01/10/2006

Um pouco de tudo: mitologia, astronomia e Camões

Júpiter era um pinga-amores! Não havia rabo de saia com o seu palminho e beleza que o não fizesse perder-se de paixão. De nada lhe importava que a bela fosse mortal ou compartilhasse da eternidade divina. A beleza, essa sim, era a sua perdição. Perdição dele e perdição das belas pois, uma vez descoberto o enlevo, era sobre elas que a fúria de Juno se abatia.
Nas Metamorfoses, Ovídio conta-nos a história dos amores de Júpiter com a ninfa caçadora Calisto, companheira de Diana. Desse enlevo nasceu Árcade que viria a ser rei dos Pelasgos do Peloponeso que, a partir de então, passariam a designar-se por árcades. Este, como todos os mitos, conhece numerosas variações. Uma delas diz que Juno, furiosa por se ver enganada de novo, transforma Calisto numa ursa e que, certo dia, Árcade, já crescido e andando à caça, ao ver uma ursa vai em sua perseguição e só a intervenção rápida de Júpiter impede que o filho mate a mãe. Juno, furiosa de novo, transforma Árcade numa ursa menor, então, Júpiter, compadecido de ambos, sopra os dois para o firmamento, transformando-os nas constelações que tão bem conhecemos. Mas nem aí Juno sossega, pois consegue que Neptuno lhe prometa que mãe e filho jamais se banharão nas suas águas, ou seja: estarão condenadas a nunca declinarem e, para garantir o cumprimento do castigo, põe Arcturo de vigia (Arcturo, quarta estrela mais brilhante do céu, é a estrela principal da constelação Boieiro. O seu nome significa guardião da ursa).

A astronomia dos Descobrimentos vem desmentir a crença de que as duas ursas não declinam e que, a partir de certa latitude sul, elas, de facto, “mergulham no oceano”, tornando-se invisíveis no céu. Foi por esse motivo que os portugueses, rumando a latitudes cada vez mais austrais, precisaram de encontrar novos pontos de referência celeste.

Camões dá-nos conta da mitologia greco-romana e, a cada passo de Os Lusíadas, prova que estava a par das novas descobertas astronómicas e associa, com impressionante rigor cronológico, esses conhecimentos com o decurso da viagem de Vasco da Gama. A partir deste ponto citarei passagens de um artigo do Portal do Astrónomo onde se divulga uma obra magnífica, do início do séc. XX: A Astronomia de Os Lusíadas de Luciano Pereira da Silva.

“Quando se viaja para Sul, estas constelações vão-se aproximando do horizonte, mergulhando progressivamente no mar, até se tornarem invisíveis. É esse fenómeno que Camões descreve na seguinte estância.

Assi, passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dous invernos fazendo e dous verões,
Em quanto corre dum ao outro Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.
Canto V, 15

(…)
A partir do equador, todas as estrelas da constelação mergulham no horizonte, embora todas tenham ocaso e nascimento. Mas a partir de que latitude Sul se deixa de ver a Ursa Maior? Na próxima estância, Camões fala-nos dos povos que nunca as sete flamas viram.

Crescendo cos sucessos bons primeiros
No peito as ousadias, descobriram,
Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,
Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
De África os moradores derradeiros,
Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,
Foram vistos de nós, atrás deixando
Quantos estão os Trópicos queimando.
Canto VIII, 72

(…)
O facto é que a partir de 30ºS (antes mesmo de passar o cabo da Boa Esperança), algumas das estrelas da constelação de Ursa Maior já são invisíveis e as restantes erguem-se pouco acima do horizonte, deixando a constelação de poder ser identificada, podendo assim Camões afirmar que os moradores dessas paragens não conheciam esta constelação. (…)”

Quanto mais se lêem Os Lusíadas mais se aprende a amá-los e a respeitar um autor que a tamanho trabalho se deu. São duas epopeias numa só, a do povo portugês e a da escrita de Camões!

Para mais informações sobre as duas ursas celestes, este artigo de Nuno Crato é muito interessante.

7 comentários:

Anónimo disse...

Gostei do que li e aprendi. Vou voltar mais vezes.

MPS disse...

Obrigada pela gentileza, Pedro!

Jorge P. Guedes disse...

Muito interessante e a comprovar que "Os Lusíadas" não cantaram só o que deles é costume ensinar-se.
Camões viajou muito mais longe!

Um abraço

MPS disse...

Eu diria que Camões nos reservou o prazer da descoberta da sua obra e do seu saber. Lê-lo e entendê-lo é prosseguir no mesmo espírito do "querer saber mais e mais longe chegar" que marcou o ser português de quatrocentos e quinhentos. É permanecermos na nossa essência, contida inteiramente em Camões!

MeMyself&I disse...

Olá M.

De salientar o facto de o senhor ter "visto" tudo isso com apenas um olho! :-)

Desconhecia esta característica. Mas tens razão, é de louvar!

MPS disse...

Um olho bastou-lhe para estudar Pedro Nunes e a falta do outro não lhe toldou a perspectiva! :-)

Camões é um poço de surpresas boas!

Anónimo disse...

Nesta madrugada em que percorro os blogues venho sempre serenar neste recanto e deixar o meu eco de apreço por esta interessante página.