15/10/2006

Salazar e a censura

Há tanto por onde aprender!

No seu Abrupto, Pacheco Pereira tem vindo a publicar documentos inéditos sobre a censura em Portugal. Atribuiu à secção o seguinte título:

PARA SE COMPREENDER O PORTUGAL DE SALAZAR E O PORTUGAL QUE FEZ SALAZAR

O último documento que reproduz (e que está aqui em baixo), diz-nos o historiador, foi retirado "Do boletim confidencial dactilografado da Direcção Geral dos Serviços de Censura à Imprensa - Boletim Diário de Registo e Justificação dos Cortes , secção "Questões de ordem moral", de Junho de 1935":



Pela amostra ficamos a saber, em primeiro lugar, que os censores escrevem calinadas grossas. Depois, percebemos que não se pode noticiar a violência, nem sequer a simples tragédia individual, como o desaparecimento de dois menores. Em terceiro lugar proibe-se, por imoral, a alusão ao aparecimento de novos costumes femininos (aprender a conduzir automóveis) e uma crónica que tenta, ironicamente (embora lhe reconheça pouca graça e elegância), criticar o modo de vida de alguém da classe média.

Dito de outro modo: o país que a censura permitia que fosse noticiado era o país do faz-de-conta, tão irreal como o das fábulas, país sem miséria, sem sofrimento, pacatamente vivendo de acordo com a moral (?) que, cada censor, supunha a moral adequada e própria. Era assim que não havia suicídios, que os portugueses não tinham que emigrar e que havia pleno emprego. Estes mitos estão de tal modo enraizados na mente colectiva que é muito difícil ultrpassá-los, por isso é forçoso concluir: a censura moldou-nos de tal maneira que, nos seus efeitos, está a obra principal de Salazar e que o mantém presente e vivíssimo, passados 36 anos da sua morte e 38 do seu afastamento do poder.

Ao iniciar este tema, Pacheco Pereira referiu uma meia-verdade: de que a censura era anterior a Salazar, vindo da I República. É verdade que a República aplicou a censura, mas fê-lo somente nos anos da Grande Guerra e os jornais podiam deixar em branco o espaço das notícias cortadas, ficando o público informado do corte (possibilidade negada com Salazar, o que obrigava as redacções a autênticos malabarismos). Mal acabou a guerra regressou a liberdade de imprensa. A lei da censura foi a primeira decisão tomada pelos homens do 28 de Maio e, em 1933, foi-lhe concedida a honra duvidosa de figurar na Constituição. Foi a primeira a ser abolida com Abril e, honra a quem a merece, o Dr. Raul Rêgo, director de A República, não esperou pelo seu fim, nem por saber de que lado era o golpe militar, para mandar a censura às urtigas, assumindo o risco de, na noite de 24 para 25 de Abril, não enviar as tiras das notícias à comissão de censura, apesar dos telefonemas insistentes. E foi assim que A República se tornou no primeiro jornal livre e pôde inserir em rodapé na primeira página da primeira edição do dia: "Este jornal não foi submetido a qualquer comissão de censura" (cito de cór). Mais nenhum teve tamanha honra!

16 comentários:

Anónimo disse...

Estive uns dias sem vir aqui e logo encontrei tantas coisas novas!

Desculpe a pergunta, mas quem foi o Dr. Raúl Rêgo?

MPS disse...

O Dr. Raúl Rêgo era director de um jornal diário, o matutino "A República", fundado durante a I República e que, pode ver-se pelo nome, defendia os ideais republicanos. Durante o Estado Novo, este, e muitos outros jornais, tentaram sempre contornar a censura, embora uns com mais sucesso e brilho do que outros. O Dr. Raúl Rêgo era pessoa de liberdade, por isso foi ele e mais ninguém, a assumir a atitude corajosa de, sabendo que estava a acontecer um golpe militar, recusar-se a enviar as tiras do jornal para a comissão de censura (com isso, se o golpe fosse dos ultras do regime, poderia sujeitar-se a complicações muito sérias). Depois do 25 de Abril aderiu ao Partido Socialista (que tinha um punho fechado como símbolo!) e tornou-se deputado. "A República" encerrou com o "Verão Quente" devido às querelas políticas entre a redacção e os tipógrafos (sendo estes contolados pelo PCP). Foi uma pena.

Anónimo disse...

Contra eles, os salazarentos, só um remédio:
Nitroglicerina pura, sem diluentes!


Nitro

MPS disse...

Este "Nitro" é muito engraçado e exímio na arte do pseudónimo!

MeMyself&I disse...

Lembro-me do texto que o Jorge fez no dia 5 de Outubro. Realmente a República teve os seus "quês", não teve?

Nitro é também a abreviatura de NOX - Monóxido nitroso. É uma substância altamente explosiva que os aceleras instalam nas suas "bombas" para atingirem velocidades estonteantes. Este Nitro anda terrível, mas na arte dos pseudónimos há-os melhor sucedidos...eheheh ;)

MPS disse...

Caro Miguel: a República teve muitos quês, mas esta da censura não pega por aquilo que escrevi. Todas as democracias, em tempo de guerra, e por questões de segurança nacioal limitam a informação sobre a guerra (não a dando toda e limitando o acesso dos jornalistas). Mas a República teve coisas magníficas, olha, por exemplo, a proibição do trabalho infantil, a escolaridade obrigatória e gratuita até aos 11 anos, a lei da greve, etc.etc.etc.!

Olha, acabaste de me ensinar uma coisa: que o barulho irritante que oiço resulta da utilização indevida do monóxido nitroso!

Um abraço

MeMyself&I disse...

Sim, é claro que a República teve aspectos maravilhosos. Em questões de educação, penso que em todos os cursos educacionais, ainda hoje, se referem e analisam os textos da 1ª República, verdadeiramente inovadora em termos educativos. É claro que não há "bela sem senão"...

MPS disse...

É verdade: os "Liceus Normais" para estágio dos professores vêm da República, bem como as do "Magistério Primário". A República pretendia ter cidadãos esclarecidos, embora homens por quem tenho muito apreço (como Afonso Costa) entendessem que eram capazes de mudar o país por decreto. Já o disse: o erro grave da República(crime, para mim) foi o modo como tratou a fé do povo (até as procissões foram proibidas!)e os membros do clero, particularmente os Jesuítas que submeteu a provações pretensamente científicas, mas que eram aviltantes (medirem-lhes o cérebro para tentarem provar que só os anormais podiam crer em Deus!). E muito mais, mas já passou. Apesar disso deixaram mil e uma ideias e foram trabalhadores incansáveis por quem tenho admiração pessoal.

MeMyself&I disse...

Geralmente, em transições tão drásticas, há a tendência para passar do "8 para o 80"; penso que terá sido o caso do clero. Como forma meio "tosca" de tentar relegá-los para segundo plano e desacreditá-los perante o povo, cairam no extremo de os hostilizar.

MPS disse...

Concordo com a ideia, mas vou mais longe. Hostilização é o que se faz agora. Na altura, e lendo as declarações de Afonso Costa, o objectivo era, de facto, exterminar o clero (não a vida das pessoas, entenda-se) para fazer desaparecer a fé.

Isto tem que ser interpretado à luz do tempo. A nossa, como a francesa, era uma república dita "radical". As repúblicas radicais fundamentam-se no cientismo que, por sua vez, é herdeiro do positivismo e, filhas do tempo, crêem que a ciência é a solução para todos os males da Humanidade. Crêem, também, (que ciência lho terá provado?) que a religião é inimiga do progresso. Perante estas duas crenças (autênticos dogmas, veja-se a ironia!) surge como inevitável a necessidade de extirpar a fé do coração dos crentes. A acção dos republicanos foi consistente com o seu pensamento que era, também, o pensamento do tempo. A I Guerra Mundial veio mostrar que, afinal, a ciência se mostrava mais apta a provocar hecatombes do que a salvar a Humanidade. E a Humanidade caiu numa crise de que ainda não recuperou.

MeMyself&I disse...

Tens razão, claro. "Hostilizar" é um eufemismo neste caso. E interpretando à luz do tempo também aceitamos e sabemos compreender porque foi uma "ideia" falhada.
Mas falas da Fé de uma forma muito geral e pacificadora. De uma certa forma "desculpas" a religião com a Fé. Esta afirmação parece estranha, mas, para mim, ela é clara. São coisas distintas. Sabes que a religião (e não a Fé) impediu de facto a ciência e a educação, pelo menos a sua generalização por todas as camadas. Tudo isto quando se esperava que fosse a evolução lógica da Europa depois dos impérios clássicos!
Um abraço

MPS disse...

Miguel, não limites a fé católica (acho que é dela que estamos a falar)aos tempos entre os sécs. XVI e XVIII e a Portugal e Espanha. Mas, mesmo para esses tempos, se vasculhares bem, encontrarás um dinamismo notável entre os Jesuítas e os Oratorianos (Pombal apoiou-se nestes para fazer a sua notável reforma do ensino).

Se não nos ativermos ao mundo católico nem aos países ibéricos, então a associação entre fé e desenvolvimento cultural é praticamente total e absoluta. Pensa lá melhor

Um abraço

MeMyself&I disse...

Sim, realmente, incoscientemente, falava de fé católica. Acredito que se "vasculhar", acharei algo. Mas o que eu também disse foi que falhou na generalização. Em camadas sociais bem distintas foi distribuída educação.

Se pensar o no mundo não-católico talvez ache exemplos de progresso, mas todos eles associados a tipos bem diferentes de fé!

Um abraço

MPS disse...

Depois dos "impérios clássicos" foi o clero medieval que manteve viva a cultura... clássica. Onde é que os homens do Renascimento foram buscar os textos dos "antigos" senão aos mosteiros? S. Tomás de Aquino dedicou os melhores dos seus anos a fazer a síntese entre Aristóteles e o Cristianismo!

Durante os tempos tenebrosos da Inquisição, enquanto os ibéricos íamos decaindo, a Europa do Norte assumiu-se como farol do mundo em todas as áreas, particularmente na ciência e na técnica, lugar qué só perdeu para os EUA depois da I Guerra Mundial. São cristãos os europeus do Norte, como são cristãos os americanos. Em que outras latitudes e fés germinou e se desenvolveram os direitos do Homem e a democracia? É que, mesmo que alegues que muitas dessas conquistas se fizeram contra ou apesar do clero, a verdade é que foi no contexto cristão que tais movimentos nasceram e frutificaram em mais contexto nenhum, e isso não é por acaso!

Nota bem, Miguel, entendo o que tu queres dizer, tens razão em muitos aspectos, mas não me parece filosoficamente correcto olhar a parte e esquecer o todo.

Um abraço

MeMyself&I disse...

Tens razão nesse aspecto. O meu ponto de vista é sempre um pouco tendencioso. Foram anos a fio de pensamentos toldados por meias verdades.

E por acaso eu ia mesmo dizer-te que mesmo nos países em que se fizeram conquistas sociais e de ciência, não terá sido decerto, por pedido do clero. Mas tens razão, ele está presente e também não impediu. O que me faz colocar uma questão: qual foi então a grande diferença entre os tais países e a Europa central e Ibérica?

Um abraço

MPS disse...

Foi a inquisição! Ela e quem dela se serviu como instrumento de poder: as duas casas reais e a nobreza parasita que tanto beneficiava com isso.