25/04/2008

Nem que fosse só por isto

Ora amarelos, ora verdes, dobrados em partes, deixavam ver no exterior algumas linhas traçadas a negro. Eram os aerogramas.

Chegavam ao ritmo do possível; aflita a espera se havia demora. Lá dentro, algumas palavras calculadamente riscadas no intuito de impedir a leitura do engano ou da mensagem. E nós sem sabermos se fora o autor ou alguém sem nome nem rosto nem corpo, mas tão presente, tão abafadoramente presente, como o medo da guerra e o temor pelos nossos.










Os aerogramas eram lidos com a avidez de quem sacia longa sede. Primeiro baixo, movendo os lábios. Era assim que a mãe bebia cada palavra dos filhos e os outros presentes ficavam suspensos dos rictos desses lábios e das pausas que faziam. No fim, a mãe dizia para uma das filhas: "lê lá tu, alto." E no fim: "Lê outra vez." E em cada leitura pedia que se repetissem passagens, como se quisesse gravar aquelas palavras para ser capaz de as reproduzir, para si própria, imaginando a voz dos filhos. Só o pai assumia comportamento diferente: sentado, cabeça descaída, olhar fixo no chão. As mãos cruzava-as sobre os joelhos, para que ninguém visse quando cravava as unhas na carne, a esconjurar a dor.

Nos aerogramas falava-se da saudade e do carinho, perguntava-se pela família, sendo eloquentes pelo que silenciavam e nós nem nos atrevíamos a supor. Calava-se o medo e iludia-se a morte.

Um dia, de madrugada, duas canções: primeira senha, segunda senha. Começara o fim do medo. Não tardaria, aqueles que escreviam os aerogramas diriam, ao vivo, as misérias que viveram, em catadupa como se tivessem medo de esquecer e quisessem fazer de nós testemunhas.

Bem-haja quem no-los devolveu.

*****
O aerograma amarelo foi retirado daqui e o verde daqui.

21/04/2008

Pra não dizer que não falei das flores

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Alguém se lembra, ainda, desta maravilha? Quem se lembra que o autor se chama Geraldo Vandré e que a escreveu para a realidade da ditadura brasileira, irmã gémea da nossa?

Palavras simples, mas que interpelam tanto!


Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Somos todos iguais

Braços dados ou não

Nas escolas, nas ruas

Campos, construções

Caminhando e cantando

E seguindo a canção...


Vem, vamos embora

Que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer...


Pelos campos há fome

Em grandes plantações

Pelas ruas marchando

Indecisos cordões

Ainda fazem da flor

Seu mais forte refrão

E acreditam nas flores

Vencendo o canhão...


Vem, vamos embora...


Há soldados armados

Amados ou não

Quase todos perdidos

De armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam

Uma antiga lição:

De morrer pela pátria

E viver sem razão...


Vem, vamos embora...


Nas escolas, nas ruas

Campos, construções

Somos todos soldados

Armados ou não

Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Somos todos iguais

Braços dados ou não...

Os amores na mente

As flores no chão

A certeza na frente

A história na mão

Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Aprendendo e ensinando

Uma nova lição...


Vem, vamos embora...

19/04/2008

Máximas tiradas de Lot

Lot's Wife, de E. Thor Carlson

Quando saíres de um lugar abominável não tenhas pena dos justos que lá deixaste, porque todos os justos saíram contigo.

Nunca olhes para trás nem te apiedes: a maldade dos que ficaram sorverá o teu olhar, secar-te-á o ser e transformar-te-á em estátua de sal.

11/04/2008

Depois de nós

A Natureza conserva a memória do início dos tempos. Pode parecer quieta mas, em silêncio, aguarda que os pés dos homens deixem de trilhar os caminhos. Então, sem mais delongas, adona-se novamente do chão que lhes emprestara.

Também as casa, santuários protectores dos elementos, conhecerão o mesmo destino. Talvez sejamos nós as últimas testemunhas de que, aqui, se ouviram os risos dobrados das crianças: os nossos risos! Talvez, por isso, sejamos nós os únicos a sentir este nó que nos sufoca a garganta.

06/04/2008

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

No artigo anterior referia-me ao facto de, sob meu ponto de vista, a autora não ter escrito uma única frase que fosse apelativa e me prendesse a atenção. Hoje apetece-me dar exemplo do contrário. Escolhi um autor maior da literatura em Língua Portuguesa, em texto muito pequeno. O livrinho pode ler-se num piscar de olhos, mas quem gosta de desbravar o significado das palavras e dos gestos, de se deleitar a visualizar as imagens e de se surpreender com elas, enfim, quem aprecia a escrita com o mesmo prazer com que degusta o melhor dos manjares, certamente lerá, com todo o vagar, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado. Transcrevo, aqui, algumas passagens.

Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso, funcionária relapsa. Demora-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir até não ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará antes das onze e olhe lá. (...) Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma funcionária subalterna, de rígidos horários. Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com medo do escuro. A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.

Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. (...) Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? (...)

Por mais cedo fosse, mais frio fizesse, estivesse onde estivesse, (...) pela madrugada arribava ele em casa do Sol para cooperar com a Manhãzinha. Sopra que sopra com a imensa bocarrona de ar. Apenas porém a brasa crescia em labareda, o Vento deixava por conta da Manhã atiçar a chama com o abanador das brisas e começava a recordar aventuras (...).
Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais (...). Pouco dada ao trabalho, a manhã deixa-se ficar embevecida a escutar (...) causando irremediável transtorno aos relógios, obrigados a diminuir o ritmo dos pêndulos e ponteiros, na dependência da chegada da Manhã para marcar as cinco horas em ponto. Muitos relógios enlouqueceram, não voltaram jamais a marcar a hora certa (...). (pp. 15-18)


Também os galos deixaram de saber às quantas andavam e, por isso, num dia em que o atraso foi ainda maior, eles e os relógios queixaram-se ao Tempo, "senhor de todos eles". O Tempo, para quebrar a monotonia da eternidade, aceita não castigar a Manhã se ela lhe contar a história que a fez atrasar-se tanto. E a Manhã conta-lhe a história que ouviu do Vento sobre os amores do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá, história que não pode ter desenlace feliz, pois não se está mesmo a ver que os gatos e as andorinhas foram sempre inimigos figadais?

É no Outono que os protagonistas percebem que o seu amor não pode durar. Jorge Amado dá-nos conta da mudança com as seguintas palavras:


No outro dia o Outono chegou, derrubando as folhas das árvores. O Vento sentia frio, e, para esquentar-se, corria zunindo pelo parque. O Outono trazia consigo uma cauda de nuvens e com elas pintou o céu de cores cinzentas.
(p. 85)


A Andorinha Sinhá casa-se com o rouxinol.


No momento em que o cortejo nupcial, numa revoada, saía da capela, a Andorinha viu o Gato no seu canto. Não sei que jeito ela deu no voar que conseguiu derrubar sobre ele uma pétala de rosa, das rosas vermelhas do seu buquê de noiva. O Gato a colocou sobre o peito, parecia uma gota de sangue. (...) Já não havia futuro com que alimentar o seu sonho de amor impossível. Noite sem estrelas, a da festa de casamento da Andorinha Sinhá. Apenas uma pétala vermelha sobre o coração, uma gota de sangue.


A música doía-lhe no coração. Canção nupcial para os noivos; para o Gato Malhado, canto funerário. Tomou da pétala de rosa: olhou mais uma vez o parque coberto pelo Inverno, saiu andando devagar. Conhece um lugar longínquo, onde vive apenas a Cobra Cascavel, que ninguém aceita nos parques nem nas plantações. O Gato tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo. (pp. 107-109)

Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Publicações D. Quixote, 2002

01/04/2008

Um livro



Apresentação

D. Sebastião e Miguel Leitão de Andrada nasceram em datas muito próximas. Deana Barroqueiro faz dessa coincidência o início e o pretexto do romance: “D. Sebastião e o Vidente”. O vidente é, naturalmente, Miguel de Andrada, o autor da “Miscelânea”, obra que reúne vários poemas, lendas, etc. e uma bela descrição da batalha de Alcácer Quibir na qual o autor participou.

É um livro muito longo que termina na página 629 com o latino “Finis”. Ao longo dessas páginas, a autora dá mostras da muita e árdua pesquisa que fez e que lhe serviu para descrever bem os ambientes e situar correctamente as personagens e os factos históricos. Para mim terminam aí as virtudes do livro.

Estilo

Há pouco a dizer sobre o estilo de Deana Barroqueiro, a não ser que não escreve capítulos maiores do que três ou quatro páginas facto que, só por si (porque se trata de artimanhas para prender o leitor), já é um insulto ao próprio leitor, insulto que vai repetindo pela voz do narrador com tiradas parecidas com isto: haverá já muitos leitores que estão de garras de fora para criticarem; esses que parem por aqui. A autora saberá (e quem a leu, também) que obras tomou por modelo quando começou a recear a crítica!

O romance está escrito numa prosa escorreita e certinha, pouco entusiasmante como uma linha recta. Ali não há rasgos literários e não se encontra uma frase em que o leitor se possa deter para a saborear melhor.

Toda a gente sabe de quem é o verso "amor é fogo que arde sem se ver". As normas da escrita ordenam, no entanto, que se utilizem aspas ou itálico e, naturalmente, se faça referência ao autor. Frequentemente, Barroqueiro não faz uma nem outra coisa. Mas faz mais: quando cita (percebe-se que é citação porque surge em itálico) não indica a fonte, o que, além de irritante, está errado. Ainda sobre citações, faz aparecer alguns poemas em contexto algo que, sendo exercício interessante a realizar com alunos, me parece de pouca valia para a literatura, tanto mais que faz parecer que os poetas não pensam os poemas e que os não trabalham, surgindo-lhes prontos e perfeitos.

Enredo

1 – A ideia não me parece má para um romance: uma criança nasce em data próxima do nascimento do rei Desejado e começa, desde menino, a ter visões terríveis. O romance, para fazer sentido (e jus ao título), deveria ter aproximado as duas personagens, mas a verdade histórica, a que a autora quer ser fiel, impede tal aproximação. Os dois falam-se, apenas, uma vez, durante o périplo de D. Sebastião pelo Algarve. E é por essa distância que o enredo não faz sentido, já que as visões de Miguel Leitão de Andrada nunca chegam ao conhecimento do Rei nem, coisa estranha, advertem o vidente dos perigos que o seu rei irá correr. Pelo contrário, ao longo da trama, apesar das visões, Miguel mostra-se um defensor acérrimo do Desejado e um entusiasta da conquista de África.

2 – A autora quer, a todo o custo, explicar a aversão de D. Sebastião pelo casamento. Para isso, lança mão da tese, (contestadíssima pelos historiadores) segundo a qual, o rei sofria de gonorreia. Não é a verosimilhança da doença que aqui se contesta. O que não posso tolerar é o ferrete lançado sobre uma figura real: Cristóvão de Moura.

Para quem se não lembra, Cristóvão de Moura, fidalgo português, partiu para Espanha integrando a casa da princesa D. Joana, mãe de D. Sebastião que, pouco tempo depois de ver o filho nascido, regressou ao seu país, tendo ajudado o irmão Filipe na governação e assumido, por algumas vezes, o cargo de regente. Cristóvão de Moura tem o seu nome manchado entre os mais férreos patriotas portugueses que o acusam de traidor porque, desde sempre, se assumiu fiel de D. Filipe, tendo-lhe sido muito útil nos meandros da compra do voto da nobreza portuguesa. Não vem ao caso defendê-lo nem atacá-lo, antes, estranhar como é que alguém, sem provas concretas, o acusa de acto profundamente maquiavélico e ignóbil. Segundo a autora, Cristóvão de Moura, de conluio com os próceres do rei menino (então com onze anos), terá feito com que uma prostituta infectada com gonorreia seduzisse o donzel, tendo como único objectivo impedir que o rei viesse a ter filhos e assim, quando D. Sebastião morresse, Filipe II alcançaria a almejada união ibérica. É uma acusação medonha que escamoteia os conselhos que Filipe II deu ao sobrinho, no sentido de evitar que se lançasse na loucura africana!

3 – De novo, a questão do vidente. O livro chega ao fim com o desenlace da batalha de Alcácer Quibir cuja descrição é das poucas páginas com interesse. Tendo em conta a importância da personagem, seria de esperar que, ao menos em breve resumo, nos fosse contado o resto da vida de Leitão de Andrada, até porque a autora nos deixou suspensos dos seus amores com a prima Beatriz que enviuvara muito antes da batalha. Ora, em termos amorosos, a biografia do cronista de Alcácer Quibir diz-nos que, regressado ao reino após o cativeiro em Fez, se casou em primeiras núpcias com D. Inez de Atouguia e, só depois da morte desta, logrou casar-se com sua prima Beatriz de Andrada. Enfim, fios que ficaram por tecer, dando origem a uma urdidura frouxa e pouco cativante.

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Nota
: o livro já recebeu, pelo menos, o prémio Máxima de Literatura, de 2007