07/11/2006

Corrupção

Será a corrupção um mal nacional? Será que se aplica à corrupção a máxima que usamos em tom de brincadeira: "não é defeito, é feitio"?

Vem isto a propósito daquelas classificações que alguns organismos internacionais fazem. Desta vez foi sobre índices de corrupção, tabela em que ocupamos lugar de destaque. Este assunto já foi tratatado pelo Jorge Guedes em O Sino da Aldeia, pelo que me abstenho de o abordar pelo mesmo prisma. Sendo assim, deixo aqui dois poemas de duas épocas distintas e que podem ajudar à reflexão.

Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado,
porque fiz lealdade; enganou-m'i o pecado.
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.

Se traiçon fezesse, nunca vo-la diria;
mais, pois fiz lealdade, vel por Sancta Maria,
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Per mia malaventura tive um castelo en Sousa
e dei-o a seu don' , e tenho que fiz gran cousa:
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Per meus negros pecados, tive un castelo forte
e dei-o a seu don' , e ei medo da morte
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Diego Pezelho (jogral)

Este poema integra o chamado ciclo da entrega dos castelos. Não me vou alongar em grandes explicações históricas, mas é importante esclarecer que, tendo D. Sancho II sido excomungado pelo papa, este ordenou que o trono de Portugal fosse entregue a seu irmão, D. Afonso III e todos os cidadãos nacionais ficavam desobrigados do dever de obediência a D. Sancho. Pior: quem se lhe mantivesse fiel incorria em risco de excomunhão. Os alcaides dos castelos eram figuras importantes devido ao papel essencial que desempenhavam na defesa do território nacional e a relação que estabeleciam com o rei era uma relação de vassalagem, ou seja: os laços que os uniam eram pessoais e baseavam-se na confiança mútua. Muitos alcaides, como o que é referido no serventês, recusaram-se a faltar à palavra dada a D. Sancho. Mas era o poder que lhes exigia que assim fizessem! Portugal entrou num tempo muito complicado.

O poema seguinte data do séc. XIX. Não se lhe conhece o autor e costuma ser integrado na poesia popular. Data do reinado de D. Maria II. Diz assim, de forma eloquente:

Quem diz que é pela rainha
não precisa de mais nada
embora roube à vontade
ninguém lhe chama ladrão
todos lhe apertam a mão
é homem de sociedade!

Acima da pobre gente
subiu quem tem bons padrinhos
de colarinhos gomados
perfumando os ministérios
é dono dos homens sérios
ninguém lhe vai aos costados!

Nota: José Afonso musicou este poema.

8 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

Textos muito interessantes e elucidativos.
O poder tem uma capa enorme que abriga os idólatras e lhes alberga os pecados.
Sempre assim foi!
Sempre assim será?
Ouso dizer tristemente que sim.

Um abraço e agradeço-te a referência ao meu artigo.

Jorge

MPS disse...

Eu ousaria ir mais longe do que tu: em muitos casos estabelece-se uma relação de simbiose entre o poder e os seus "idólatras": quando cresce um cresce o outro também. É a relação biológica perfeita. Pena é que ambos sejam organismos parasitários dos corpos vivos que vão exaurindo!

A justiça não se agradece.
Um abraço, Jorge.

Anónimo disse...

Outra maneira, interessante, de focar e analisar corrupção, onde como sempre somos dos piores na Europa dita civilizada, com a “vantagem” única da Itália (45.º) e Grécia (54.º) ficarem um pouco atrás de nós. Até porque já conhecia o poema datado do século XIX, e que apreciei relembrar, pela sua actualidade:

Embora roube à vontade
Ninguém lhe chama ladrão
Todos lhe apertam a mão
É homem de sociedade.

Parece que em Portugal tudo é imutável.

Anónimo disse...

O Zinão ainda hoje é uma lenda em Paredes de Coura pelas mil e umas fábulas e historietas que dele contam. Certa vez ao vir da feira de Paredes de Coura para a freguesia de Formariz adiantou o passo e chegado à frente, atirou-se para o chão, fingindo-se de morto, somente para saber se era chorado com saudade, e assim avaliar os sentimentos dos seus conterrâneos em relação a si. Noutra vez, diz a lenda, foi oficiante dum casamento… Foi caiador, soldado do Regimento de Valença (1806); em 1815 foi preso nos calabouços de S. Julião da Barra pelo crime de deserção, sendo readmitido no Exército por indulto régio em 1817, abandonou o serviço militar em 1824. Cerca de 1828 instalou-se na freguesia de Formariz, no então concelho de Coura, hoje Paredes de Coura. Era dado à boémia, bebedor inveterado, pouco ou nada dedicado ao trabalho, levando uma vida anedótica, propenso a pregar partidas, com um comportamento desbragado, e que depressa entrou para o imaginário popular. Vivia na casa deste ou daquele, à sombra de amigos ou de ocasiões oportunas. Era analfabeto [ou quase analfabeto], sendo poeta repentista, que muitas vezes compunha contundentes versos de improviso acerca de personagens, factos ou acontecimentos do dia-a-dia, sempre numa apreciação ridícula, e de crítica social. Foi um professor primário, que se apercebendo do valor da sua poesia marcadamente popular, que, numa fase tardia, começou a recolher os poemas do Zinão que circulavam de mão em mão, e depois de viva voz com o poeta. A primeira edição dos seus poemas foi feita em 1854, seguida de outras em 1857, 1862, 1876, 1880, 1907 e 1928. Tenho um exemplar da edição de 1907, a partir da qual vou publicando aqui os seus poemas. No início da década de 1850 abandonou Paredes de Coura e fixou residência na freguesia de Campos, concelho de Vila Nova de Cerveira, onde nunca consegui encontrar o seu registo de óbito. Faleceu depois de 1854, pois nessa data escreveu um seu poema. O poema “O Excesso de Empregados”, – que será da sua produção courense, portanto entre 1828 a 1850 – como é muito longo, foi arbitrariamente dividido em quatro partes, para melhor leitura na Internet.

MPS disse...

Jofre

1 - Será a corrupção endémica? Confesso que me custa a aceitar a ideia, mas vejo-a, entre nós, como uma das mais longas durações. Bem sei que só temos pouco mais de trinta anos de democracia e que as democracias constroem cidadãos, mas esta nossa transformou-se rapidamente em mero formalismo e, parece-me, está a deixar de fora o que lhe deveria ser essencial - destruindo-se a si própria por dentro!

2 - Que trabalheira teve. Agradeço-lhe, de coração, as informações que aqui deixou e lhe pedi na sua página sobre Paredes de Coura. Muito obrigada!

MPS disse...

Luísa

E quem não aceita entrar na roda ainda é apodado de parvo!

MeMyself&I disse...

Olá

A corrupção é um nome feio. Falemos em adulação eaí poderemos reportar-nos às nossas crianças, jovens aprendizes da corrupção activa. É aí que começa. Não custa muito...

Um abraço

MPS disse...

Pois, se calhar começa ainda mais cedo! E se custasse muito não haveria tanta gente a praticá-la!

Fiquei contente por teres dado sinais de vida.

Um abraço