01/12/2006

1.º de Dezembro

Há algumas décadas que se perdeu, em Portugal, a ideia de povo. O povo iletrado, terceiro elemento do corpo social, foi substituído pela classe média ignara. Nunca Portugal esteve tão em perigo!

Ao longo destes oitocentos e sessenta e três anos de existência, sempre o povo primou por não ceder às pretensões hegemónicas, primeiro de Castela, depois, de Espanha, mesmo que a lei lhe não desse razão, como aconteceu em 1383. O povo pensou bem: os acordos insanos celebrados por um rei vaidoso e fraco não têm que condenar a Pátria. Exerceu, então, aquilo que os iluministas, muito mais tarde, viriam a designar por “direito à revolta”.

Em Santarém, em Junho de 1580 o povo, e só ele, proclamou D. António, Prior do Crato, rei de Portugal. D. Henrique, o cardeal-rei, falecera em Janeiro, velho e doente, acompanhando no destino as vinte e cinco mil mortes nacionais provocadas pela peste. Desde Abril do ano anterior que os pretendentes ao trono escreviam à coroa, a seu rogo, expondo os argumentos em defesa da respectiva pretensão. O velho rei nunca chegou a decidir. Decidiu o povo por ele! Mas o povo não tem armas, nem tácticas militares, nem dinheiro para subornos. Filipe II tinha e serviu-se em abundância!

Recebi de V.M. a três de Agosto e outra de D. Cristóvão em que me diz quanta mercê V.M. deseja fazer a esta sua casa; e só com entender a muita justiça que V.M. tem à sucessão destes reinos eu estava determinada de pôr por ela os filhos, estados e vassalos, com diferente gosto o farei agora que V.M. se mostra disso servido e mais ficando de novo obrigada com esta tão grande mercê e favor que V.M. me fez. (…) Meu filho beija os pés de V.M. Da Vidigueira a 5 de Agosto de 1579
Beija as reais mãos de V.M.
A Condessa da Vidigueira


*
Por último, direis ainda ao Sereníssimo Rei, meu tio, que pois o tenho no lugar de pai, me não negue o de filho primogénito, que me deram Deus e as leis; e considere atentamente nas misérias e calamidades públicas (…), obrigando-me a tomar outro caminho que não o da brandura, amor e liberdade, que proponho (…)

(Carta de Filipe II ao duque de Ossuna, seu embaixador em Portugal, escrita a 24 de Agosto de 1579 )

Nesta carta Filipe II fazia inúmeras promessas que repetirá nas Cortes de Tomar de 1581 em que será aclamado rei: que o herdeiro do trono será educado em Portugal; que teremos administração própria, moeda própria, lei própria, separação de impérios, mas que o império espanhol estaria aberto aos portugueses, enfim… haveria união dinástica mas não de reinos. Este é o pedacinho do cinismo que lhe fica bem a ele mas muito mal à nossa nobreza.

Cedo se constatou que tudo não passava de palavras, saindo à nossa nobreza o tiro pela culatra. Distantes da corte, tornámo-nos periféricos e a nossa nobreza tornou-se provinciana (veja-se Rodrigues Lobo e as “Cortes na Aldeia”). O povo tinha razão, mas a nobreza só se deu conta disso 60 anos mais tarde, porque deixou de ter o que pensava que teria.

Hoje, já o disse, não existe povo. Temos uma classe média que lhe não herdou o ser, e se consome na ânsia de ter. O pecado da nobreza atingiu as classes baixas. Hoje, qual aristocracia de há 623 anos e de há 426 anos, estes nacionais a nada mais aspiram senão a ser espanhóis. Porque lhes invejam o ter e se esquecem da História.

Amo profundamente a minha pátria, mas já não sei se amo os portugueses!

7 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado por esta lição de História.

Nela se percebe o porquê do teu desamor aos espanhóis e a dúvida quanto aos portugueses - classe média.
Mas acho que tens razão. O ter é que importa a esses herdeiros do povo que invejam e almejam os haveres dos antigos nobres.
Aliás, tenho -o dito amiúde, a inveja é um sentimento nacional.
E é isso que leva demasiados portugueses a dizer que não se importavam de ser espanhóis.
Eu também não desdenharia, à partida, ser espanhol ou de outra nacionalidade.
Não tenho o teu conceito de pátria. A pátria, para mim, é o mundo onde sou bem tratado. Pode ser Portugal ou outro lugar.
Mas vivo cá, nasci cá, tenho a obrigação de lutar pela terra onde, por acaso, nasci.
Nada tenho contra espanhóis. O que eles sempre fizeram, porventura, tê-lo-iam feito os portugueses se as dimensões dos dois países estivessem invertidas. Não são, para mim, melhores nem piores por isso.
Mas temos, TODOS, a obrigação, nem que seja por nascimento, de defender o nosso território, a nossa especificidade, o direito conquistado de sermos um país livre, com uma língua e uma cultura próprias.

Um abraço e desculpa este "lençol".

Jorge

MPS disse...

Logo a quem é que tu pedes desculpa por escrever lençóis!!!...

Não me fiz compreender bem: não tenho desamor pelos espanhóis, pelo contrário, respeito-os muito. O que me arrepia é a defesa da união ibérica por causa do sentimento da falência nacional. E é isso que me dói, esta entrega ao desespero, este constante procurar fora um salvador que não existe, sabendo que os únicos povos que existem são aqueles que se salvam a si próprios. Durante 800 anos fomos capazes disso e desistimos agora, porquê?

Quem me dera a mim que nós tivéssemos, em relação a Portugal, o orgulho que os castelhanos têm de Espanha, um orgulho que os faz olhar para o futuro!

Não culpo Espanha nem Castela pela perda da nossa independência e é verdadeira a tua afirmação acerca da importância das circunstâncias (que poderiam acontecer para o lado de cá): D. Fernando tentou fazer, no séc. XIV, aquilo que Filipe II conseguiria em 1580. Mais: o primogénito de D. Manuel (Miguel da Paz) foi jurado herdeiro de todos os reinos peninsulares, mas morreu com um ano de vida, ou seja, a união ibérica poderia ter-se concretizado 30 anos mais cedo, com um monarca português e Lisboa por capital. Não saberemos como seria, mas a ter em conta a facilidade da integração do Reino do Algarve (com D. Afonso III) é de presumir que o processo seria diferente. Olha, se calhar não teríamos tido a tragédia da inquisição. Ao menos isso!

Um abraço, no fim de mais um lençol...

Anónimo disse...

A conclusão é deveras arrepiante, porquanto sofro do mesmo paradigma: «amo profundamente a minha pátria, mas já não sei se amo os portugueses!». Terrível dilema. Almada Negreiros, na distante época de 1920, disse que o melhor dos povos seria aquele que tivesse simultaneamente todos os defeitos e ao mesmo tempo todas as virtudes. E concluiu salomonicamente: aos portugueses já só faltam as virtudes, pois temos todos os defeitos!
Quanto à classe média é um mito por falta de longevidade histórica – socialmente é nova, recente –, e por falta de unidade e consistência na estrutura. Cresceu “dependente” e na sombra do Estado – professores, enfermeiros, médicos, funcionários públicos, etc. -, e com o tal sofre de uma profunda debilidade, nunca se assumiu como elite, que não é, nunca teve capacidade estrutural de influência, nunca teve valores e postura política, a não ser um: fazer pela vidinha.
E essa debilidade é causa da sua paralisia, a qual permite ao desgoverno que nos governa eleger a classe média como alvo: veja os ataques sibilinos aos professores, a quem ganha 200 / 300 contos, e a altivez depreciativa aos “privilégios” dessa mesma classe média, insulto que encontra eco nas comunicação social e mesmo no povo, que sofre de inveja e desdém por aqueles que lhe estão próximos, embora acima no “status” social.
A conversa vai longa, e fica por aqui. Mas o prazer que aqui vir e ver, esse não fica por aqui...

MPS disse...

Comentário sibilino o seu, Jofre e não poderia estar mais de acordo. Mas eu sinto-me consternada porque a classe média (não a média baixa) é constituída por pessoas instruídas que actuam como boçais e ignaras. E é isso que não entendo! São professores, advogados, médicos, etc. com obrigação de compreenderem o mundo e de conhecerem o seu lugar na sociedade. Alguma coisa falta e tudo está errado!
Um abraço

Chanesco disse...

Cara MPS

De facto é uma situação preocupante, mas penso a maioria apenas inveja o ter.
No que concerne as questões patrióticas é um pouco subjectivo, (referindo-me apenas ao povo raiano que tão bem conhece o seu vizinho). Nas idas a Espanha, a alma não deixa esmorecer a chama do patriotismo.
Apesar do bom relacionamento, está sempre patente um certo ar sobranceiro de uma boa parte dos espanhóis, manifestando um certo complexo de superioridade vis-a-vis dos portugueses. Esta atitude, faz despertar o orgulho português e retraír na vontade de ser espanhol.

Um abraço

MPS disse...

Luísa:

a globalização não corta as raízes. Circular - gentes, cultura, informação,comércio, etc.- por todo o mundo não significa perder identidade, antes abrir horizontes. Se, entre nós, há muitos que desejam ser outra coisa, as causas serão outras, certamente. Olhe, provavelmente, o tempo quase nulo que se dedica ao estudo da História e o manifesto desinteresse pela ciência (vide relatórios publicados ontem). Um e outro implicam saber, logo, integram o domínio do ser, algo com que esses portugueses se não importam.

Essa sua professora devia ser extraordinária e a Luísa, uma menina muito atenta. Parabéns!

MPS disse...

Chanesco:

os raianos - e nisso falamos ambos de cátedra - sempre conviveram com os vizinhos do lado de lá da fronteira que, na maior parte da sua extensão é invisível. No entanto, tenho a certeza de que os raianos são os últimos a desejar outra nacionalidade: para nós é quase genética a memória das razias nas aldeias e campos de cultivo que as muitas guerras provocaram e de que são testemunho os castelos esventrados. Quero dizer que é possível conviver cordialmente com os vizinhos mas que é impossível esquecer a destruição e a morte que o Estado de lá provocou nas nossas gentes.

Um abraço