10/11/2006

Numa véspera de S. Martinho

Os transmontanos não podem exercer cargos públicos: médicos, professores, advogados, etc. perderão os postos de trabalho.
Nenhum estudante transmontano poderá frequentar escolas do Estado Português.
São proibidos os casamentos entre transmontanos e cidadãos portugueses.
Os transmontanos não têm direito à nacionalidade portuguesa.
Os transmontanos não podem residir em Portugal.

Este texto pode parecer um rematado disparate: caberá na cabeça de alguém amputar o país de parte significativa dos seus nacionais? A resposta é um trágico sim, se substituirmos Portugal por Alemanha e transmontano por judeu. São os vergonhosos decretos de Nuremberga, citados aqui no seu espírito, não na sua forma, e datam de 1935. Entre 1935 e 1938 estes decretos foram regulamentados aos poucos, que é como quem diz, esmiuçou-se a possibilidade da perfídia. Por exemplo, todos os judeus foram obrigados a declarar cada um dos seus bens; as suas lojas e escritórios, mesmo que minúsculos, tinham de estar criteriosamente assinalados com a estrela de David para que nenhum não judeu lá entrasse ao engano, a mesma estrela que eram obrigados a trazer na lapela; os judeus perderam o direito legal ao inquilinato; para eles foram criados passaportes especiais em cuja capa figurava um "J" acusador e, que subtileza, cada nome próprio de cada judeu foi acrescentado: Sarah, sendo mulher; Israel, sendo homem.

O cadastro dos judeus e as suas lojas e escritórios assinalados foram o ponto de partida para a ignomínia que se avizinhava: a “noite de cristal”, meticulosamente preparada por Goebbels, chefe da propaganda nazi.

Na noite de 9 para 10 de Novembro de 1938, por toda a Alemanha, Áustria (já anexada) e Sudetas (territórios já conquistados da Checoslováquia), as lojas dos judeus foram pilhadas, as suas casas assaltadas, as sinagogas incendiadas e as obras de autores judeus queimadas em pilha monstruosa, numa orgia de horror. Seria o primeiro dos muitos progroms que estariam para breve. O saldo, por alto, foi o seguinte:

100 mortos e milhares de feridos
30 000 capturados e enviados para campos de concentração
2 000 sinagogas incendiadas
Vários cemitérios e escolas vandalizados
8 000 lojas pilhadas e destruídas
Incontáveis volumes da mais rica literatura e filosofia mundiais reduzidos a cinzas.

Nem precisaram de queimar a Bíblia, porque era o próprio Cristo quem ali ardia!




Entrada da Universidade de Erlangen (9/11/1938). Em cima, um cartaz anuncia a interdição da entrada a judeus. Mais abaixo, uma faixa apela à filiação no Partido Nazi

4 comentários:

Anónimo disse...

Na véspera de S. Martinho, não vou à adega provar o vinho, mas visito este interessante e agradável blogue. Agradeço penhorado os comentários sempre excelentes que tão amavelmente tem deixado no COURA: magazine, acompanhando a poesia do Zinão, personagem que me entusiasma pelo seu anarquismo genético, pela sua – dele, claro – imensa sabedoria, num homem que era semianalfabeto, mas como se diz, cursado “honoris causa” na Universidade da Vida. Há cerca de trinta anos, na minha terra – Paredes de Coura – ainda os velhos, quando definiam o perfil dalgum mariola, diziam: «É um zinão». A barbárie nazi aqui tão bem descrita, causa ainda estranheza pela sua dimensão escatológica. Como diz a canção, não podemos ignorar.

MPS disse...

Jofre
Disse bem: dimensão escatológica do nazismo! E citou um dos poemas mais acusadores do nosso tempo: "Vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar" de Sophia de M. Breyner, magnificamente musicado e cantado por Francisco Fanhais.

Quanto ao Zinão - mariola, com que então? - eu é que lhe agradeço o ter-mo dado a conhecer!

Jorge P. Guedes disse...

Além de tudo o que dizes, historicamente mais que comprovado, a bestialidade dos comandos nazis e o seu cinismo foi ao ponto de colocar naquele letreiro gigantesco que aparece na entrada de Erlangen as palavras
Juden sind hier nicht erwünscht o que significa mais precisamente Aqui os juceus não são desejados

MPS disse...

Obrigada pela tradução, à qual eu não chegaria, por desconhecimento da língua. Eis, então, que desvendaste o espírito metódico e disciplinado dos nazis: na mesma expressão provam o seu amor pela arte da retórica (que eufemismo, aquele!)e o seu desafecto pelos judeus (eufemismo meu, agora!). Cinismo, dissseste tu e muito bem.