17/10/2008

O voto






Este de cartaz de Obama, tão cheio de ironia e de duplo sentido, trouxe-me à lembrança uma das obras mais discutidas de Saramago e, também, uma das mais mal interpretadas: Ensaio Sobre a Lucidez.








Lançado em cima das últimas eleições legislativas e lido de forma superficial, o livro foi entendido como sendo um apelo ao voto em branco. Quem só é capaz de entender assim deveria voltar aos bancos da escola! Na verdade, a obra é um libelo contra a redução da democracia aos seus elementos formais, prática que subverte o sistema transformando-o em ditadura disfarçada.

Dou conta, aqui, de algumas reflexões e notas que tomei aquando da leitura do livro e que me parecem profundamente actuais:

  1. profissão de fé, do autor, nas práticas da democracia: os cidadãos vão votar.
  2. o governo age como se fosse tirânico: desconfia dos cidadãos, usa práticas fascistas, superioriza-se face ao parlamento que é esvaziado de importância e significado:
  • Perante o desconhecido, a democracia actua como qualquer ditadura? Ou seja: os modelos democráticos são passíveis de funcionar, apenas e só, nas circunstâncias do prevísivel, do não sobressalto?
  • A democracia é frágil ao ponto de a sua existência , de facto, depender do maior ou menor pendor democrático dos governantes?
  • A democracia que existe é meramente formal?
  • A democracia existe se, e apenas se, os eleitores forem democratas?
  • O voto legitima todos os actos dos governantes eleitos?
  • Pode um governo democrático (eleito democraticamente) tornar-se governo de terror para os cidadãos?

Lido imediatamente a seguir ao Ensaio sobre a Cegueira, este segundo Ensaio soube-me a pouco. Agora que reli as minhas notas...

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Não vindo totalmente a despropósito: Pacheco Pereira publicou um artigo admirável na Sábado e que transcreveu para o seu Abrupto. Fala da publicidade do governo, de um mundo que querem mostrar admirável mas que é (seria) horrendo. Vale a pena ler.

11/10/2008

Coisas Boas (III)

Fui sempre tontinha por gatos. Já baptizei um Mestre Finezas e um Malhadinhas a quem só não chamava meus porque eram dos quintais. Minha, minha só uma, Jerica de alcunha, mas que respondia por qualquer nome desde que fosse a minha voz a chamar por ela. Nos momentos de ternura, bem enroladas uma na outra, eu arrulhava-lhe um “és a minha raposeta, senhora de muita treta” e ela ronronava-me algo equivalente.

Aquilino está-me entranhado no ser, como se fosse mais um constituinte do sangue, e, do mesmo modo que o sangue me dá a cor dos vivos, Aquilino salta-me ao estilo quando a palavra resvala para a pieguice.

Apesar de reconhecer a importância que Aquilino Ribeiro tem para mim, li-o apenas uma vez e não voltei a pegar nele. Ou melhor: li-o em duas etapas, primeiro ainda mal libertada das trancas do soletrar e, depois, naquela idade em que a iniciação à filosofia nos convida a deixar as letras cor-de-rosa. Depois mais nada, como se não fosse preciso. Mas era. É preciso!

Dei-me conta disso depois de ler uma série de ensaios da autoria de António A. Fernandes reunidos sob o título: Aquilino Ribeiro – Sob o Signo da Terra e do Homem.

António Fernandes oferece-nos uma tese sobre a obra do Mestre. Leu, releu, pensou e amadureceu ideias, por isso não encontramos pontas soltas no seu raciocínio e, o que é mais, sugere-nos um fio condutor e uma lógica de leitura. Mas o melhor de tudo é constatarmos a erudição que subjaz por detrás de cada frase e a utilização de um léxico que, não sendo aquiliniano, nele bebe o gosto e o modo de dizer sem aqui d’el-reis que é regionalismo e podem não entender. Introduz-nos ao estudo de O vinho em o Malhadinhas com as seguintes palavras:

Na aldeia não há clubes nem teatros nem concertos; esterlóquios só quando muito bem calha ou o rei faz anos; como desporto o chincalhão (...) Por isso, supremo prazer é a pinguita bebida com todos os vagares, em amena cavaqueira com os amigos, nas tardes de domingo, divagando sobre tudo e coisa nenhuma, ao sabor sagrado do ripanço. (p. 74)

É um trabalho académico sem academismos parvos, um estudo de literatura sem cair em tentações peralvilhas. Lançando mãos da sua experiência como professor, enquanto sugere que Aquilino deveria ser lido nas escolas e lhe descobre uma insuspeita vocação para João de Deus (farpa minha), vai-nos desvendando o seu modo de entender o ensino. Eis um exemplo, a propósito de Cinco Réis de Gente que, segundo defende, se estrutura em torno de uma dupla de valores, (…) a fome de liberdade e o sentido da descoberta. Sem a sua presença, qualquer sistema educativo ou qualquer modelo pedagógico mais não farão que descaracterizar o ser humano em formação e predispô-lo para o desempenho passivo de uma qualquer função social de meteco, porque a escola que não liberta não educa. (p. 174)

As grandes personagens de Aquilino estão todas contempladas, embora A. Fernandes não dedique um ensaio a cada uma delas ou a cada uma das obras em que Aquilino as forjou. Em vez disso, descobre grandes linhas temáticas – “humanitas”, liberdade, viagem, educação – e é através desses temas que nos conduz na compreensão do pensamento do autor, saltando de obra para obra, como que guiando-nos em viagem de descoberta, assunto e método tão caros a Aquilino como ao seu intérprete.

A terra, “a grande matriarca” (p. 110) personagem activa em todos e cada um dos romances de Aquilino, é-nos apresentada do seguinte modo: A presença avassaladora da terra na ficção aquiliniana não pode entender-se como mera contemplação estática e estética da paisagem como elemento decorativo, mas apresenta uma dimensão dinâmica que lhe permite impregnar-se de irrequietude pela errância das personagens que lhe andam associadas. (p 110) Aquilino cria um conceito de espacialidade em torno do qual se gera um impressionante, ainda que menos perceptível, fenómeno que poderíamos designar por espacialização do tempo – o espaço da narrativa esmaga e molda o tempo. (p. 111) Se dúvidas ainda tivesse, nesta passagem encontraria motivos de sobra para reler Aquilino. E testar a tese.

O ensaio intitulado Quando os Lobos Uivam – A casa do homem pareceu-me muito especial. O pensamento e o método de Aquilino são analisados à lupa, mas está lá muito mais do que Aquilino, está lá uma entrega tamanha ao assunto que é como se António Fernandes se transfigurasse no narrador do romance, um narrador que tivesse estado presente ou, mesmo, participado dos acontecimentos. Atentemos nas palavras com que descreve a cena dos confrontos entre os serranos e as forças policiais:

Os sinos tocam a rebate e os habitantes de dez povoados em redor acorrem em fúria tumultuosa (…). Acendem-se altercações entre camponeses e agentes da sacrossanta ordem, das palavras passa-se aos actos, soam tiros, há homens tombados, feridos uns, mortos outros, sobrevém o pânico e a debandada do gentio, desarvorando serra abaixo. Na sequência destes acontecimentos, a Pide invade as aldeias adscritas ao perímetro do projecto florestal e deita o gatázio a uns quantos dos mais influentes (…) (p. 86/87)

A obra de António A. Fernandes ensina-nos Aquilino enquanto nos presenteia com páginas e páginas de boa literatura. Termino com um excerto do ensaio trabalhado com pinças sobre O Livro do Menino Deus:

Não, Aquilino não amava o povo: tresandaria a romantismo e raposinho. Aquilino amava a Beira, enquanto terra, enquanto paisagem. Ao beirão, admirava-o pela sua tenacidade, pela sua resistência face à vida, pela ralé que lhe permite imprevistos golpes de rins quando a sorte se lhe mostra mais madrasta. [Anteriormente escrevera “É uma afeição incapaz de anular a lucidez crítica” (p.57)] Por muito que nele se pretenda ver o paladino dos desprotegidos da mofina, nunca se deu ao cuidado de os transfigurar, como Júlio Dinis ou Trindade Coelho, em macerados mártires do destino, resignados e contentes com a vida que lhes coube em sorte. Havia no escritor um excesso de clarividência, temperada de cepticismo, que o impedia de amenizar humanas debilidades e manhas de que o homo sapiens se apetrechou a partir do momento em que passou a alçar-se sobre os membros inferiores e olhar a vida de frente.” (p.267)

Para o Tonho, com o meu abraço e o meu bem-haja.
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Este livro deveria estar à venda nas boas livrarias. Mas não está e só pode adquirir-se por encomenda à editora:

CENTRO DE ESTUDOS AQUILINO RIBEIRO
UNIVERSIDADE CATÓLICA
ESTRADA DA CIRCUNVALAÇÃO
3504 -505 VISEU
ou:
cear.aquilinoribeiro@gmail.com

04/10/2008

A crise

Esta merece honras de publicação. Nem imagino quem seja o autor, mas faz-nos rir no meio da desgraceira e, só por isso, vale a pena. É a visão de um brasileiro.

Para quem não entendeu ou não sabe bem o que é ou gerou a crise americana, segue breve relato econômico para leigo entender...

É assim:

O seu Biu tem um bar, na Vila Carrapato, e decide que vai vender cachaça "na caderneta" aos seus leais fregueses, todos bêbados, quase todos desempregados. Porque decide vender a crédito, ele pode aumentar um pouquinho o preço da dose da branquinha (a diferença é o sobre preço que os pinguços pagam pelo crédito).

O gerente do banco do seu Biu, um ousado administrador formado em curso de emibiêi, decide que as cadernetas das dívidas do bar constituem, afinal, um ativo recebível, e começa a adiantar dinheiro ao estabelecimento, tendo o pindura dos pinguços como garantia.

Uns seis zécutivos de bancos, mais adiante, lastreiam os tais recebíveis do banco, e os transformam em CDB, CDO, CCD, UTI, OVNI, SOS ou qualquer outro acrônimo financeiro que ninguém sabe exatamente o que quer dizer.

Esses adicionais instrumentos financeiros, alavancam o mercado de capitais e conduzem a operações estruturadas de derivativos, na BM&F, cujo lastro inicial todo mundo desconhece (as tais cadernetas do seu Biu).

Esses derivativos estão sendo negociados como se fossem títulos sérios, com fortes garantias reais, nos mercados de 73 países.

Até que alguém descobre que os bêbados da Vila Carrapato não têm dinheiro para pagar as contas, e o Bar do seu Biu vai à falência. E toda a cadeia sifudeu !

Viu... é muito simples...!!!