14/05/2006

DESLUMBRAMENTO

1 - Quinta-feira, à entrada da sala de aula:

- "Stora, trouxemos o poema. Já percebemos porque é que no-lo mandou ler!"
Eu já nem me lembrava. Fora na aula anterior, a propósito do Iluminismo e da importância do saber científico. Interpretávamos a Lição de Anatomia de Rembrandt e os sons enojados e cada vez mais audíveis daqules dois, vindos da mesa do fundo, não me deixaram fingir que não dera conta.

- "Vá, parem com isso!"
- "Então, que quer, isto faz impressão!"
- "Queira Deus que o médico que vos vai operar ao estômago seja menos sensível!
- "Tem razão, mas isto é mesmo horrível!"
- "Tenho um trabalho de casa especial para os dois: na próxima aula trazem, para ler alto, o poema As Pessoas Sensíveis" de Sophia de Melo Breyner. Arranjem-se como quiserem. Eu tenho o livro, mas não o empresto. Não vos digo, sequer, o título do livro em que o poema está incluído, e também não sei se existe na biblioteca da Escola!"

Quando saí daquela aula já me tinha esquecido do trabalho que lhes marcara. Confesso que o fizera na brincadeira e, conhecendo a aversão dos jovens pela leitura, sobretudo de poesia, jamais contei que me levassem a sério. Mas levaram e cumpriram. Leram o poema à turma...
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas..."

(Ai este Livro Sexto tão belo!)

... e eu li-lho também, e comentámo-lo e eles deram o braço a torcer, já com outros modos:
- Ó stora, é verdade, mas custa muito ver estas coisas"
E então pudemos conversar sobre algo bem diferente: o pesar perante a morte e as preferências de cada um. E os meus miseráveis 45 minutos de aula voaram e os vendilhões do tempo poderão pedir-me conta deles!

Estes garotos deslumbraram-me porque souberam pedir-me desculpa cumprindo um desejo meu e porque me ensinaram que dão importância às coisas.

2 - Sexta-feira, numa passagem esconsa, sentado a uma mesa, de frente para a parede

-"Estás mal disposto?"
-"Não, estou de castigo!"
-"Então porquê?"
-"Porque disse palavrões à 'contina'!"
-"Vejo que estás a desenhar. Tu desenhas muito bem!"
(baixou os olhos, à espera do que vinha a seguir.)
-"E fizeste um origami!"
-"Não! Isto é um coelho feito com dobragens!..."
-"E desenhaste muito bem! O coelho gosta tanto de cenouras, que até parece que é a cenoura que lhe está a pedir para a comer!"
-"Pois é! E o céu também está lindo!", acrescentou o garoto, ajudando-me sem querer.
-"Tu achas que uma coisa bonita fica bem ao pé de uma coisa feia?"
-"Não! As coisas bonitas só ficam bem ao pé das que são bonitas!"- exclamou em tom que não deixava margens para dúvidas sobre a inteligência da minha pergunta.
-"Tu és um rapaz bonito, sabias? Desta vez o seu olhar enfentou o meu e sorriu quando me ouviu concluir:
-"Então, na tua boca, as palavras feias ficam muito mal. Já pediste desculpa à funcionária?
-"Não, e não me deixam sair daqui para ir à procura dela!
-"Mas tu estás arrependido? "
-"Estou!"
-Vem aí o sr. N., fala com ele e pede-lhe que a procure por ti."

Este garoto de oito anos deslumbrou-me: pela desenvoltura com que falava, porque foi capaz de reconhecer que fez mal e porque me não pediu que intercedesse por ele. Provavelmente, o castigo a que foi sujeito feria-me mais a mim do que ao próprio, mas ninguém gosta de estar com o rosto colado à parede enquanto os amigos brincam. Numa escola não concebo um castigo que não tenha em vista o reconhecimento do erro, condição essencial à sua resolução. Este tipo de castigos é violento e é estúpido; revolta em vez de corrigir. Eu tentei que alguém não se revoltasse, pelo menos daquela vez.

3 - Sábado, na via-sacra da luz, às 9.30 da noite, no adro da igreja

As noites de Maio são frescas. As noites de Maio de Sintra são frias. A cerimónia decorria. Um garoto de calções e manga curta, sem disso ser incumbido, desempenhava o papel de mestre de cerimónias: ora erguia muito a vela, ora a baixava. Mas os espaços litúrgicos para esses movimentos são escassos, e a certa altura o garota cansou-se de estar parado e de ter frio. Começou, então, a subir e a descer as escadas e a circular por entre a assembleia. A dado momento chegou ao pé de mim:
-"A senhora não tem vela?"
-"Não!"
-"Então tome lá esta!"
-"Mas essa é tua e precisas dela. Obrigada, na mesma!"
Depois de um "Ai é verdade!" escapuliu-se por entre os presentes. Voltei a vê-lo, meia hora depois, sobre um torreão encostado às escadas e que serve de floreira. Do seu posto mirava a paisagem possível. A certa altura reparou num homem que se encostara à base do torreão. A cabeça do homem estava ao nível dos pés do garoto que, curvando-se, chamava baixinho:
-"Ó senhor!"
- ...
-"Ó senhor!"
- ...
Como o "senhor" não o ouvia, e, não podendo gritar, debruçou-se e... com a base da vela, cuidadosamente.... bateu-lhe na cabeça como quem bate a uma porta. A cara do homem demonstrava bem a estranheza da situação, mas o garoto (teria oito ou nove anos) nem lhe deu tempo de falar:
_"O senhor daí não vê! Chegue-se para ali, que vê melhor!"

Só a noção das conveniências me impediu de soltar duas boas gargalhadas. Mas ri a bom rir; o sacudir dos ombros a denunciar-me.

Este garoto deslumbrou-me porque, no meio de toda a sua agitação, foi capaz de prestar atenção aos outros. Tal nível de atenção, muito poucos são capazes de o ter, porque implica um modo de ser que inclui os outros na nossa vida. Em algumas salas de aula, este rapaz passaria o tempo de castigo. Eu dei graças a Deus por ele que, mais do que qualquer vela, iluminou a minha noite.

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