29/10/2006

Vamos por partes IV

Uma pessoa pensa que está a fazer uma grande coisa, mostra-a ao mundo, e o mundo não dá por ela. A coisa feita existe ou não? Dito de outro modo: a realidade existe por si própria ou existe, apenas, na medida em que é conhecida? E conhecida por quem, dado que é impossível todas as pessoas da Terra terem conhecimento de todas as coisas?

Estas são algumas das perguntas mais banais que a Filosofia se faz, mas que exigem reflexão profunda e um adequado conhecimento do si em si e do si integrado no mundo, compreendendo e compreendendo-se. A Filosofia obriga a pensar, impele à organização do pensamento estruturante do ser e conduz à compreensão da realidade que é múltipla.

Algumas das respostas às questões com que iniciei este artigo são dadas pela História, mas serão sempre insuficientes se não forem abordadas do ponto de vista epistemológico que só a Filosofia permite. Hoje, mais do que ontem, porque a História, quando os jovens começam a ser capazes de pensá-la, é de acesso restrito a poucos e, dentro destes, somente àqueles que se não guiam pela lei do menor esforço. Os programas de História do segundo e do terceiro ciclos do ensino básico são bons programas, mas a realidade transforma-os em caricatura atendendo ao tempo ridículo que é atribuído à disciplina. Nada se ensina, nada se aprende, porque não há tempo para fazer mais nada senão aflorar os assuntos. Por culpa própria, a Geografia transformou-se em coisa nenhuma, porque fala de tudo menos do que importa à ciência ela mesma. Se as disciplinas fundamentais para a compreensão do indivíduo em si (História) e no meio (Geografia) estão transformadas na aridez do vazio, não é de espantar que os senhores que decidem tenham optado pela exclusão da Filosofia no ensino secundário. Quem faz as transformações no ensino, e arrogantemente lhes chama reformas, sabe pensar e sabe inferir as consequências das decisões que toma, por isso, tal decisão é pragmatismo puro! Os tribunais deveriam julgar os seus mentores por traição à Pátria!

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Aqui há dias criei um neologismo. Dizer que fiquei contente comigo própria é dizer pouco. Está publicado nestas minhas páginas, mas ninguém reparou nele (ou terão pensado que era gralha...)! E se, daqui por algum tempo, alguém com visibilidade utilizar a palavra que criei?

O resalgar nos rimances

Embora o tempo seja de semear, vou falar aqui de tempos de colheita.

O trabalho da segada (ceifa), por ser tão árduo, era acompanhado por cantigas que, mais do que animarem os segadores, serviam para marcar o ritmo da labuta. São as cantigas da segada cujo poema, de temas muito muito variados, pode adequar-se às horas do dia e constitui o rimance. A música é, quase invariavelmente, a mesma para todos os poemas. Meu pai ensinou-me umas quantas, algumas no meio de muitos risos por serem tão marotas!

Os rimances podem organizar-se por grandes temas de que destaco, por exemplo, o de Santa Helena (outra, que não a mãe de Constantino). Tal como acontecia na Idade Média (grande parte delas vem, precisamente, desses tempos), uma cantiga tem sempre muitos autores e, numa, misturam-se versos de outras, sendo difícil discernir qual delas é a primeira.

Vem tudo a propósito dos resalgares cujo veneno é sobejamente conhecido dos transmontanos.
Santa Helena era a filha mais nova de um pai abastado (ela bordava em seda). Um cavaleiro, depois de receber pousada em casa do pai de Santa Helena, rapta-a e assassina-a. Sobre a sepultura da vítima alguém constrói uma capela. Passados sete anos, o cavaleiro regressa e pede perdão a Santa Helena. O desenlace da cantiga é eloquente:

- Perdoa-me ó Santa Helena serei eu o teu romeiro
domingos e quintas-feiras durante um ano inteiro.

- Como te hei-de perdoar, meu lobo, meu carniceiro
fizeste-me a mim como o lobo faz ao carneiro!

O tema de Santa Helena foi colado à cantiga que se segue, mas de cujo início meu pai se não recordava já. Ei-la, tal e qual ele ma ensinou, afirmando que se cantava à hora da merenda:

- Apeia-te ó cavaleiro, que te darei de merendar.
- Que tens tu ó D. Eugénia, que tens tu para me dar?
- Tenho queijo de sete anos para te dar a provar.
Tenho vinho d'outros sete para te dar a fartar.
Cavaleiro bebeu o vinho e começou-se a agoniar:
- Que fizeste ao teu vinho que me fez tanto mal?
- Deitei-lhe cobrinhas vivas e o sumo do resalgar.
Arrebenta, arrebenta cavaleiro, acaba de arrebentar!
Cavaleiro arrebentou, ela cobriu-o com folhas do mato
(...)
Perdoa-me ó Santa Helena, serei eu o teu romeiro
Domingos e quintas-feiras durante um ano inteiro.



O resalgar, pode ver-se, tem má fama e bom proveito dela.

Nota: para evitar consulta constante do "Brègancês" escrevi os poemas de acordo com a norma do Português corrente.

28/10/2006

Roquelhos

Surgem no tempo da castanha. As terras, amaciadas pela chuva, deixam que eles venham à superfície sem lhes macular a carne. São roquelhos, nome genérico que os bragançanos atribuem aos cogumelos.

Há roquelhos de sabor tão delicado que só permitem uma passagem breve pelas brasas que os tisnam e lhes fazem emergir a água de que são compostos. As rocas e as carneiras são dois dos cogumelos mais comuns por terras de Bragança e podem servir de almoço (jantar por aquelas bandas) àqueles que não querem interromper a apanha da castanha para irem comer a casa.

Quem é da terra sabe: roquelhos há-os de muitas espécies e bondades, e que os forasteiros se não deixem seduzir pela beleza porque, normalmente, é chamariz de incautos.

As ilustrações dos contos infantis, vá lá saber-se porquê, quando representam cogumelos pintam-nos de vermelho manchados de bolinhas brancas. São os resalgares!


O resalgar é lindíssimo embora, comprovadamente, seja uma das espécies mais venenosas. Por esses campos fora, quem os vê, só lhes toca com a biqueira do sapato, porque um leve roçar de mão, que distraidamente se leve à boca, pode ser fatal. Nunca vi nenhum bicho tomar-se de amores por ele, provando que conhecem, por herança, a eficácia do seu veneno.







Mas o malvado, mesmo à nascença, é tentadoramente atraente!

23/10/2006

A castanha


Em ano de pouca bolota de carvalho, o porco montês faz pela vida e atira-se às castanhas. Os ratos encontram nelas refasto abundante, os esquilos roubam-nas... enfim, o tempo da castanha é de festança para a bicharada e o dono dos castanheiros tem que competir com os seus irmãos bravios, para ter acesso ao seu quinhão. Por isso, faça chuva ou sol, esteja a temperatura amena ou o aço da geada tolha os movimentos, não há dia inicial de Novembro em que, debaixo da copa de um castanheiro, se não veja alguém ajoujado, depenicando com os dedos cada uma das castanhas. Uma soma-se a outra, enche-se uma cesta que se despeja na saca que, quando puder ser, há-de carregar-se até abrigo seguro.


É árduo o trabalho da apanha da castanha. No chão, os ouriços escondem algumas por baixo da sua carne de espinhos, e há que afastá-los; outros caem fechados e há que desouriçar. Ferem-se as mãos e cada músculo do corpo sofre do esforço de estar submetido, por tempo tão longo, a posição tão pouco natural. Mas ver encher a cesta e reconhecer em cada castanha apanhada o toque das nossas mãos dá tamanha satisfação, que a toda a dor se ultrapassa e todo o desconforto se justifica!

O ouriço é a flor feminina do castanheiro. A masculina ainda lá está (seg.ª fotografia), discreta, por detrás das folhas, esperando que o vento a transporte até ao chão.

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Muitas castanhas não chegam a desenvolver-se. Chamamos-lhes "folecras" (vêem-se algumas na primeira fotografia); os negociantes intermediários servem-se disso e descontam 2% no peso final que têm que pagar. Ou seja, por cada 1000Kg, o produtor recebe o dinheiro de menos 20Kg. Os consumidores fiquem alerta e peçam, no quilo que compram, os vinte gramas a mais a que têm direito. É tudo uma questão de equidade, pois o intermediário já lucra de sobejo com a desproporção entre o preço a que compra e o preço a que vende. Só para se fazer uma ideia: no ano passado, o produtor vendeu a colheita a preços que oscilaram entre os noventa cêntimos e um euro por quilo, mas o consumidor pagou o mesmo quilo a mais de quatro euros!

19/10/2006

Margatoso


É um castanheiro e a sua longevidade dá-lhe o direito a ter nome próprio: Margatoso. Nunca recebeu enxertia mas, para assar, nenhuma castanha é melhor do que as dele. Por isso minha mãe fazia questão de guardar delas para consumo de sua casa. Pertenceu a meus pais que o receberam de meu avô. Meu avô nasceu nos idos anos oitenta do século XIX e já recebeu este castanheiro a produzir boa castanha. Agora é meu. Mais do que centenário, perdi-lhe a conta de quem o plantou e o das gerações a quem sua beleza seduziu.









Ei-lo: visto de Poente ...













... de Sul ...







...e de Norte. Do lado Norte crescem-lhe lampos, uns vindos da própria raiz, outros nascidos de castanhas perdidas que germinam no húmus feito de ouriços e folhas apodrecidas.




Protegido dos ventos pelos lampos novos, o tronco abriga outras colónias e, dele, nascem cogumelos como este a que chamamos línguas de boi.

De qualquer lado que o miremos, o Margatoso é belo e imponente. Magnífico!

17/10/2006

Scarborough Fair



Are you going to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary and thyme
Remember me to one who lives there
For once she was a true love of mine


Have her make me a cambric shirt
Parsley, sage, rosemary and thyme
Without no seam nor fine needle work
And then she'll be a true love of mine

Tell her to weave it in a sycamore wood lane

Parsley, sage, rosemary and thyme
And gather it all with a basket of flowers
And then she'll be a true love of mine

Have her wash it in yonder dry well

Parsley, sage, rosemary and thyme
Where water ne'er sprung nor drop of rain fell
And then she'll be a true love of mine

Have her find me an acre of land

Parsley, sage, rosemary and thyme
Between the sea foam and over the sand
And then she'll be a true love of mine

Plow the land with the horn of a lamb

Parsley, sage, rosemary and thyme
Then sow some seeds from north of the dam
And then she'll be a true love of mine

Tell her to reap it with a sickle of leather

Parsley, sage, rosemary and thyme
And gather it all in a bunch of heather
And then she'll be a true love of mine

If she tells me she can't, I'll reply

Parsley, sage, rosemary and thyme
Let me know that at least she will try
And then she'll be a true love of mine

Love imposes impossible tasks

Parsley, sage, rosemary and thyme
Though not more than any heart asks
And I must know she's a true love of mine

Dear, when thou has finished thy task

Parsley, sage, rosemary and thyme
Come to me, my hand for to ask
For thou then art a true love of mine

Este é o poema integral de uma canção imortalizada por Paul Simon e Art Garfunkle. O poema data do fim da Idade Média em Inglaterra e, pela sua temática, certamente não foi escrito por gente da nobreza.

Scarborough Fair era uma cidade mercantil que, talvez por essa razão, tinha leis severíssimas contra o crime e qualquer desvio era imediatamente condenado, e o acusado enforcado sem demoras. Ainda hoje, em Língua Inglesa, “Scarborough warning” significa “sem aviso”.

A primeira quadra é um primor de duplos sentidos. Pergunta-se a alguém se vai para Scarborough Fair (vai fazer comércio ou vai morrer?) e diz-se que nessa cidade vive alguém a quem se amou muito (já morreu?).

O poema é de uma beleza imensa. Ao viajante é pedido que transmita, à amada, os pedidos de quem a ama. E que pedidos! Que mundo de sonhos! Que ideal de mundo! Que ideia de paraíso! Confesso que, devido à ideia de perfeição que transmite, uma das minhas preferidas é esta: Have her make me a cambric shirt / Without no seam nor fine needle work. Pede-se o impossível e, candidamente, confessa-se: Love imposes impossible tasks / Though not more than any heart asks. Mas porque o amor exige tanto, também é capaz de dar o mesmo em troca, assim se compreendendo a repetição do segundo verso: Parsley, sage, rosemary and thyme”(1): enche-te de coragem, recorda o nosso amor e alcançaremos o bem-estar e uma vida longa (eterna?). O poema é de teor nostálgico. Referir-se-á o poeta à sua amada morta, imaginando o reencontro na eternidade? Mas é belo, muito belo, mesmo se dele não compreendi nada!


Simon canta, com algumas adaptações, apenas as quadras assinaladas com cor mais escura e aproveita para transformar a canção em manfesto contra a guerra do Vietname. Fá-lo, acrescentando às três últimas quadras, os seguintes versos:


Tell her to make me a cambric shirt
On the side of a hill in the deep forest green
Parsley, sage, rosemary and thyme
Tracing of sparrow on snow crested brown
Without no seam nor fine needle work
Blankets and bedclothes the child of the mountain
Tthen she'll be a true love of mine
Sleeps unaware of the clarion call

Tell her to find me an acre of land
On the side of a hill a sprinkling of leaves
Parsley, sage, rosemary and thyme
Washes the grave with silvery tears
Between the salt water andthe sea strand
A soldiers cleans and polishes a gun
Then she'll be a true love of mine

Tell her to reap it with a sickle of leather
War bellow blazing in scarlet battalions
Parsley, sage, rosemary and thyme
Generals order their soldiers to kill
And gather it all in a bunch of heather
And to fight for a cause they've long ago forgotten
Then she'll be a true love of mine


Há ideias boas e muito bem conseguidas.
Nota: sem esperar por pedido expresso à oferta que fizera em comentário, o Jorge Guedes teve a gentileza, mais do que me ensinar, de me enviar já tudo prontinho. E a música soa, pelas suas mãos.
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(1) As plantas referidas estão associadas, respectivamente, às seguintes propriedades: salsa: alívio da dor; sálvia; força e longevidade; rosmaninho: amor e memória; tomilho: coragem.

15/10/2006

Salazar e a censura

Há tanto por onde aprender!

No seu Abrupto, Pacheco Pereira tem vindo a publicar documentos inéditos sobre a censura em Portugal. Atribuiu à secção o seguinte título:

PARA SE COMPREENDER O PORTUGAL DE SALAZAR E O PORTUGAL QUE FEZ SALAZAR

O último documento que reproduz (e que está aqui em baixo), diz-nos o historiador, foi retirado "Do boletim confidencial dactilografado da Direcção Geral dos Serviços de Censura à Imprensa - Boletim Diário de Registo e Justificação dos Cortes , secção "Questões de ordem moral", de Junho de 1935":



Pela amostra ficamos a saber, em primeiro lugar, que os censores escrevem calinadas grossas. Depois, percebemos que não se pode noticiar a violência, nem sequer a simples tragédia individual, como o desaparecimento de dois menores. Em terceiro lugar proibe-se, por imoral, a alusão ao aparecimento de novos costumes femininos (aprender a conduzir automóveis) e uma crónica que tenta, ironicamente (embora lhe reconheça pouca graça e elegância), criticar o modo de vida de alguém da classe média.

Dito de outro modo: o país que a censura permitia que fosse noticiado era o país do faz-de-conta, tão irreal como o das fábulas, país sem miséria, sem sofrimento, pacatamente vivendo de acordo com a moral (?) que, cada censor, supunha a moral adequada e própria. Era assim que não havia suicídios, que os portugueses não tinham que emigrar e que havia pleno emprego. Estes mitos estão de tal modo enraizados na mente colectiva que é muito difícil ultrpassá-los, por isso é forçoso concluir: a censura moldou-nos de tal maneira que, nos seus efeitos, está a obra principal de Salazar e que o mantém presente e vivíssimo, passados 36 anos da sua morte e 38 do seu afastamento do poder.

Ao iniciar este tema, Pacheco Pereira referiu uma meia-verdade: de que a censura era anterior a Salazar, vindo da I República. É verdade que a República aplicou a censura, mas fê-lo somente nos anos da Grande Guerra e os jornais podiam deixar em branco o espaço das notícias cortadas, ficando o público informado do corte (possibilidade negada com Salazar, o que obrigava as redacções a autênticos malabarismos). Mal acabou a guerra regressou a liberdade de imprensa. A lei da censura foi a primeira decisão tomada pelos homens do 28 de Maio e, em 1933, foi-lhe concedida a honra duvidosa de figurar na Constituição. Foi a primeira a ser abolida com Abril e, honra a quem a merece, o Dr. Raul Rêgo, director de A República, não esperou pelo seu fim, nem por saber de que lado era o golpe militar, para mandar a censura às urtigas, assumindo o risco de, na noite de 24 para 25 de Abril, não enviar as tiras das notícias à comissão de censura, apesar dos telefonemas insistentes. E foi assim que A República se tornou no primeiro jornal livre e pôde inserir em rodapé na primeira página da primeira edição do dia: "Este jornal não foi submetido a qualquer comissão de censura" (cito de cór). Mais nenhum teve tamanha honra!

14/10/2006

Mértola, sempre a ensinar-nos

Em Mértola descobriu-se importantíssimo achado arqueológico. Como não se trata das pirâmides do Egipto, foram muito poucos os meios de comunicação social que a noticiaram. Fê-lo a Antena1, com o meu aplauso.

O achado é um tesouro para a percepção do povoamento da zona: muralhas da Idade do Ferro (ainda por datar rigorosamente, mas o ferro chegou cá no séc. VIII a.C.); uma casa do séc. VI ou VII (sendo, seguramente, visigóticas) sepulturas do período almóada (posteriores, portanto, ao séc. XII. A entrada almóada em Portugal foi travada em Tomar em 1190 pelos Templários); um forno cerâmico do séc. XVI recheado de materiais da última produção. Além disto, ainda foram referidas, sem serem identificadas, “estruturas romanas” entre os sécs. II a.C. e II d.C.

Descoberta espantosa!

Estou particularmente curiosa quanto aos achados da Idade do Ferro. Será que trazem informações sobre a tão pouco conhecida civilização Tartéssica? Pela forma como foram designados, o mais provável é que não, mas pode ser… pode ser…

Lembrei-me de mim, jovem estudante, em campanhas arqueológicas Alentejo dentro. Com que entusiasmo encontrei, numa delas, perto de Ferreira do Alentejo, uma esculturazinha igual a esta:


Era uma deusa com olhos de sol (como baptizá-la de outro modo?), divindade adorada pelos Tartessos, povo que sabemos ilustre, que ocupou o Sudoeste da Península Ibérica enquanto os Celtas ocupavam quase tudo o resto. A Bíblia refere-se-lhes e os gregos também, nomeando a sua riqueza. Muitos arqueólogos têm-se dedicado a procurá-la, vão encontrando algumas coisas, mas a sua mítica capital (junto do Guadalquivir?) mantém-se oculta. Sabemos que decaíram com as rivalidades entre gregos e fenícios e que as guerras púnicas, travadas entre cartagineses e romanos lhe terão apressado o fim. Sabemos isso e já é muito, se pensarmos que, até há pouco tempo, se acreditava que Tartessos era uma lenda.

13/10/2006

Sexta-feira 13


Sexta-feira, madrugada de treze de Outubro de 1307: por toda a França, e por ordem de seu soberano Filipe, o Belo, as residências dos Cavaleiros do Templo são arrombadas e os seus membros capturados. Entre eles está Jacques de Molay, seu derradeiro grão-mestre. Submetidos a tortura, quase todos confessarão práticas hediondas, desde o cuspir na cruz à idolatria e à sodomia. À prisão suceder-se-ia inquérito e julgamento. Muitos seriam condenados à morte pelo fogo. Desde então, a sexta-feira 13 está associada a dia de azar.

Os Templários foram a vítima provável de um tempo melindroso. O século começara trágico por toda a Europa, com os maus anos agrícolas a sucederem-se e, com eles, a inevitável fome e a morte por inanição. Os monarcas europeus andavam em palpos de aranha, sem saberem o que fazer para deitar mãos a tamanha miséria e, se às vezes tinham sucesso, outras vezes acrescentavam-na. Dos campos fugia-se para as cidades pois acreditava-se que os seus ares eram benéficos, mas tamanho afluxo amontoou multidões que, por isso mesmo, morriam mais e revoltavam-se mais. Qualquer boato era verdade certa, inflamavam-se os ânimos e qualquer coisa servia de rastilho neste barril de pólvora.

Devido à sua dedicação a actividades lucrativas, os cavaleiros templários foram alvo da cobiça dos monarcas em aflição: cobiçavam-lhes as riquezas, embora se devessem preocupar em aprender com eles. Talvez seja este o motivo que levou Filipe, o Belo, a ordenar a sua prisão, mas todo o processo é tão obscuro que nada nos parece convencer. O facto é que os Templários são acusados de heresia num século recheado delas e acabarão tão vítimas da inquisição como os cátaros e outros que tal.

O processo movido pela Cúria Romana não foi bastante para convencer os monarcas peninsulares que, entre si, combinaram comum actuação e, apesar de todos acatarem a decisão de extinção da Ordem, decidiram que os seus bens reverteriam para as respectivas coroas. Além disso, pelo menos em Portugal e Aragão, esses bens seriam usados para a fundação de ordens religiosas nacionais cujos primeiros membros seriam antigos templários. Em Portugal, seria a Ordem de Cristo, ornada com a mesma cruz templária, aquela que identificará as caravelas e as naus dos Descobrimentos.

Em Portugal, o primeiro Grão-Mestre foi Gualdim Pais, companheiro de D. Afonso Henriques na batalha de Ourique. Foi nele que o nosso fundador depositou a responsabilidade, nunca desmerecida, de defender as terras conquistadas para Sul. Na luta contra os sarracenos, os Templários estavam sempre na linha da frente. A Gualdim Pais devemos a fundação de Tomar (está aí sepultado na igreja de Santa Maria do Olival) e a construção do castelo de Almourol e os seus cavaleiros são os responsáveis por nunca, depois de conquistada, termos perdido a linha do Tejo. Ao recusar entregá-los à fogueira, inocentando-os de todas as acusações, D. Dinis soube reconhecer o seu enorme contributo para a nacionalidade. Desse acto lúcido nasceu a possibilidade da epopeia. Bem-hajam todos eles!

10/10/2006

Singularidades



Deitei-me em terra macia
Fiz das ervas o meu leito
E p'ra ser como devia
Nasceu um amor-perfeito!

O amarelo é luz do dia,
E o vermelho, cobertor
Mas se a vida é alegria
Que o negro não seja dor!


(Quando queremos saudar a vida não importa se a rima é pobre!)

As quadras que se seguem são do Jorge Guedes e, porque não merecem ficar confinadas à caixinha dos comentários, aqui vão elas:

Lindo amor, e que perfeito!
Veio dar-me luz à casa,
Que até se me pôs o peito
Em saltos, a arder em brasa
.........
Olhando-me bem de frente,
Cabeça erguida ao sol,
Lembra-me assim de repente
Carinha de rouxinol
.........
Pode nem saber cantar,
Suas cores serem dif'rentes,
Deixa m´lodias no ar
E que as cantem outras gentes!

01/10/2006

Um pouco de tudo: mitologia, astronomia e Camões

Júpiter era um pinga-amores! Não havia rabo de saia com o seu palminho e beleza que o não fizesse perder-se de paixão. De nada lhe importava que a bela fosse mortal ou compartilhasse da eternidade divina. A beleza, essa sim, era a sua perdição. Perdição dele e perdição das belas pois, uma vez descoberto o enlevo, era sobre elas que a fúria de Juno se abatia.
Nas Metamorfoses, Ovídio conta-nos a história dos amores de Júpiter com a ninfa caçadora Calisto, companheira de Diana. Desse enlevo nasceu Árcade que viria a ser rei dos Pelasgos do Peloponeso que, a partir de então, passariam a designar-se por árcades. Este, como todos os mitos, conhece numerosas variações. Uma delas diz que Juno, furiosa por se ver enganada de novo, transforma Calisto numa ursa e que, certo dia, Árcade, já crescido e andando à caça, ao ver uma ursa vai em sua perseguição e só a intervenção rápida de Júpiter impede que o filho mate a mãe. Juno, furiosa de novo, transforma Árcade numa ursa menor, então, Júpiter, compadecido de ambos, sopra os dois para o firmamento, transformando-os nas constelações que tão bem conhecemos. Mas nem aí Juno sossega, pois consegue que Neptuno lhe prometa que mãe e filho jamais se banharão nas suas águas, ou seja: estarão condenadas a nunca declinarem e, para garantir o cumprimento do castigo, põe Arcturo de vigia (Arcturo, quarta estrela mais brilhante do céu, é a estrela principal da constelação Boieiro. O seu nome significa guardião da ursa).

A astronomia dos Descobrimentos vem desmentir a crença de que as duas ursas não declinam e que, a partir de certa latitude sul, elas, de facto, “mergulham no oceano”, tornando-se invisíveis no céu. Foi por esse motivo que os portugueses, rumando a latitudes cada vez mais austrais, precisaram de encontrar novos pontos de referência celeste.

Camões dá-nos conta da mitologia greco-romana e, a cada passo de Os Lusíadas, prova que estava a par das novas descobertas astronómicas e associa, com impressionante rigor cronológico, esses conhecimentos com o decurso da viagem de Vasco da Gama. A partir deste ponto citarei passagens de um artigo do Portal do Astrónomo onde se divulga uma obra magnífica, do início do séc. XX: A Astronomia de Os Lusíadas de Luciano Pereira da Silva.

“Quando se viaja para Sul, estas constelações vão-se aproximando do horizonte, mergulhando progressivamente no mar, até se tornarem invisíveis. É esse fenómeno que Camões descreve na seguinte estância.

Assi, passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dous invernos fazendo e dous verões,
Em quanto corre dum ao outro Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.
Canto V, 15

(…)
A partir do equador, todas as estrelas da constelação mergulham no horizonte, embora todas tenham ocaso e nascimento. Mas a partir de que latitude Sul se deixa de ver a Ursa Maior? Na próxima estância, Camões fala-nos dos povos que nunca as sete flamas viram.

Crescendo cos sucessos bons primeiros
No peito as ousadias, descobriram,
Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,
Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
De África os moradores derradeiros,
Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,
Foram vistos de nós, atrás deixando
Quantos estão os Trópicos queimando.
Canto VIII, 72

(…)
O facto é que a partir de 30ºS (antes mesmo de passar o cabo da Boa Esperança), algumas das estrelas da constelação de Ursa Maior já são invisíveis e as restantes erguem-se pouco acima do horizonte, deixando a constelação de poder ser identificada, podendo assim Camões afirmar que os moradores dessas paragens não conheciam esta constelação. (…)”

Quanto mais se lêem Os Lusíadas mais se aprende a amá-los e a respeitar um autor que a tamanho trabalho se deu. São duas epopeias numa só, a do povo portugês e a da escrita de Camões!

Para mais informações sobre as duas ursas celestes, este artigo de Nuno Crato é muito interessante.