resto. A Bíblia refere-se-lhes e os gregos também, nomeando a sua riqueza. Muitos arqueólogos têm-se dedicado a procurá-la, vão encontrando algumas coisas, mas a sua mítica capital (junto do Guadalquivir?) mantém-se oculta. Sabemos que decaíram com as rivalidades entre gregos e fenícios e que as guerras púnicas, travadas entre cartagineses e romanos lhe terão apressado o fim. Sabemos isso e já é muito, se pensarmos que, até há pouco tempo, se acreditava que Tartessos era uma lenda.

13/10/2006

Sexta-feira 13


Sexta-feira, madrugada de treze de Outubro de 1307: por toda a França, e por ordem de seu soberano Filipe, o Belo, as residências dos Cavaleiros do Templo são arrombadas e os seus membros capturados. Entre eles está Jacques de Molay, seu derradeiro grão-mestre. Submetidos a tortura, quase todos confessarão práticas hediondas, desde o cuspir na cruz à idolatria e à sodomia. À prisão suceder-se-ia inquérito e julgamento. Muitos seriam condenados à morte pelo fogo. Desde então, a sexta-feira 13 está associada a dia de azar.

Os Templários foram a vítima provável de um tempo melindroso. O século começara trágico por toda a Europa, com os maus anos agrícolas a sucederem-se e, com eles, a inevitável fome e a morte por inanição. Os monarcas europeus andavam em palpos de aranha, sem saberem o que fazer para deitar mãos a tamanha miséria e, se às vezes tinham sucesso, outras vezes acrescentavam-na. Dos campos fugia-se para as cidades pois acreditava-se que os seus ares eram benéficos, mas tamanho afluxo amontoou multidões que, por isso mesmo, morriam mais e revoltavam-se mais. Qualquer boato era verdade certa, inflamavam-se os ânimos e qualquer coisa servia de rastilho neste barril de pólvora.

Devido à sua dedicação a actividades lucrativas, os cavaleiros templários foram alvo da cobiça dos monarcas em aflição: cobiçavam-lhes as riquezas, embora se devessem preocupar em aprender com eles. Talvez seja este o motivo que levou Filipe, o Belo, a ordenar a sua prisão, mas todo o processo é tão obscuro que nada nos parece convencer. O facto é que os Templários são acusados de heresia num século recheado delas e acabarão tão vítimas da inquisição como os cátaros e outros que tal.

O processo movido pela Cúria Romana não foi bastante para convencer os monarcas peninsulares que, entre si, combinaram comum actuação e, apesar de todos acatarem a decisão de extinção da Ordem, decidiram que os seus bens reverteriam para as respectivas coroas. Além disso, pelo menos em Portugal e Aragão, esses bens seriam usados para a fundação de ordens religiosas nacionais cujos primeiros membros seriam antigos templários. Em Portugal, seria a Ordem de Cristo, ornada com a mesma cruz templária, aquela que identificará as caravelas e as naus dos Descobrimentos.

Em Portugal, o primeiro Grão-Mestre foi Gualdim Pais, companheiro de D. Afonso Henriques na batalha de Ourique. Foi nele que o nosso fundador depositou a responsabilidade, nunca desmerecida, de defender as terras conquistadas para Sul. Na luta contra os sarracenos, os Templários estavam sempre na linha da frente. A Gualdim Pais devemos a fundação de Tomar (está aí sepultado na igreja de Santa Maria do Olival) e a construção do castelo de Almourol e os seus cavaleiros são os responsáveis por nunca, depois de conquistada, termos perdido a linha do Tejo. Ao recusar entregá-los à fogueira, inocentando-os de todas as acusações, D. Dinis soube reconhecer o seu enorme contributo para a nacionalidade. Desse acto lúcido nasceu a possibilidade da epopeia. Bem-hajam todos eles!

10/10/2006

Singularidades



Deitei-me em terra macia
Fiz das ervas o meu leito
E p'ra ser como devia
Nasceu um amor-perfeito!

O amarelo é luz do dia,
E o vermelho, cobertor
Mas se a vida é alegria
Que o negro não seja dor!


(Quando queremos saudar a vida não importa se a rima é pobre!)

As quadras que se seguem são do Jorge Guedes e, porque não merecem ficar confinadas à caixinha dos comentários, aqui vão elas:

Lindo amor, e que perfeito!
Veio dar-me luz à casa,
Que até se me pôs o peito
Em saltos, a arder em brasa
.........
Olhando-me bem de frente,
Cabeça erguida ao sol,
Lembra-me assim de repente
Carinha de rouxinol
.........
Pode nem saber cantar,
Suas cores serem dif'rentes,
Deixa m´lodias no ar
E que as cantem outras gentes!

01/10/2006

Um pouco de tudo: mitologia, astronomia e Camões

Júpiter era um pinga-amores! Não havia rabo de saia com o seu palminho e beleza que o não fizesse perder-se de paixão. De nada lhe importava que a bela fosse mortal ou compartilhasse da eternidade divina. A beleza, essa sim, era a sua perdição. Perdição dele e perdição das belas pois, uma vez descoberto o enlevo, era sobre elas que a fúria de Juno se abatia.
Nas Metamorfoses, Ovídio conta-nos a história dos amores de Júpiter com a ninfa caçadora Calisto, companheira de Diana. Desse enlevo nasceu Árcade que viria a ser rei dos Pelasgos do Peloponeso que, a partir de então, passariam a designar-se por árcades. Este, como todos os mitos, conhece numerosas variações. Uma delas diz que Juno, furiosa por se ver enganada de novo, transforma Calisto numa ursa e que, certo dia, Árcade, já crescido e andando à caça, ao ver uma ursa vai em sua perseguição e só a intervenção rápida de Júpiter impede que o filho mate a mãe. Juno, furiosa de novo, transforma Árcade numa ursa menor, então, Júpiter, compadecido de ambos, sopra os dois para o firmamento, transformando-os nas constelações que tão bem conhecemos. Mas nem aí Juno sossega, pois consegue que Neptuno lhe prometa que mãe e filho jamais se banharão nas suas águas, ou seja: estarão condenadas a nunca declinarem e, para garantir o cumprimento do castigo, põe Arcturo de vigia (Arcturo, quarta estrela mais brilhante do céu, é a estrela principal da constelação Boieiro. O seu nome significa guardião da ursa).

A astronomia dos Descobrimentos vem desmentir a crença de que as duas ursas não declinam e que, a partir de certa latitude sul, elas, de facto, “mergulham no oceano”, tornando-se invisíveis no céu. Foi por esse motivo que os portugueses, rumando a latitudes cada vez mais austrais, precisaram de encontrar novos pontos de referência celeste.

Camões dá-nos conta da mitologia greco-romana e, a cada passo de Os Lusíadas, prova que estava a par das novas descobertas astronómicas e associa, com impressionante rigor cronológico, esses conhecimentos com o decurso da viagem de Vasco da Gama. A partir deste ponto citarei passagens de um artigo do Portal do Astrónomo onde se divulga uma obra magnífica, do início do séc. XX: A Astronomia de Os Lusíadas de Luciano Pereira da Silva.

“Quando se viaja para Sul, estas constelações vão-se aproximando do horizonte, mergulhando progressivamente no mar, até se tornarem invisíveis. É esse fenómeno que Camões descreve na seguinte estância.

Assi, passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dous invernos fazendo e dous verões,
Em quanto corre dum ao outro Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.
Canto V, 15

(…)
A partir do equador, todas as estrelas da constelação mergulham no horizonte, embora todas tenham ocaso e nascimento. Mas a partir de que latitude Sul se deixa de ver a Ursa Maior? Na próxima estância, Camões fala-nos dos povos que nunca as sete flamas viram.

Crescendo cos sucessos bons primeiros
No peito as ousadias, descobriram,
Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,
Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
De África os moradores derradeiros,
Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,
Foram vistos de nós, atrás deixando
Quantos estão os Trópicos queimando.
Canto VIII, 72

(…)
O facto é que a partir de 30ºS (antes mesmo de passar o cabo da Boa Esperança), algumas das estrelas da constelação de Ursa Maior já são invisíveis e as restantes erguem-se pouco acima do horizonte, deixando a constelação de poder ser identificada, podendo assim Camões afirmar que os moradores dessas paragens não conheciam esta constelação. (…)”

Quanto mais se lêem Os Lusíadas mais se aprende a amá-los e a respeitar um autor que a tamanho trabalho se deu. São duas epopeias numa só, a do povo portugês e a da escrita de Camões!

Para mais informações sobre as duas ursas celestes, este artigo de Nuno Crato é muito interessante.

24/09/2006

Que a razão se faça ouvir: a lição de Bento XVI

Finalmente, as vozes da razão – aquelas que têm capacidade para tal – começam a fazer-se ouvir. Reconheço-lhes a dificuldade da missão, porque explicar o significado profundo de uma lição profunda é tarefa titânica porque a audiência, acostumada às tiradas bombásticas e às curtas frases de sujeito e predicado (às vezes, também, sem um deles), rapidamente se afasta dos textos longos e explicativos. Provavelmente, essas vozes conseguirão, apenas, dar argumentos àqueles que, com elas, já concordavam. Mesmo assim é importante que falem e que fique registado, por seu intermédio, que as pessoas do mundo inteiro não se transformaram todas em mentecaptas ou em medrosas ou em merdosas! Louvo-lhes a lucidez e a coragem.

Falo, naturalmente, da lição do Papa Bento XVI e das reacções que ela provocou. José Pacheco Pereira, no Abrupto, explicou porque é que os muçulmanos deviam levar a sério a interpelação do Papa e Maria José Nogueira Pinto, no DN, meditou sobre a importância da palavra. Pacheco Pereira teve, ainda, a bondade de indicar dois artigos excelentes, um no Le Figaro e outro Washington Post. Do artigo do Figaro, da autoria de Michel Fichant (professor na Sorbonne de História da Filosofia) destaco as seguintes passagens:

Il faut une bonne dose de sottise, de perversité – ou des deux –, pour trouver dans cette leçon magistrale une offense quelconque à l'égard de quiconque. Si le thème principal est le commentaire, superbement conduit, de la proposition : «Agir contre la raison est agir contre l'essence de Dieu», l'exposé comporte aussi, en contrepoint, une réflexion sur l'Université.

Celle-ci et ses professeurs, au-delà de leur spécialité, se voient assigner la tâche de «travailler dans le tout de la raison unique et d'exercer la responsabilité commune du juste usage de la raison».

(...)Le discours assurément n'est pas destiné aux foules. Les habiles et les affairés reprocheront sans doute à Benoît XVI de ne pas assez tenir compte de ce qu'il n'est plus professeur et que, comme pape, tout ce qu'il dit parvient aux oreilles de la foule. Mais si l'on comprend que le Pape ait dû exprimer ses regrets devant les réactions suscitées par un propos incompris, le professeur n'a pas à s'excuser d'avoir fait, et admirablement fait, son métier. Élitisme universitaire ? Peut-être.
Mais qu'on y prenne garde : ce serait une catastrophe pour l'Europe et pour l'identité de sa culture d'en rabattre, par lâcheté ou par ignorance, sur les exigences qui soutiennent cet élitisme-là.


O artigo do Washington Post, escrito por Charles Krauthammer serve-se da ironia e do humor, características humanas que, afirma, têm faltado a muitos muçulmanos. E mostra-lhes a contradição entre aquilo que, dizem, os ofende e as reacções face a essas ofensas. Destaco:

The pope makes a reference to a 14th-century Byzantine emperor's remark about Islam imposing itself by the sword, and to protest this linking of Islam and violence:

(…)In Mogadishu, Somali religious leader Abubukar Hassan Malin calls on Muslims to "hunt down" the pope. The pope not being quite at hand, they do the next best thing: shoot dead, execution-style, an Italian nun who worked in a children's hospital.
"How dare you say Islam is a violent religion? I'll kill you for it" is not exactly the best way to go about refuting the charge. But of course, refuting is not the point here. The point is intimidation
.

Haja quem escute estas vozes!

Sublinados meus

23/09/2006

Os filhos e os herdeiros

As árvores enxertadas dão todas o mesmo fruto, mas os frutos, apesar de serem da mesma casta uns dos outros, têm textura e sabor diferentes. Assim, por exemplo, um cerdeiro enxertado frutifica em cerejas, mas as cerejas dele nascidas tanto podem ser vermelhíssimas como discretamente tingidas, rijas como macilentas.

Os nossos pais são como árvores enxertadas e, por isso, dão origem a duas classes de descendentes: os filhos e os herdeiros.

Os filhos amam os pais pelas pessoas que são. Dedicam-se-lhes e provam essa dedicação, pautando as suas vidas pelos mesmos padrões éticos que lhes seviram de exemplo. Os filhos aprendem dos pais as atitudes e as palavras e sabem que será essa a maior riqueza que receberão. Por isso os filhos sonham a impossível perpetuação dos pais, mas, quando estes dão sinais de estarem incapazes de tomar conta de si, amparam-nos e sentem que chegou a vez deles de servirem de colo. Os filhos não fazem isto como um peso, fazem-no com a naturalidade do amor.

Os filhos, em lágrimas, cantam canções de embalar aos pais. Os filhos rezam, à noite, as orações que os pais já não sabem dizer.

Os herdeiros nascem de um enxerto invisível. Os herdeiros traduzem a relação biológica numa operação matemática: "quanto me poderá render o nascimento?"Os exemplos e as palavras que fizeram proveito aos filhos são, para os herdeiros, inaceitáveis e de tudo fazem tábua-rasa. As acções dos pais, em gritante contradição com as suas, vêem-nas como insultos. E afastam-se para não serem comparados. São amados, apesar de a sua ausência os privar de receberem carinho. Nos escassos reencontros a conversa deixa de fluir, por isso se resume a um "então mãe / pai, como está"?

Quando os pais deixam de ser capazes de tomar conta de si próprios, os herdeiros reagem com desagrado e são rápidos a alijar a carga. A incapacidade dos pais é sentida, por eles, como um atentado contra o próprio bem-estar, mas como não gostam que se façam comparações, tentam convencer os filhos a comportarem-se como eles. Se a situação se arrasta, os herdeiros começam a manifestar pública pena pela condição dos pais. Dizem que já não é vida e que a morte seria uma bênção. No seu íntimo, vão sonhando com isso, não vendo a hora de deitar a mão àquilo que consideram ser seu por direito. Os herdeiros consideram que os filhos, seus irmãos, os obrigam às únicas operações que detestam fazer: divisão e subtracção.

Quando a hora chega, ai dos irmãos! Querem chorar a perda, mas a matilha não lhes larga os calcanhares: há que fazer partilhas. Então, os herdeiros deixam cair a máscara!

17/09/2006

Vamos por partes (III)

Volto à carga com os horários, embora não por causa deles. Este, que aqui reproduzo, era o meu do 7.º ano (actual 11.º e que, ao tempo, se designava oficialmente por 2.º do Complementar, embora ninguém o tratasse por esse nome ). Reporta-se ao ano de 1978/79. Aulas ao sábado e dois furos. Ninguém reclamou, apesar de vivermos o tempo de todas as possibilidades e de todas as contestações. Ao todo, 22 horas distribuídas por seis dias.

Chegava-se ao liceu depois de uma passagem de dois anos pela escola preparatória. O tempo do liceu era, pois, o da sedimentação da amizade porque a idade tal deseja e os cinco anos aí passados eram bastantes para que ela levedasse.

O horário que reproduzo já não é o do cartão oficial, antes, aquele que a minha amiga Isabelinha achou por bem fazer para mim, antecedido deste desenho com a sua legenda de ternura.

O liceu funcionava em dois turnos: manhã e tarde. Terminada a última aula, as funcionárias da limpeza entravam para varrer todo o espaço. Regressavam ao trabalho antes que se iniciasse o turno da manhã, para limpar o pó que se deixara a assentar durante a noite. Às contínuas (não confundir com as primeiras), que começavam o seu serviço pouco antes do início das aulas, era pedido que vigiassem os corredores, abrissem os livros de ponto, registassem as faltas de alunos e professores, tivessem disponível o material dos laboratórios, respondessem quando um professor, da sua sala de aula, tocava a campainha, etc. Parece que estou a falar de outro mundo! Hoje, exceptuando a vigilância de corredores, todas as tarefas das contínuas são exercidas pelos professores. A democracia despromoveu a ambos embora às contínuas que, de facto, prestam serviços de limpeza, lhes dê o pomposo nome de "auxiliares de acção educativa". Não bate a bota com a perdigota!

Este artigo não há meio de ter um nexo. Parece escrito pela Inês Pedrosa!

Vamos, então, ao que me importa, que é a questão do tempo e dos espaços. O tempo, já se viu, não estava sobrecarregado de aulas. As tardes livres e os furos significavam que os estudantes (éramos assim designados, porque seria?!) podiam aproveitar para realizar os seus trabalhos e completar os estudos nas enormes e muito bem fornecidas bibliotecas dos liceus. Quando é que os garotos de agora podem fazer isso? E com que disposição? E com que livros, sabendo que as bibliotecas escolares pouco mais são do que depósitos de manuais enviados pelas editoras? E com que critérios, com que possibilidades, pergunto ainda, conhecendo as enormes dificuldades de leitura com que a miudagem transita da escola primária? Que se pode pedir que leia, a quem quase não sabe ler?

Eu estudei no Liceu Maria Amália em Lisboa. Os estudantes dispunhamos:

  • de um enorme vestiário onde deixávamos casacos, mochilas, pastas de desenho, chapéus-de-chuva, etc. Era vigiado por uma funcionária que nos fornecia uma chapa de metal indicando o espaço em que tudo estava guardado. Actualmente é bar e sala de convívio;
  • de uma enorme sala de convívio equipada, entre outras coisas, com sofás, um piano e reproduções de grandes obras da pintura. Actualmente é o (muito bom) centro de recursos;
  • de uma enorme e excelente biblioteca;
  • de um enorme salão de festas equipado com palco. Nesse salão assisti a concertos de música dirigidos pelo maestro José Atalaya e à encenação de muitas peças de teatro. Guardo no coração O Judeu com a presença do próprio Bernardo Santareno. Também serviu para as inúmeras RGA e RGE que os anos de Abril permitiram. Felizmente, esse espaço mantém-se com as mesmas funções;
  • de um enorme e bem fornecido bar que também servia de cantina. Actualmente serve apenas esta última função;
  • de uma estufa que era um regalo para os olhos e de muitos (quatro ou cinco?) e grandes pátios para horas de prazer, de descanso e de brincadeiras. Os pátios estão, hoje, degradados. A estufa, sinal dos tempos, depois de se deixar perder, foi transformada em parque de estacionamento para automóveis;
  • de jardins bem cuidados a toda a volta do edifício, onde não faltavam bancos nem passagens empedradas para que pudéssemos passear sem estragar as plantas. Todas as portas de acesso esvam franqueadas. Hoje as portas estão fechadas e é a boa vontade de um ou dois professores que mantem esses espaços relativamente tratados;
  • de salas de aula enormes, de paredes espessas amenizadoras do frio e do calor, altas, permitindo que as várias janelas fornecessem luz e não incomodassem a vista para o quadro nem servissem de distracção a quem se senta perto delas;
  • etc.

Nem vale a pena enumerar as diferenças, tão gritantes elas são. As nossas escolas transformaram-se em depósitos de alunos e, com isso, perderam a primeira das suas funções que é a de serem lugar de aprendizagem e de aquisição do gosto pela cultura. Não há espaços, há cubículos sobrelotados. A democracia, como convinha que fizesse, alargou a escolaridade, mas não cuidou da educação. Aos professores tratou-os com o mesmo desvelo, retirando-lhes os espaços necessários à realização de um trabalho decente.

Quanto a mim, passei do tempo da contestação para o da constatação da minha impotência.

16/09/2006

Fugiu-lhe a boca para a verdade?

Manchete do novel hebdomadário: Sol



É uma falsa mentira!
comentário exaltado de Isaltino à SIC

Com a verdade me enganas?
Pela boca morre o peixe?

(Não sei, pergunto eu!)


Que outros adágios poderemos aplicar aqui?

12/09/2006

Ora muito bem feita!

O Manuel Lameque era um caldeireiro que, apesar de baixo e feio, era um gabarolas. Gabou-se, certo dia, que as mais lindas raparigas de Penas Juntas (Vinhais) eram suas amantes. Elas, furiosas, não estiveram com mais aquelas e fizeram-lhe... o que vem escrito na letra da cantiga que se segue:

Malo haja o Caldeireiro,
mais a sua gabação
se não fosse o ele gabar-se
ou o capariam ou não.

No lugar de Penas Juntas
houve uma grande alegria,
caparam-no Caldeireiro,
foi mui grande tirania.

Se fordes por Penas Juntas,
Rapazes, tende cautela,
caparam-no Caldeireiro
lá na rua da Capela.

As moças de Penas Juntas
até aqui eram senhoras,
agora têm por notícia
de umas grandes capadoras.

No lugar de Penas Juntas,
ali no bairro primeiro,
lá na rua da Capela
caparam-no Caldeireiro.

Já toda a gente dizia:
agora ficou capado;
inda foi dali p'ró Vilar
c'o traste dependurado.

Assim que lá chegou
começou logo a gritar,
foi o médico de Vinhais
acabar de lo cortar.

Dia vinte oito de Março,
sábado d'Aleluia
caparam o caldeireiro
lá no meio da rua.

Sábado d'Aleluia
caparam-no caldeireiro,
p'ra não descobrir as moças
até lhe ofereceram dinheiro.

in P.e FIRMINO A. MARTINS, Folklore do Concelho de Vinhais, 2.º vol.

Pois que o exemplo pegue!!