03/11/2006

Abandono

O peso do céu abateu-se sobre a terra em bátegas longas, repassando os corpos de quem se via obrigado a enfrentar a rua. O brilho intenso dos relâmpagos assustava os meninos que, ao ribombar dos trovões, escondiam a cabeça como fazem os passarinhos. Os estados da atmosfera são, para os garotos dos subúrbios, a única face da natureza que lhes é permitido conhecer. Por isso não lhe têm amor.

Em muitas escolas do nosso País, milhares de crianças, estando dentro da escola, vêem-se obrigadas a enfrentar os elementos para mudarem de sala: os passadiços cobertos são fingimentos inestéticos de quem, sabendo que não, quer mostrar que criou condições de estar. A roupa das crianças absorve a água que o corpo há-de secar, num processo que se repete de hora e meia em hora e meia, quando não é de três quartos em três quartos de hora. Algumas escolas são constituídas por numerosos pavilhões – seis, sete, nove… – dispersos por terrenos de declive acentuado, estando os diferentes níveis ligados entre si por vários lanços de escadas. Estas escolas desconfortáveis são, frequentemente, o único lugar de carinho e atenção para muitos meninos.

Comecei o artigo pela descrição do dia de hoje. No dia de hoje, o António entrou na minha aula, encharcado como os outros, mas com um pé calçado e outro descalço. O António é um menino doente mas a família, por ter alguém ainda mais doente do que o António, rejeita a ideia da sua enfermidade. Ao fazê-lo, nega-lhe a hipótese de tratamento e invalida-lhe o futuro.

- António, tu não podes andar descalço porque ainda adoeces!
- Eu não sou António! Sou Joaquim!
- Mas tu chamas-te António!
- Não! Chamo-me Joaquim. Joaquim é o meu primeiro nome!

Mas não. Joaquim é o seu segundo nome, embora eu aceitasse calmamente a sua decisão enquanto ele insistia que se não podia calçar porque tinha uma ferida sobre os dedos do pé. O próprio pai, que o levara de carro até à escola, achara que essa era a melhor solução. Foi então que a tragédia do António se materializou perante mim. Abandono!

Hoje vim doente para casa.


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Naturalmente, António Joaquim é nome fictício.

6 comentários:

Chanesco disse...

Cara Mps

Tragédias como a que descreve só a nossa sensibilidade as pode distinguir.
Pior será ainda quando uma criança nestas condições, que provavelmente nem almoçou, chega a casa encharcada e ainda tem que andar de balde na mão a aparar as goteiras porque a avó, entrevada, não tem forças para o fazer.

Um abraço aqui da raia.

Jorge P. Guedes disse...

Vou dizer o quê?
Está tudo dito nesta história!

Quando ser pai, para alguns, é só fazer os filhos...

E há tanta gente que gostaria de ter filhos e não pode!...

Estou contigo!
Um abraço
Jorge

MPS disse...

Chanesco

A realidade é sempre capaz de ultrapassar os nossos pesadelos. O pior, mesmo, é quando são as crianças as protagonistas da miséria. E bem sei que aquilo que disse não é só teoria. No entanto, se a avó ainda for capaz de oferecer um sorriso e um beijo à criança, não lhe faltará o mais importante.

MPS disse...

Jorge:

lembraste-me da "Mulher da Erva", do Zeca:

"Há quem viva sem dar por nada
Há quem morra sem tal saber"!

Há tantos homens que ñão o são!

Anónimo disse...

Faço a ronda, não por imperativos menos concebíveis, mas porque este blogue é duma estética irrepreensível, comprometido com a beleza da vida, a merecer mais e constantes visitas, porque aqui respira-se serenidade, e sinto-me, dum modo agradável, satisfeito, porque a excelência não tem preço, simplesmente, apreço. Desculpe a ousadia: para quando novas expressões idiomáticas? Bom fim-de-semana.

MPS disse...

Mais uma vez tenho de agradecer tanta simpatia ao Jofre.

Tem razão, o Brègancês tem andado um pouco votado ao abandono. Prometo que, por estes dias, lhe volto a pegar.