28/11/2006

Há dias!



Há dias em que a dor é tão intensa


que só sabemos gritar para dentro!



Dali, Persistência da Memória

26/11/2006

Cesariny



Ontem, saudades de um. Hoje saudades de outro - Mário Cesariny, poeta e pintor do surrealismo português.




Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos















ESTADO SEGUNDO

XX


Não houve

nunca

acima do mundo

a alegre aventura

de um sol militar


24/11/2006

Gedeão

Poema da Malta das Naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes, no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas prais de Portugal.


Rómulo de Carvalho faria hoje anos. O cientista e o professor são um com o poeta Gedeão que me acompanhou na descoberta da poesia. É dele uma das sínteses mais poderosas acerca do ser português: "provo-me e saibo-me a sal". Bem-haja por ela, uma vez que "não se nasce impunemente nas prais de Portugal."

23/11/2006

Apontmentos

Tem-se discutido muito sobre se a Europa pode manter o Estado social. Ora, eu pergunto-me é se a Europa o pode dispensar!

Estas são palavras que ouvi ontem, dia 22 de Novembro, ao Dr. e ex-Presidente da República, Jorge Sampaio. Não são textuais porque, como é meu hábito, cito de cor.

Já tinha saudades de ouvir uma voz de esquerda. Afinal, nem toda a gente se esqueceu do essencial. Que bem me fez ouvi-lo!

*

Também ontem, na RTPN, assisti a um debate sobre a TLEBS. Fraquinho e redundante, diga-se de passagem, já que a entrevistadora resolveu fazer as mesmas perguntas duas vezes, porque um convidado chegou atrasado. Depois da segunda ronda esgotou-se o tempo e tudo ficou por ali, que é como quem diz, com respostas por dar e com muitas perguntas por fazer.

Eu já tinha lido e não queria acreditar, mas ontem ouvi-o pelas vozes da Presidente da Sociedade Portuguesa de Linguística e do Presidente da Associação dos Professores de Português. Os grandes argumentos a favor da nova nomenclatura são os seguintes:

1 – os alunos não aprendem todos a chamar os mesmos nomes às coisas da gramática;

2 – nas escolas não se estuda, ou estuda-se pouco e mal, o funcionamento da Língua.

Estes senhores mereciam um valente chumbo em qualquer curso elementar de retórica e de dialéctica! Aqueles não são argumentos e, muito menos, convincentes. É preciso quase nada de inteligência e de bom-senso para os fazer cair pela base.

1 – Se os professores não ensinam, todos, aquilo que os programas exigem e a nomenclatura em vigor manda, que sejam mandados cumprir a lei e que as universidades, responsáveis pelos estágios pedagógicos, não aprovem a competência científica de quem fizer diferentemente!

2 – Ideia peregrina: como, dizem, não se ensina gramática nas escolas, a solução encontrada foi... inventar novos nomes para os nomes antigos! Então é por causa de ser criada nova nomenclatura que a gramática passa a ser ensinada? Se não fosse trágico estaria a rir-me!

Hoje deu-me para isto.

20/11/2006

A mão



A mão é condição de humanidade!

Que fez o símio para deixar de o ser? Libertou a mão da marcha e tornou-se um de nós!

Nada, na evolução humana, é tão revolucionário como este acto. O primeiro ser a consegui-lo fê-lo há pouco mais de quatro milhões de anos e, na nossa necessária mania taxinomista, ainda o classificamos como “macaco” (piteco); como vivia a Sul, chamámos-lhe “austral”. É, pois, o Australopiteco o ser revolucionário que se não conformou com a condição de quadrúpede, apesar de ter a inteligência dos símios. Teria, certamente, dentição omnívora, mas a fragilidade física condenava-o à condição de herbívoro e de presa na cadeia alimentar.

Com a libertação da mão veio a verticalidade, ainda rudimentar no Australopiteco, mas ambas conferiam-lhe vantagens: de, erguido por entre a savana, avistar os predadores e fugir a tempo; e de não deixar para trás os alimentos recolhidos. A sua mão, de que não precisa para andar e que vai adquirindo um polegar oponível, permite-lhe segurar as coisas. Abriga-se e, abrigado, pode continuar a alimentar-se. A mão é a sua arma.



A mesma mão que trouxe a verticalidade obrigou a coluna vertebral a deslizar: ninguém, que queira caminhar verticalmente, pode suportar o peso de um crânio a empurrá-lo para a frente, desequilibrando-o. A coluna passou a assentar na base do crânio, permitindo-lhe que crescesse. Primeiro ganhou nuca; depois ganhou testa e depois cresceu em altura e, em cada etapa, ia aumentando a sua capacidade e a inteligência. Estas coisas aconteceriam mais tarde, com outros seres que estão na linha da evolução humana, mas tudo isto, desde os primeiros utensílios – os rudimentares seixos quebrados – até ao programa espacial dos nossos dias, só foi possível porque um ser, há quatro milhões e duzentos mil anos, decidiu que era melhor andar sobre dois pés.

Sem mão não haveria humanidade. Nem alimento semeado, nem poesia, nem esta quadra do Torga:

Foi a mão, como um ralo a semear
Que me disse que sim, que acreditasse
Que a vida é um poema a germinar
E portanto, cantasse.

17/11/2006

Neandertal

Podia passear-se entre nós. De calças de ganga, t-shirt desfraldada e boné na cabeça, ninguém daria pela diferença. Seria baixote, espadaúdo e cabeçudo, com arcadas supraciliares salientes e queixo recuado: quem não tem amigos assim?


O Homem de Neandertal, no entanto, não é um de nós. Assim ficou provado pela descodificação do seu ADN mitocondrial.

Há revelações científicas que entristecem. Esta entristeceu-me, porque me habituei a estudar os artefactos produzidos pelo Homo Sapiens Neandertalensis, a mirar-lhe os ossos, a tentar perceber-lhe o modo de vida… e a querer-lhe bem. Em tudo me convenci de que era um ancestral e que as diferenças no esqueleto se deviam a etapas distintas de evolução. Com toda a propriedade, era um sapiens, e com toda a certeza era um ser religioso porque sepultava os seus mortos, embelezando-lhes o corpo com ocre e cobrindo-os com pedras. Isso, acima de tudo, faz dele humano. Outro, que não um de nós, mas não menos que nós!



As primeiras ossadas apareceram antes de Darwin ter publicado As Origens das Espécies: primeiro na Bélgica (1833) e depois em Gibraltar (1848), mas ninguém lhes ligou meia. Em 1855 acharam-se aquelas que viriam a dar o nome à espécie, no vale (Tal) do Neander, na Alemanha, faz este ano 150 anos mas, de início, a comunidade científica interpretou-o como um ser humano deficiente. Só muito mais tarde, à medida que as teorias evolucionistas ganhavam credibilidade, é que se começou a dar-lhe importância.

Sabemos que viveu até há 30 000 anos e que o seu último refúgio foi a Península Ibérica. Pensou-se, devido à semelhança física, que se poderia ter cruzado com o Homo Sapiens Sapiens (Cro-Magnon, na Europa), e até se encontraram esqueletos que comprovavam tal hipótese, como a criança do Lapedo em Portugal e mais outros, na Croácia. Que isso não é verdade, é o que nos dizem agora os biólogos. Como contra factos não há argumentos, teremos de começar a tecer novas hipóteses para as ossadas que conhecemos, embora haja arqueólogos e paleontólogos que põem em causa as conclusões dos testes porque eles só permitiram recuar até há cem mil anos.

Não tendo havido cruzamento de espécies, o Homem de Neandertal passa a integrar o grupo dos hominídeos sem sucesso. Sobre a minha mesa pesam, agora, duas perguntas: extinguiu-se por si (por inadaptação, pelas mudanças climáticas que houve e provocaram alterações no seu habitat) ou extinguiu-se por ser incapaz de competir com a nova espécie que chegou aos lugares que ele ocupava? É verdade que a utensilagem lítica do Homem de Neandertal, sendo muito variada (lâminas, furadores, raspadores, pontas de lança, machados…) praticamente não evoluiu ao longo dos 150 000 anos da sua presença na Europa!



Tal como o Neandertal, o Sapiens saiu de África e dirigiu-se para a Ásia e para a Europa. De início, os utensílios que este fabricava eram semelhantes aos do primeiro, mas rapidamente foram aperfeiçoados e outros foram inventados, permitindo-lhe, por exemplo, caçar à distância e com maior eficácia devido ao uso do propulsor. Caçava sem se expor demasiado e, em competição, quem caça à distância não corre o risco de espantar a caça nem de ser ferido por ela. Quem não dispõe destas armas perde a capacidade de sobreviver e parte em busca de novos territórios, enquanto o mar lhe não barrar o avanço. O litoral português, sabemo-lo, foi o último refúgio do Homem de Neandertal.


Houve, afinal, segundo Génesis?

10/11/2006

Numa véspera de S. Martinho

Os transmontanos não podem exercer cargos públicos: médicos, professores, advogados, etc. perderão os postos de trabalho.
Nenhum estudante transmontano poderá frequentar escolas do Estado Português.
São proibidos os casamentos entre transmontanos e cidadãos portugueses.
Os transmontanos não têm direito à nacionalidade portuguesa.
Os transmontanos não podem residir em Portugal.

Este texto pode parecer um rematado disparate: caberá na cabeça de alguém amputar o país de parte significativa dos seus nacionais? A resposta é um trágico sim, se substituirmos Portugal por Alemanha e transmontano por judeu. São os vergonhosos decretos de Nuremberga, citados aqui no seu espírito, não na sua forma, e datam de 1935. Entre 1935 e 1938 estes decretos foram regulamentados aos poucos, que é como quem diz, esmiuçou-se a possibilidade da perfídia. Por exemplo, todos os judeus foram obrigados a declarar cada um dos seus bens; as suas lojas e escritórios, mesmo que minúsculos, tinham de estar criteriosamente assinalados com a estrela de David para que nenhum não judeu lá entrasse ao engano, a mesma estrela que eram obrigados a trazer na lapela; os judeus perderam o direito legal ao inquilinato; para eles foram criados passaportes especiais em cuja capa figurava um "J" acusador e, que subtileza, cada nome próprio de cada judeu foi acrescentado: Sarah, sendo mulher; Israel, sendo homem.

O cadastro dos judeus e as suas lojas e escritórios assinalados foram o ponto de partida para a ignomínia que se avizinhava: a “noite de cristal”, meticulosamente preparada por Goebbels, chefe da propaganda nazi.

Na noite de 9 para 10 de Novembro de 1938, por toda a Alemanha, Áustria (já anexada) e Sudetas (territórios já conquistados da Checoslováquia), as lojas dos judeus foram pilhadas, as suas casas assaltadas, as sinagogas incendiadas e as obras de autores judeus queimadas em pilha monstruosa, numa orgia de horror. Seria o primeiro dos muitos progroms que estariam para breve. O saldo, por alto, foi o seguinte:

100 mortos e milhares de feridos
30 000 capturados e enviados para campos de concentração
2 000 sinagogas incendiadas
Vários cemitérios e escolas vandalizados
8 000 lojas pilhadas e destruídas
Incontáveis volumes da mais rica literatura e filosofia mundiais reduzidos a cinzas.

Nem precisaram de queimar a Bíblia, porque era o próprio Cristo quem ali ardia!




Entrada da Universidade de Erlangen (9/11/1938). Em cima, um cartaz anuncia a interdição da entrada a judeus. Mais abaixo, uma faixa apela à filiação no Partido Nazi

07/11/2006

Corrupção

Será a corrupção um mal nacional? Será que se aplica à corrupção a máxima que usamos em tom de brincadeira: "não é defeito, é feitio"?

Vem isto a propósito daquelas classificações que alguns organismos internacionais fazem. Desta vez foi sobre índices de corrupção, tabela em que ocupamos lugar de destaque. Este assunto já foi tratatado pelo Jorge Guedes em O Sino da Aldeia, pelo que me abstenho de o abordar pelo mesmo prisma. Sendo assim, deixo aqui dois poemas de duas épocas distintas e que podem ajudar à reflexão.

Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado,
porque fiz lealdade; enganou-m'i o pecado.
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.

Se traiçon fezesse, nunca vo-la diria;
mais, pois fiz lealdade, vel por Sancta Maria,
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Per mia malaventura tive um castelo en Sousa
e dei-o a seu don' , e tenho que fiz gran cousa:
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Per meus negros pecados, tive un castelo forte
e dei-o a seu don' , e ei medo da morte
Soltade-m' , ai, senhor,
e jurarei mandado, que seja traedor.


Diego Pezelho (jogral)

Este poema integra o chamado ciclo da entrega dos castelos. Não me vou alongar em grandes explicações históricas, mas é importante esclarecer que, tendo D. Sancho II sido excomungado pelo papa, este ordenou que o trono de Portugal fosse entregue a seu irmão, D. Afonso III e todos os cidadãos nacionais ficavam desobrigados do dever de obediência a D. Sancho. Pior: quem se lhe mantivesse fiel incorria em risco de excomunhão. Os alcaides dos castelos eram figuras importantes devido ao papel essencial que desempenhavam na defesa do território nacional e a relação que estabeleciam com o rei era uma relação de vassalagem, ou seja: os laços que os uniam eram pessoais e baseavam-se na confiança mútua. Muitos alcaides, como o que é referido no serventês, recusaram-se a faltar à palavra dada a D. Sancho. Mas era o poder que lhes exigia que assim fizessem! Portugal entrou num tempo muito complicado.

O poema seguinte data do séc. XIX. Não se lhe conhece o autor e costuma ser integrado na poesia popular. Data do reinado de D. Maria II. Diz assim, de forma eloquente:

Quem diz que é pela rainha
não precisa de mais nada
embora roube à vontade
ninguém lhe chama ladrão
todos lhe apertam a mão
é homem de sociedade!

Acima da pobre gente
subiu quem tem bons padrinhos
de colarinhos gomados
perfumando os ministérios
é dono dos homens sérios
ninguém lhe vai aos costados!

Nota: José Afonso musicou este poema.

06/11/2006

Os crimes da Sadam

É impossível enumerar todas as vítimas do tirano. Hoje recolhi os dados fornecidos pelos jornais. Estes dados não incluirão todos os crimes, mas são comprovadamente verdadeiros e fundamentam as acusações pelas quais Sadam Husseim e outros criminosos estão a responder.

1982 - 399 pessoas foram detidas e torturadas. Destas, 148 seriam executadas, na sequência do atentado contra Sadam Hussein. As vítimas são todas da terra ou da família do organizador do atentado

1988 - 5 000 curdos são mortos em ataque químico contra Halabja

Década de 1980 - 180 000 mortos curdos na sequência da sua deslocação forçada do Norte para o Sul do Iraque. A morte por inanição era frequente.

Década de 1990 - Repressão sangrenta da revolta no Sul (Xiita) após a expulsão das tropas iraquianas do Kuwait.


Sadam Hussein, ontem, foi condenado pelo primeiro caso citado. As leis do novo regime talvez não permitam que venha a responder pelos restantes. Será enforcado antes disso.

É importante que se olhe às datas, para se reparar na omnipresença dos anos oitenta. O Iraque estava em guerra com o Irão (já então, entre outras, pela questão curda!) e era apoiado pela Arábia Saudita, EUA e, curiosamente, também pela URSS (o Irão contava com o auxílio da Síria e da Líbia). Entre 1981 e 1993 os EUA têm na presidência Ronald Reagan e Geoge Bush. Os crimes de Sadam, apesar de sobejamente noticiados e documentados, não lhes perturbam o sono. Apoiam-no. É por esses crimes, de quando era aliado contra o “eixo do mal”, que Hussein está, agora, a responder. Que nomes estão omissos na lista dos réus?

05/11/2006

Mais corpos sem vida

Saddam Hussein foi condenado à morte. Ele e mais dois outros cúmplices da sua mania assassina. Sadam umas vezes fuzilava, outras vezes lançava gases tóxicos. A sentença que saía do seu pensamento, assinada por sua mão, era sempre a mesma: morte.

Sadam Hussein foi condenado à morte. O pensamento de alguém assim o determinou; as mãos de alguém assim o assinaram. Porque é que estes têm razão? Porque é que o pensamento destes e o gesto destes é diferente do pensamento e do gesto de Sadam?

O corpo de Sadam e o corpo dos que assassinaram em seu nome serão corpos somados aos outros corpos mortos. Mas a morte de Sadam vai outorgar-lhe a auréola das vítimas. Outra coisa, que não a verdade e a justiça, lucrará com o seu enforcamento. A democracia sairá a perder: quem não a conhecia, ficou a saber que ela também é capaz de matar. Que a distingue?

Digo isto porque não me apetece escrever sobre a barbaridade que é o enforcamento. Até na escolha do modo de matar, quem perde é a democracia. Da humanidade nem se fala!

03/11/2006

Abandono

O peso do céu abateu-se sobre a terra em bátegas longas, repassando os corpos de quem se via obrigado a enfrentar a rua. O brilho intenso dos relâmpagos assustava os meninos que, ao ribombar dos trovões, escondiam a cabeça como fazem os passarinhos. Os estados da atmosfera são, para os garotos dos subúrbios, a única face da natureza que lhes é permitido conhecer. Por isso não lhe têm amor.

Em muitas escolas do nosso País, milhares de crianças, estando dentro da escola, vêem-se obrigadas a enfrentar os elementos para mudarem de sala: os passadiços cobertos são fingimentos inestéticos de quem, sabendo que não, quer mostrar que criou condições de estar. A roupa das crianças absorve a água que o corpo há-de secar, num processo que se repete de hora e meia em hora e meia, quando não é de três quartos em três quartos de hora. Algumas escolas são constituídas por numerosos pavilhões – seis, sete, nove… – dispersos por terrenos de declive acentuado, estando os diferentes níveis ligados entre si por vários lanços de escadas. Estas escolas desconfortáveis são, frequentemente, o único lugar de carinho e atenção para muitos meninos.

Comecei o artigo pela descrição do dia de hoje. No dia de hoje, o António entrou na minha aula, encharcado como os outros, mas com um pé calçado e outro descalço. O António é um menino doente mas a família, por ter alguém ainda mais doente do que o António, rejeita a ideia da sua enfermidade. Ao fazê-lo, nega-lhe a hipótese de tratamento e invalida-lhe o futuro.

- António, tu não podes andar descalço porque ainda adoeces!
- Eu não sou António! Sou Joaquim!
- Mas tu chamas-te António!
- Não! Chamo-me Joaquim. Joaquim é o meu primeiro nome!

Mas não. Joaquim é o seu segundo nome, embora eu aceitasse calmamente a sua decisão enquanto ele insistia que se não podia calçar porque tinha uma ferida sobre os dedos do pé. O próprio pai, que o levara de carro até à escola, achara que essa era a melhor solução. Foi então que a tragédia do António se materializou perante mim. Abandono!

Hoje vim doente para casa.


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Naturalmente, António Joaquim é nome fictício.