01/12/2008

Senhor Inverno

Seja muito bem-vindo, senhor Inverno

com sua chuva doce e benfazeja,

sua neve calma, bela e límpida

e seu frio útil e retemperador!




Seja muito bem-vindo, senhor Inverno, pela promessa do recomeço!

Fotografias gentilmente oferecidas por minha irmã A.M.

25/11/2008

Ironia às escâncaras

Imagem retirada daqui.

Investido em Presidente do Conselho, Salazar ter-se-á rido com este pedido , digamos assim, escrito em Português Técnico, dirigido ao ministro da agricultura:


- E X P O S I Ç Ã O -

Porque julgamos digna de registo
a nossa exposição, senhor Ministro,
erguemos até vós, humildemente,
uma toada uníssona e plangente
em que evitámos o menor deslize
e em que damos razão da nossa crise.

Senhor: Em vão, esta província inteira,
desmoita, lavra, atalha a sementeira,
suando até à fralda da camisa.
Falta a matéria orgânica precisa
na terra, que é delgada e sempre fraca!
- A matéria, em questão, chama-se caca.

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Se os membros desse ilustre ministério
querem tomar o nosso caso a sério,
se é nobre o sentimento que os anima,
mandem cagar-nos toda a gente em cima
dos maninhos torrões de cada herdade.
E mijem-nos, também, por caridade!

O senhor Oliveira Salazar
quando tiver vontade de cagar
venha até nós solícito, calado,
busque um terreno que estiver lavrado,
deite as calças abaixo com sossego,
ajeite o cú bem apontado ao rego,
e… como Presidente do Conselho,
queira espremer-se até ficar vermelho!

A Nação confiou-lhe os seus destinos?...
Então, comprima, aperte os intestinos;
se lhe escapar um traque, não se importe,
… quem sabe se o cheirá-lo nos dá sorte?
Quantos porão as suas esperanças
n'um traque do Ministro das Finanças?...
E quem vier aflito, sem recursos,
Já não distingue os traques dos discursos.

Não precisa falar! Tenha a certeza
que a nossa maior fonte de riqueza,
desde as grandes herdades às courelas,
provém da merda que juntarmos n'elas.

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Adubos de potassa?... Cal?... Azote?...
Tragam-nos merda pura, do bispote!
E todos os penicos portugueses
durante, pelo menos uns seis meses,
sobre o montado, sobre a terra campa,
continuamente nos despejem trampa!

Terras alentejanas, terras nuas;
desespero de arados e charruas,
quem as compra ou arrenda ou quem as herda
sente a paixão nostálgica da merda…

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Ah!... Merda grossa e fina! Merda boa
das inúteis retretes de Lisboa!...
Como é triste saber que todos vós
Andais cagando sem pensar em nós!

Se querem fomentar a agricultura
mandem vir muita gente com soltura.
Nós daremos o trigo em larga escala,
pois até nos faz conta a merda rala.

Venham todas as merdas à vontade,
não faremos questão da qualidade.
Formas normais ou formas esquisitas!
E, desde o cagalhão às caganitas,
desde a pequena poia à grande bosta,
de tudo o que vier, a gente gosta.

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Pela Junta Corporativa dos Sindicatos Reunidos, do Norte, Centro e Sul do Alentejo
Évora, 13 de Fevereiro de 1934

O Presidente
D. Tancredo (O Lavrador)
Texto gentilmente enviado pelo meu amigo António Fernandes

22/11/2008

Explicação

Imagem retirada daqui

E até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia
. Estas palavras de Manuela Ferreira Leite provocaram um sururu dos diabos e o senhor deputado Alberto Martins veio de lá com o seu abrenúncio, não foi para ouvir destas que eu pedi a palavra, e ma não deram, num plenário académico à frente de Hermanos Saraivas e Américos Tomás! Figuras tristes, isso sim. Bem feita, tivessem-me lido!

Quem me leu há-de embrar-se que o senhor primeiro ministro, convidando-nos a um silogismo, afirmou ser ele a Lei. Perante isto, a interpretação das palavras de Manuela Ferreira Leite só pode ser esta: E até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem José Sócrates, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia.

Sem ironias: quem lhe tira a razão?

13/11/2008

Tempos levados da breca







J. Bosch, Navio de Tolos (estudo)






"Quem governa é a lei", disse o senhor primeiro ministro. Ouve-se e não se acredita!


Pegar nesta expressão pelo lado da anedota seria entrar no jogo que nos querem fazer jogar, de fingir que não vemos a realidade, escapando à incómoda tarefa de a nomear. Tenho a certeza de que o senhor primeiro ministro disse o que queria dizer. Ele sabe bem que quem governa é o governo corporizado na sua pessoa e o silogismo mais elementar dá-nos a exacta conclusão que quer que tiremos, para que todos passemos a agir em conformidade:

Quem governa é a lei
Sócrates governa
logo
Sócrates é a lei

O senhor primeiro ministro proferiu tais palavras no dia seguinte ao da avassaladora manifestação de professores. Não foi por acaso! Ele quer que os professores e, através deles, todos os cidadãos, assimilem aquela máxima, corolário de toda a sua prática governativa e não hesita em socorrer-se da intimidação para atingir as metas que se propôs: criar um país onde lhe sejam cantados hossanas. Nos seus sonhos mais ousados, quiçá, imagina o dia em que os professores serão os sacerdotes mais devotados da sua liturgia política.

Na soberba das suas certezas, ele crê que inventa um mundo novo e nem se lembra de quantas vezes se rompeu a cadeira do poder a tantos outros como ele.

02/11/2008

Sequências

Chega Novembro e é assim, lá para as bandas do ocaso. Do céu vêm as cores da alegria e do deslumbramento. Assim venham as da paz!




17/10/2008

O voto






Este de cartaz de Obama, tão cheio de ironia e de duplo sentido, trouxe-me à lembrança uma das obras mais discutidas de Saramago e, também, uma das mais mal interpretadas: Ensaio Sobre a Lucidez.








Lançado em cima das últimas eleições legislativas e lido de forma superficial, o livro foi entendido como sendo um apelo ao voto em branco. Quem só é capaz de entender assim deveria voltar aos bancos da escola! Na verdade, a obra é um libelo contra a redução da democracia aos seus elementos formais, prática que subverte o sistema transformando-o em ditadura disfarçada.

Dou conta, aqui, de algumas reflexões e notas que tomei aquando da leitura do livro e que me parecem profundamente actuais:

  1. profissão de fé, do autor, nas práticas da democracia: os cidadãos vão votar.
  2. o governo age como se fosse tirânico: desconfia dos cidadãos, usa práticas fascistas, superioriza-se face ao parlamento que é esvaziado de importância e significado:
  • Perante o desconhecido, a democracia actua como qualquer ditadura? Ou seja: os modelos democráticos são passíveis de funcionar, apenas e só, nas circunstâncias do prevísivel, do não sobressalto?
  • A democracia é frágil ao ponto de a sua existência , de facto, depender do maior ou menor pendor democrático dos governantes?
  • A democracia que existe é meramente formal?
  • A democracia existe se, e apenas se, os eleitores forem democratas?
  • O voto legitima todos os actos dos governantes eleitos?
  • Pode um governo democrático (eleito democraticamente) tornar-se governo de terror para os cidadãos?

Lido imediatamente a seguir ao Ensaio sobre a Cegueira, este segundo Ensaio soube-me a pouco. Agora que reli as minhas notas...

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Não vindo totalmente a despropósito: Pacheco Pereira publicou um artigo admirável na Sábado e que transcreveu para o seu Abrupto. Fala da publicidade do governo, de um mundo que querem mostrar admirável mas que é (seria) horrendo. Vale a pena ler.

11/10/2008

Coisas Boas (III)

Fui sempre tontinha por gatos. Já baptizei um Mestre Finezas e um Malhadinhas a quem só não chamava meus porque eram dos quintais. Minha, minha só uma, Jerica de alcunha, mas que respondia por qualquer nome desde que fosse a minha voz a chamar por ela. Nos momentos de ternura, bem enroladas uma na outra, eu arrulhava-lhe um “és a minha raposeta, senhora de muita treta” e ela ronronava-me algo equivalente.

Aquilino está-me entranhado no ser, como se fosse mais um constituinte do sangue, e, do mesmo modo que o sangue me dá a cor dos vivos, Aquilino salta-me ao estilo quando a palavra resvala para a pieguice.

Apesar de reconhecer a importância que Aquilino Ribeiro tem para mim, li-o apenas uma vez e não voltei a pegar nele. Ou melhor: li-o em duas etapas, primeiro ainda mal libertada das trancas do soletrar e, depois, naquela idade em que a iniciação à filosofia nos convida a deixar as letras cor-de-rosa. Depois mais nada, como se não fosse preciso. Mas era. É preciso!

Dei-me conta disso depois de ler uma série de ensaios da autoria de António A. Fernandes reunidos sob o título: Aquilino Ribeiro – Sob o Signo da Terra e do Homem.

António Fernandes oferece-nos uma tese sobre a obra do Mestre. Leu, releu, pensou e amadureceu ideias, por isso não encontramos pontas soltas no seu raciocínio e, o que é mais, sugere-nos um fio condutor e uma lógica de leitura. Mas o melhor de tudo é constatarmos a erudição que subjaz por detrás de cada frase e a utilização de um léxico que, não sendo aquiliniano, nele bebe o gosto e o modo de dizer sem aqui d’el-reis que é regionalismo e podem não entender. Introduz-nos ao estudo de O vinho em o Malhadinhas com as seguintes palavras:

Na aldeia não há clubes nem teatros nem concertos; esterlóquios só quando muito bem calha ou o rei faz anos; como desporto o chincalhão (...) Por isso, supremo prazer é a pinguita bebida com todos os vagares, em amena cavaqueira com os amigos, nas tardes de domingo, divagando sobre tudo e coisa nenhuma, ao sabor sagrado do ripanço. (p. 74)

É um trabalho académico sem academismos parvos, um estudo de literatura sem cair em tentações peralvilhas. Lançando mãos da sua experiência como professor, enquanto sugere que Aquilino deveria ser lido nas escolas e lhe descobre uma insuspeita vocação para João de Deus (farpa minha), vai-nos desvendando o seu modo de entender o ensino. Eis um exemplo, a propósito de Cinco Réis de Gente que, segundo defende, se estrutura em torno de uma dupla de valores, (…) a fome de liberdade e o sentido da descoberta. Sem a sua presença, qualquer sistema educativo ou qualquer modelo pedagógico mais não farão que descaracterizar o ser humano em formação e predispô-lo para o desempenho passivo de uma qualquer função social de meteco, porque a escola que não liberta não educa. (p. 174)

As grandes personagens de Aquilino estão todas contempladas, embora A. Fernandes não dedique um ensaio a cada uma delas ou a cada uma das obras em que Aquilino as forjou. Em vez disso, descobre grandes linhas temáticas – “humanitas”, liberdade, viagem, educação – e é através desses temas que nos conduz na compreensão do pensamento do autor, saltando de obra para obra, como que guiando-nos em viagem de descoberta, assunto e método tão caros a Aquilino como ao seu intérprete.

A terra, “a grande matriarca” (p. 110) personagem activa em todos e cada um dos romances de Aquilino, é-nos apresentada do seguinte modo: A presença avassaladora da terra na ficção aquiliniana não pode entender-se como mera contemplação estática e estética da paisagem como elemento decorativo, mas apresenta uma dimensão dinâmica que lhe permite impregnar-se de irrequietude pela errância das personagens que lhe andam associadas. (p 110) Aquilino cria um conceito de espacialidade em torno do qual se gera um impressionante, ainda que menos perceptível, fenómeno que poderíamos designar por espacialização do tempo – o espaço da narrativa esmaga e molda o tempo. (p. 111) Se dúvidas ainda tivesse, nesta passagem encontraria motivos de sobra para reler Aquilino. E testar a tese.

O ensaio intitulado Quando os Lobos Uivam – A casa do homem pareceu-me muito especial. O pensamento e o método de Aquilino são analisados à lupa, mas está lá muito mais do que Aquilino, está lá uma entrega tamanha ao assunto que é como se António Fernandes se transfigurasse no narrador do romance, um narrador que tivesse estado presente ou, mesmo, participado dos acontecimentos. Atentemos nas palavras com que descreve a cena dos confrontos entre os serranos e as forças policiais:

Os sinos tocam a rebate e os habitantes de dez povoados em redor acorrem em fúria tumultuosa (…). Acendem-se altercações entre camponeses e agentes da sacrossanta ordem, das palavras passa-se aos actos, soam tiros, há homens tombados, feridos uns, mortos outros, sobrevém o pânico e a debandada do gentio, desarvorando serra abaixo. Na sequência destes acontecimentos, a Pide invade as aldeias adscritas ao perímetro do projecto florestal e deita o gatázio a uns quantos dos mais influentes (…) (p. 86/87)

A obra de António A. Fernandes ensina-nos Aquilino enquanto nos presenteia com páginas e páginas de boa literatura. Termino com um excerto do ensaio trabalhado com pinças sobre O Livro do Menino Deus:

Não, Aquilino não amava o povo: tresandaria a romantismo e raposinho. Aquilino amava a Beira, enquanto terra, enquanto paisagem. Ao beirão, admirava-o pela sua tenacidade, pela sua resistência face à vida, pela ralé que lhe permite imprevistos golpes de rins quando a sorte se lhe mostra mais madrasta. [Anteriormente escrevera “É uma afeição incapaz de anular a lucidez crítica” (p.57)] Por muito que nele se pretenda ver o paladino dos desprotegidos da mofina, nunca se deu ao cuidado de os transfigurar, como Júlio Dinis ou Trindade Coelho, em macerados mártires do destino, resignados e contentes com a vida que lhes coube em sorte. Havia no escritor um excesso de clarividência, temperada de cepticismo, que o impedia de amenizar humanas debilidades e manhas de que o homo sapiens se apetrechou a partir do momento em que passou a alçar-se sobre os membros inferiores e olhar a vida de frente.” (p.267)

Para o Tonho, com o meu abraço e o meu bem-haja.
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Este livro deveria estar à venda nas boas livrarias. Mas não está e só pode adquirir-se por encomenda à editora:

CENTRO DE ESTUDOS AQUILINO RIBEIRO
UNIVERSIDADE CATÓLICA
ESTRADA DA CIRCUNVALAÇÃO
3504 -505 VISEU
ou:
cear.aquilinoribeiro@gmail.com

04/10/2008

A crise

Esta merece honras de publicação. Nem imagino quem seja o autor, mas faz-nos rir no meio da desgraceira e, só por isso, vale a pena. É a visão de um brasileiro.

Para quem não entendeu ou não sabe bem o que é ou gerou a crise americana, segue breve relato econômico para leigo entender...

É assim:

O seu Biu tem um bar, na Vila Carrapato, e decide que vai vender cachaça "na caderneta" aos seus leais fregueses, todos bêbados, quase todos desempregados. Porque decide vender a crédito, ele pode aumentar um pouquinho o preço da dose da branquinha (a diferença é o sobre preço que os pinguços pagam pelo crédito).

O gerente do banco do seu Biu, um ousado administrador formado em curso de emibiêi, decide que as cadernetas das dívidas do bar constituem, afinal, um ativo recebível, e começa a adiantar dinheiro ao estabelecimento, tendo o pindura dos pinguços como garantia.

Uns seis zécutivos de bancos, mais adiante, lastreiam os tais recebíveis do banco, e os transformam em CDB, CDO, CCD, UTI, OVNI, SOS ou qualquer outro acrônimo financeiro que ninguém sabe exatamente o que quer dizer.

Esses adicionais instrumentos financeiros, alavancam o mercado de capitais e conduzem a operações estruturadas de derivativos, na BM&F, cujo lastro inicial todo mundo desconhece (as tais cadernetas do seu Biu).

Esses derivativos estão sendo negociados como se fossem títulos sérios, com fortes garantias reais, nos mercados de 73 países.

Até que alguém descobre que os bêbados da Vila Carrapato não têm dinheiro para pagar as contas, e o Bar do seu Biu vai à falência. E toda a cadeia sifudeu !

Viu... é muito simples...!!!

24/09/2008

Camilo


Camilo Castelo Branco tem um ódio de estimação: o Marquês de Pombal. Por alturas do centenário da sua morte, em que se organizaram grandes comemorações com particular empenho dos republicanos, Camilo, no melhor do seu estilo eloquente e verrinoso, traçou-lhe o retrato. Transcrevo algumas passagens do final da obra.



(Capa da 4.ª edição, de 1943, revista pelo Dr. Augusto César Pires de Lima)

O rei estava a expirar, quando o Marquês foi demitido de um modo original. Saiu-lhe o cardeal da Cunha ao salão da entrada, e disse-lhe: V. Ex.ª pode retirar-se do paço, onde já não tem que fazer. A intimação brutal partia de um homem que o Marquês elevara depois de o ter humilhado a vilíssimas condescendências. O cardeal vingava-se. – Ponha-se na rua! E depois o proscrito assanhado vingava-se do cardeal: - que ele votara pela morte dos meninos da Palhavã, que ficara com a baixela da casa de Aveiro sem pagar. «Ah! Ele é isso? O ladrão das pratas disse que fui eu que as roubei? Então deixa estar que eu já te arranjo, patife!» Supremos biltres, os dois ministros! (P. 243)

(…)

O Marquês deixara o povo na sua velha miséria bestial, e o fidalgo na sua arrogante imbecilidade – mas povo e nobreza sem vislumbres de dignidade. A opressão, um longo sofrimento são os maiores aviltadores da alma. O povo beijava a fímbria do hábito andrajoso de Fr. Miguel da Anunciação, que saía trôpego e cego do cárcere de Pedroiços. Os Távoras aceitavam comandâncias de tropas, e o marquês de Alorna esquivou-se a aparecer na côrte sem que a sua augusta senhora e rainha o ilibasse da mancha de conspirar contra seu augusto senhor e rei D. José. O Marquês não tinha que temer-se da ira do povo nem da honra da nobreza. O despotismo embrutecera-os todos em vinte e sete anos de terror, de tristeza, de uma desconsolação profunda, que se revela na paralisação da jovialidade popular daquele longo período. Durante o reinado de D. José I não houve uma festa nacional (…). A inauguração da estátua equestre foi ainda um violento assalto aos haveres do comércio, quebrantado pelas Companhias, e à classe dos operários, espoliados pela rapacidade do correeiro (1), uma das trombas absorventes do Marquês. (p 251-252)

(…)

A História, para vingar a Justiça, levantou um patíbulo a esse infame imortal, e a democracia engrinaldou-lhe o cadafalso em altar, volvido um século. Há muito que recear da doblez de tais sacerdotes. A Liberdade, essa então não tem nada que esperar dêstes seus filhos bastardos. Ao passar pelo monumento ao Marquês, que vai erigir-se, a Justiça há-de procurar nas praças de Lisboa a estátua do conde de Basto; e, não a encontrando, perguntará se as fôrcas da Cordoaria e de Belém eram mais necessárias que as fôrcas do Cais-do-Tôjo e da Praça-Nova ao progresso do género humano. (p. 264)

S. Miguel de Seide, 31 de Maio de 1882
___
(1) O juiz do povo Manuel José Gonçalves

11/09/2008

Antero

Não é pelo dia, porque dele prefiro outros. É para que este soneto se ligue com o artigo anterior. Do seu "Tese e Antítese" escolho a última parte:

Num Céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino:

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante...
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasfema ou ergue um hino...

A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da luta,
Té que fecunde o sangue dos heróis.



Há Homens cujo exemplo nos deve servir de bandeira. Assim Salvador Allende. As últimas palavras que dirigiu ao povo chileno atestam a dignidade e a coragem do seu carácter, tornando mais infame a perfídia de que foi primeira vítima. (Pode ouvir o discurso aqui)



Yo no voy a renunciar! Colocado en un tránsito histórico, pagaré con mi vida la lealtad del pueblo.
(…)
El pueblo debe defenderse, pero no sacrificarse. El pueblo no debe dejarse arrasar ni acribillar, pero tampoco puede humillarse.

Trabajadores de mi patria: tengo fe en Chile y su destino. Superarán otros hombres este momento gris y amargo, donde la traición pretende imponerse. Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre para construir una sociedad mejor.
¡Viva Chile! ¡Viva el pueblo! ¡Vivan los trabajadores!

Éstas son mis últimas palabras y tengo la certeza de que mi sacrificio no será en vano. Tengo la certeza de que, por lo menos, habrá una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición.


Hoje, é este o 11 de Março que quero recordar, iluminando-o, embora, com as palavras de esperança de Sergio Ortega

El Pueblo Unido - Victor Jara



El pueblo unido jamás será vencido,
el pueblo unido jamás será vencido...

De pie, cantar
que vamos a triunfar.
Avanzan ya
banderas de unidad.
Y tú vendrás
marchando junto a mí
y así verás
tu canto y tu bandera florecer,
la luz
de un rojo amanecer
anuncia ya
la vida que vendrá.

De pie, luchar
el pueblo va a triunfar.
Será mejor
la vida que vendrá
a conquistar
nuestra felicidad
y en un clamor
mil voces de combate se alzarán
dirán
canción de libertad
con decisión
la patria vencerá.

Y ahora el pueblo
que se alza en la lucha
con voz de gigante
gritando: ¡adelante!

El pueblo unido jamás será vencido,
el pueblo unido jamás será vencido...

La patria está
forjando la unidad
de norte a sur
se movilizará
desde el salar
ardiente y mineral
al bosque austral
unidos en la lucha y el trabajo
irán
la patria cubrirán,
su paso ya
anuncia el porvenir.

De pie, cantar
el pueblo va a triunfar
millones ya,
imponen la verdad,
de acero son
ardiente batallón
sus manos van
llevando la justicia y la razón
mujer
con fuego y con valor
ya estás aquí
junto al trabajador.

Poema de Sergio Ortega

28/08/2008

Os Velhos

Um dia também nós ganharemos a aparência etérea dos velhos. O corpo dos velhos parece que perde consistência e balanceia submetido a forças que nós não sentimos. Talvez seja por isso que os seus pés quase não pisam o chão e o seu caminhar se torna oscilante, como se flutuassem. O andar dos velhos é o primeiro sinal de que eles se despedem de nós.

Depois são os olhos, afundados por cataratas de vento. Em que momento perderam o brilho e a cor, como se já não houvesse vida dentro deles nem vida fora deles que possa ser olhada e transmitida do mesmo modo que antes? A cor esbatida dos olhos dos velhos conduz-lhes o olhar para lugares inacessíveis a quem não tem a idade deles.



O mundo dos velhos está todo guardado em recordações. Um dia, também eles hão-de desejar ser recordação. E o nosso coração aperta-se por nós, que os queremos abraçar sempre.

06/08/2008

Amores

Antes de ir de férias, e sem comentários, deixo aqui esta pérola de D. Dinis, provando-se que Trás-os-Montes foi e será terra de amores, furtivos ou nem tanto.

Em nome de Deus amen. Conheçam quantos esta carta virem e leer ouvirem que eu dom Deniz pella graça de Deus Rey de Portugal e do algarve com ho infante dom Afomso meu filho primeiro herdeiro dou e outorgo a vos Branca Lourenço a minha villa de Mirandella com todos seus termhos velhos e novos, dereictos e dereicturas, rendas, padroados e com todo o dereito e jur reall que eu ey e de direicto devo a aver em essa villa e em seus termhos velhos e novos e que vos ajades e possoyades em toda vossa vida. E se Deus tiver por bem que eu aja de vos filho ou filha ou filhas a vossa morte fique a dicta villa com todos seus termhos velhos e novos e pertenças e com todo dereyto reall ao filho ou filhos, filha ou filhas se ho eu de vos ouver. E mando e outorgo que aquel ou aquelles que dese filho ou filhos filha ou filhas se ho eu de vos ouver decenderem de dereicta linha liidimamente aja ou ajam a dicta villa com seus termhos velhos e novos e direictos e padroados como dicto he. E se esse filho ou filhos, filha ou filhas se o eu de vos ouver ou aquelles que delles descenderem de dereicta linha liidimamente morrerem sem filhos liidimos a sobredicta villa com seus termhos, padroados e dereictos torne-se aa coroa do Regno com todos seus melhoramentos livremente e sem embargo nenhum.

E esto vos faço por compra de vosso corpo
. E todollos Reys de Portugal que depos mi veerem que aguardarem e manteverem esta doaçam que eu faço e nunca contra ella veerem em todo nem em parte ajam a beençam de Deus e a minha pera todo o sempre; e se alguns dos Reys de Portugal que depos mim veerem nom aguardarem e manteverem esta minha doaçam e contra ella veerem em todo ou em parte aja a maldiçam de Deus e a minha pera todo o sempre. E por esta doaçam seer firme e mais stavel e nunca viir em dovida dei a vos Branca Lourenço esta minha carta sellada do meu sello do chumbo.

Feita em Lixboa viinte e oyto dias de Joynho. El-Rey o mandou. Afomsso Martins a fez era de mil trezentos trinta nove annos. [Para os mais distraídos: 1301 da era de Cristo.]

In Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Tomo IV, p 443, ed. Câmara Municipal de Bragança, 2000
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Borges de Figueiredo, ao interpretar o túmulo de D. Maria Afonso presente no mosteiro de Odivelas deduz que esta monja será a filhas nascida destes amores de D. Dinis. Teria vindo ao mundo cerca de 1302 e morrido com 18 anos de idade. Ganhou fama de santidade. Deve ter saído à madrasta!

20/07/2008

Coisas boas (II)

Costumo ensinar isto aos meus alunos: na democracia existe o primado da lei. Nas ditaduras, a lei é o arbítrio do chefe. A partir de agora, poderei ler-lhes o seguinte excerto de As Benevolentes de Jonathan Littell:


[Thomas] Expusera-me uma vez em termos luminosos o princípio do funcionamento do sistema (devia ter sido em 1939, ou talvez até nos finais de 1938, por ocasião dos conflitos internos que tinham sacudido o movimento depois da kristallnacht): «Que as ordens continuem a ser vagas, é normal, até qualquer coisa de deliberado, e que decorre da própria lógica do Führerprinzip. Compete ao destinatário reconhecer as intenções do dispensador e agir em consequência. Os que insistem querendo ter ordens claras ou medidas legislativas não compreenderam que é a vontade do chefe e não as suas ordens o que conta, e que compete ao receptor das ordens saber decifrar e até antecipar essa vontade. Aquele que sabe agir assim é um excelente nacional-socialista, e nunca lhe hão-de censurar o seu excesso de zelo, embora possa cometer erros (…).» (p.499)

A obra As Benevolentes é um murro no estômago. Merecidamente, conquistou o prémio Goncourt, apesar de ser uma primeira obra. Nenhum aspecto do nazismo, dos mais horrendos aos mais desconcertantes, ficou de fora do escrutínio do autor. Da meticulosidade com que se estuda quem é judeu de sangue ou, simplesmente, adoptou a religião no cadinho de povos que é o Cáucaso; da justificação da perseguição aos judeus (os únicos verdadeiros inimigos porque são os únicos que permanecem racialmente puros e bastaria deixar dois vivos para, cinquenta anos depois, o problema voltar a existir) às dissertações sobre música, arte e literatura (afinal, havia nazis que liam Kafka). Confesso, no entanto, que o mais desconcertante para mim foi ler a deturpação dos princípios essenciais da grande filosofia alemã. Fica, aqui, a dissertação sobre Kant.

Eichmann continuava: «O imperativo [categórico], tal como o compreendo, diz: O princípio da minha vontade individual deve ser tal que possa tornar-se o princípio da Lei moral. Agindo, o homem legisla.» Limpei a boca: «Creio que estou a ver onde quer chegar. Pergunta-se se o nosso trabalho está de acordo com o Imperativo Kantiano.» -«Não é bem isso. Mas um dos meus amigos, que se interessa também ele por este género de questões, afirma que em tempo de guerra, em virtude se você quiser do estado de excepção causado pelo perigo, o Imperativo Kantiano fica suspenso, porque bem entendido, aquilo que desejamos fazer ao inimigo não desejamos que o inimigo no-lo faça, e portanto o que fazemos não pode tornar-se base de uma lei geral. É a opinião dele, claro está. Ora, pelo meu lado, eu sinto que ele não tem razão (…) mas ainda não encontrei um argumento imparável que lhe prove que ele está errado.» - «Apesar de tudo, é bastante simples, penso eu. Todos convimos em que num Estado nacional-socialista o fundamento último da lei positiva é a vontade do Führer. Trata-se do princípio bem conhecido: Führerworte haben Gesetzeskraft. Bem entendido, reconhecemos na prática que o Führer não pode ocupar-se de tudo e que por isso outros devem também agir e legislar em seu nome. Em princípio, esta ideia devia ser alargada a todo o Volk. Foi assim que o Dr. Frank, no seu tratado de direito constitucional, alargou a definição do Führer Prinzip nos seguintes termos: Agi de maneira a que o Führer, se conhecesse a vossa acção, a aprovasse. Não há qualquer contradição entre este princípio e o Imperativo de Kant.» (…) «Todo o direito deve assentar num fundamento. Historicamente, este foi sempre uma ficção ou uma abstracção: Deus, o Rei ou o Povo. O grande avanço que fizemos foi fundar o conceito jurídico de Nação sobre qualquer coisa de concreto e de inalienável; o Volk, cuja vontade colectiva se exprime através do Führer que o representa.» (pp. 515, 516)

O interlocutor de Eichmann é Max Aue, simultaneamente narrador e protagonista deste livro em que só a história pessoal dessa figura é ficção. Obra de leitura imprescindível que impressiona pelo rigor histórico, pela minúcia e pela capacidade de nos conduzir ao mais fundo horror humano. Ao contrário de Dante na descida ao Inferno, aqui é o próprio verdugo quem nos orienta os passos e nos explica tudo.

05/07/2008

Coisas boas (I)

É preciso sair deste arrepelar os cabelos, deste só reparar no que está mal. Por isso mesmo, quero falar de coisas boas. Começo pelos meus alunos.

Os meus alunos são uns heróis e ninguém pense que isto é falácia.

De manhã, respondem com um sorriso aberto ao meu sorriso rasgado e brincam comigo: “A s’tora vem sempre com uma pica!...” Umas vezes aguentam-me hora e meia de enfiada, outras vezes três quartos de hora e, sem intervalo, ainda eu não acabei a aula de História e já a professora de Matemática entrou na sala, para me render. Os coitados nem têm tempo de sacudir a cabeça para arrumar as ideias. Mesmo assim, lá vem outro sorriso aberto e o trocar de cadernos e de livros sem demora. Depois de outros três quartos de hora virá o intervalo. Comem, vão à casa de banho, jogam à bola, conversam. Conseguem fazer tudo isso em quinze minutos. Abençoados!

Os horários deles são mais longos do que os de muitos trabalhadores. Se forem bons alunos têm trinta e cinco horas de aulas semanais. Se tiverem dificuldades, às trinta e cinco horas acrescentam-se mais uma série de apoios que, tudo somado, dá para assustar qualquer um. Todos têm que cumprir, ainda, horas de estudo em casa e quando chegam de manhã à escola, vêm carregados com muitos quilos de livros e de cadernos. De que nos espantamos, de que nos queixamos se, por vezes, não fazem os trabalhos de casa ou não trazem o manual?

Bastaria isto para já os considerar heróis. Mas heróis a valer, aqueles que provam ter capacidades humanas extraordinárias são os bons alunos e os bem-educados. Eles sabem que nada acontece aos seus colegas que não estudam, que faltam às aulas, que são violentos para os condiscípulos e insolentes para com os professores. Mesmo assim, têm brio em ser bons alunos, pedem que o professor lhes explique o mundo e os ajude a compreender e mantêm uma delicadeza extrema. Acredite-se, ou não, há garotos destes em todas as turmas. Tão resistentes para não sucumbirem à tentação da facilidade, tão corajosos!

Quase todos nos aproximam da família. Trazem-nos fotografias dos avós, dos irmãos… De outros, somos a única família verdadeira, porque só de nós recebem a atenção, o afecto e o conselho que merecem. Quantas vezes, o alimento!

É por estas razões que me confunde ouvir falar mal da garotada. Também eu tenho alunos malandros, daqueles que merecem um bom par de estalos; também me passam marginais pelas mãos. Mas estes plurais podem contar-se pelos dedos de uma mão e todos os outros não merecem a desconsideração de serem confundidos com eles.

Enquanto preencho papéis insanos e redijo relatórios para que conste, sinto saudades dos meus garotos, os únicos que dão sentido, alegria e beleza ao meu trabalho.

24/06/2008

Exames Nacionais


Enquanto não há tempo para mais...

Está aqui

Retirei-lhe a legenda porque orientava a leitura para um sentido que, agora, me não importa tanto.

14/06/2008

Coisas

1

Fica na Avenida da Índia, junto a Belém. É a mais importante biblioteca e arquivo da arqueologia portuguesa. Grande parte do seu espólio está por estudar, porque isto da arqueologia em Portugal só pode ser feito em tempo parcial – nas férias dos professores universitários que se fazem acompanhar dos seus alunos. Tratando-se de um acervo importante da nossa memória colectiva, merece ser tratado com carinho.

O Museu dos Coches, bem sei, é o mais visitado museu português porque os luxos ostensivos de D. João V espalharam ouro por tudo quanto era meio de transporte da realeza. Merece ser visto. Assim o intuiu D. Amélia que lhe proporcionou abrigo condigno.

Hoje, em que o gosto de mostrar é, pelos vistos, superior ao gosto de fazer, querem mudar o Museu dos Coches. Destinaram-lhe o espaço da biblioteca de arqueologia (que será demolido) para a qual nenhuma das pessoas com competência de decidir se preocupou em encontrar alojamento alternativo. Nem para os livros, nem para os materiais arqueológicos que lá se conservam, em condições técnicas de que mais nenhum espaço dispõe. Para que não sejam só os arqueólogos a importarem-se, aqui fica o link para a petição que está a circular na internet.



2

Calcorrear Lisboa é dos maiores prazeres que tenho. Em Abril, subindo ao Castelo, parei numa pequena praça que se forma na Rua Augusto Rosa, encostada à Sé Patriarcal. Entrei na Fabula Urbis que é um espaço pequeno mas magnificamente aproveitado como livraria e sala de exposições e é pertença do meu amigo João Pimentel. À saída comentei: está tão linda, esta praça. Que bem ficam aqui as floreiras. A Câmara esmerou-se! Qual Câmara? Fomos nós, os moradores, que fizemos tudo! Bem-hajam, então, os moradores que deram vida nova a este bocadinho da cidade.

Agora, pelos vistos, a Câmara quer retirar tudo e os moradores até tiveram que se pôr de atalaia. Quem diabo entende estes serviços e estes senhores que nos governam?

31/05/2008

Assaltos

Recebi por via electrónica. Não sei quem é o autor, mas não resisto a publicar. Sobretudo, porque não há tempo para mais.

26/05/2008

Recados

E ao baixar os olhos mais de espaço,
mirabilmente vi que era torcido
cada um entre seu mento e o busto lasso,
que o rosto para os rins era volvido,
e só vir para trás lhe conviria,
pois por diante lhe era tolhido.
Talvez por força de paralisia
torcer-se alguém assim todo, reputo,
mas nunca vi ninguém nem haveria.
Leitor, se Deus te deixa colher fruto
desta lição, por ti pensa por certo,
como eu podia ter o rosto enxuto,
quando essa nossa imagem vi de perto,
mas tão torta seu choro desabrocha
que as nalgas vai banhar em rego aberto.

Dante, O Inferno Canto XX (Círculo oitavo)






Botticelli, ilustração para o Canto XVIII do Inferno de Dante







«Ai de mim, mestre, o que é isto que vejo?»
disse eu. «Ah, esta escolta antes desfaçam,
e vamos sós; que eu cá não a desejo.
Tão avisado que és, não vês que passam
eles agora a arreganhar os dentes,
e os cenhos carregados ameaçam?»
E ele a mim: «Ao medo não te tentes,
deixa-os arreganhar se a gana é tal,
que o fazem aos cozidos lá dolentes.»
Voltam no dique à esquerda do local;
mas não sem que cada um a língua meta
entre os dentes, ao chefe, por sinal:
e ele tinha do cu feito trombeta.

Dante, O Inferno Canto XXI (Círculo oitavo)
Trad. Vasco Graça Moura

22/05/2008

Chamam honra a isto. Malditos sejam!



Vídeo retirado daqui

17/05/2008

ASAE

Hoje deu-me para isto: o plágio. Não das ideias nem do conteúdo, que não sou de tais manhas, antes da forma. Aí sim, é plágio integral e continuará a ser plágio, embora o anuncie. Despudoradamente, plagio a forma criada pela, por mim muito estimada, Porca da Vila. Vamos lá, então.

A Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE) está a aplicar com rigor os regulamentos comunitários de higiene às instituições de solidariedade social: exige que as cozinhas tenham os mesmos requisitos que as de um restaurante, proíbe as instituições de aceitar alimentos dados pelas populações e deita fora toda a comida congelada em arcas normais. A ASAE alega que o regulamento comunitário sobre legislação alimentar se aplica a qualquer empresa do sector "com ou sem fins lucrativos".
(...)
Uma das exigências é a existência de um túnel de congelação - uma máquina que faz uma congelação ultra-rápida dos alimentos.

17.05.2008, Sofia Rodrigues, in Público


Segundo a DREL, os cerca de 300 alunos da escola deverão ser transferidos para a vizinha Secundária Gago Coutinho, que tem melhores condições e perto de 800 alunos. Mas subsistem dúvidas quanto à continuidade dos cursos que existiam na Infante D. Pedro e sobre o futuro dos professores e funcionários. A presidente do conselho executivo da Gago Coutinho já disse que esta escola vai ter muitas dificuldades em acolher todos os alunos da SIDP. Segundo refere, o estabelecimento tem capacidade para 42 turmas, já está a funcionar com 44 e deverá ter que formar 56 com a entrada dos 300 alunos da Infante D. Pedro.
17.05.2008, Jorge Talixa, in Público

A fotografia foi roubada, despudoradamente, daqui

A ASAE, benza-a Deus, vela por nós e assegura o cumprimento da garantia constitucional de que nenhum português pode ser alvo de discriminação. Se nenhum português, na cantina da empresa, pode comer comidinha caseira, cozinhada com produtos da horta em panela mexida com colher de pau, porque hão-de poder os pobres?

A ASAE, benza-a Deus, sonha com o dia em que, por lei, poderá invadir as nossas casas para atestar da existência de túneis de congelação. Não havendo, zás, vai tudo para o lixo. Os ratos que engordem, porque mais vale portugueses famélicos do que portugueses que não obedecem às leis da higiene alimentar.

A ASAE, benza-a Deus, só se dará por satisfeita quando, a bem das regras, sobre a mesa dos portugueses nada restar não ser a esterilidade desinfectada.

Para quando a criação de uma ASAE das escolas?

10/05/2008

Carta de Pina Manique

Ferreira Fernandes lembrou-me ontem dela, no DN. Deixo-a aqui, inteirinha, endereçada a todos os de direito.

Exmo. Sr. Duque de Cadaval:

Se meu nascimento, embora humilde, mas tão digno e honrado como o da mais alta nobreza, me coloca em circunstância de V. Excia. me tratar por TU - Caguei para mim que nada valho.

Se o alto cargo que exerço, de Corregedor da Justiça do Reino em Santarém, permite a V. Excia., Corregedor Mor da Justiça do Reino, tratar-me acintosamente por TU, - Caguei para o cargo.

Mas, se nem uma nem outra coisa consentem semelhante linguagem, peço a V. Excia. que me informe com brevidade sobre estas particularidades, pois quero saber ao certo se devo ou não Cagar para V. Excia.

Santarém, 22 de Outubro de 1795

PINA MANIQUE Corregedor de Santarém


Sói lembrar-se que Pina Manique, então, Corregedor de Santarém, será o futuro Intendente Geral de Polícia. O Duque de Cadaval, Corregedor-Mor da Justiça do Reino, era, à data da carta, o superior hierárquico de Pina Manique. Esta carta está na Biblioteca Nacional de Lisboa.

07/05/2008

Louros e nódoas

Grande Lisboa, a meio da tarde. A senhora estaciona o automóvel perto de casa. Sai e anda meia dúzia de passos. Três jovens aproximam-se dela: "A chave do carro!" - exigem, ameaçando com a faca no bolso.

Duas semanas mais tarde, noutro local da grande Lisboa, a meio da tarde. A senhora estaciona o automóvel e larga a filha à porta da casa da explicadora. Inexperiente, porque o modelo era novo, trancara a direcção e não estava a ser capaz de voltar a pôr o carro em marcha. Senta-se e abre o livro de instruções, atenta ao automóvel da frente, onde, três jovens cochicham, entram e saem, mexem em objectos. A senhora assusta-se e telefona para a polícia que chega em breves minutos, no preciso momento em que o condutor suspeito, manobrando, encostava o seu ao lado do carro da senhora, tolhendo-lhe os movimentos. Os dois comparsas têm tempo de fugir, mas o condutor é preso.

No mesmo dia, à noitinha, a primeira das duas senhoras recebe um telefonema da polícia: o seu atomóvel fora encontrado. Na esquadra relatam-lhe as circunstâncias e informam-na de que o seu veículo ficará apreendido por alguns dias para que a Judiciária possa fazer as necessárias peritagens.

Três dias depois, ansiosa, a senhora vai levantar o carro. Estava sujo por fora e por dentro, por causa do pó de detecção de impressões digitais, mas fora isso, não se vislumbrava nenhum problema. Dentro do porta-bagagens, informam-na, fora apreendida uma caçadeira.

Apesar da boa aparência, pareceu-lhe conveniente levar o carro ao mecânico, seu conhecido de longa data. Chegada a casa, recebe telefonema do mecânico, insistindo com ela para que fosse à oficina. Não lhe podia dizer nada por telefone. Aí chegada, o mecânico pede-lhe que veja o que está dentro da bolsa pendente das costas do banco do condutor: uma pistola foi o que os seus olhos viram. Calibre de guerra, foi o que lhe disse a brigada da Judiciária onde se dirigiu para a entregar.

E esta história, que começara tão bem com a intervenção pronta da PSP, termina desta maneira!

04/05/2008

Máxima

Olho para os meus filhos e não gosto de os ver velhos. Deus não fez as coisas bem!


Tia Maria Amélia

01/05/2008

Trabalho

Desde a Idade Média que o trabalho é considerado direito do povo: apenas daí lhe vinha o sustento e a vida. Séculos passados, a revolução de Abril consagraria constitucionalmente tal direito. Hoje, pese embora, as sucessivas revisões constitucionais, tal direito mantém-se consagrado, embora com redacção distinta da original. A versão actual fui buscá-la ao portal do governo que faria bem se a consultasse todos os dias. Reza assim:

Constituição da República Portuguesa


(Sétima revisão constitucional - 2005)

PARTE I - Direitos e deveres fundamentais


TÍTULO III
Direitos e deveres económicos, sociais e culturais

CAPÍTULO I
Direitos e deveres económicos

Artigo 58.º
(Direito ao trabalho)

1. Todos têm direito ao trabalho.

2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover:

a) A execução de políticas de pleno emprego;

b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais;

c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores.

25/04/2008

Nem que fosse só por isto

Ora amarelos, ora verdes, dobrados em partes, deixavam ver no exterior algumas linhas traçadas a negro. Eram os aerogramas.

Chegavam ao ritmo do possível; aflita a espera se havia demora. Lá dentro, algumas palavras calculadamente riscadas no intuito de impedir a leitura do engano ou da mensagem. E nós sem sabermos se fora o autor ou alguém sem nome nem rosto nem corpo, mas tão presente, tão abafadoramente presente, como o medo da guerra e o temor pelos nossos.










Os aerogramas eram lidos com a avidez de quem sacia longa sede. Primeiro baixo, movendo os lábios. Era assim que a mãe bebia cada palavra dos filhos e os outros presentes ficavam suspensos dos rictos desses lábios e das pausas que faziam. No fim, a mãe dizia para uma das filhas: "lê lá tu, alto." E no fim: "Lê outra vez." E em cada leitura pedia que se repetissem passagens, como se quisesse gravar aquelas palavras para ser capaz de as reproduzir, para si própria, imaginando a voz dos filhos. Só o pai assumia comportamento diferente: sentado, cabeça descaída, olhar fixo no chão. As mãos cruzava-as sobre os joelhos, para que ninguém visse quando cravava as unhas na carne, a esconjurar a dor.

Nos aerogramas falava-se da saudade e do carinho, perguntava-se pela família, sendo eloquentes pelo que silenciavam e nós nem nos atrevíamos a supor. Calava-se o medo e iludia-se a morte.

Um dia, de madrugada, duas canções: primeira senha, segunda senha. Começara o fim do medo. Não tardaria, aqueles que escreviam os aerogramas diriam, ao vivo, as misérias que viveram, em catadupa como se tivessem medo de esquecer e quisessem fazer de nós testemunhas.

Bem-haja quem no-los devolveu.

*****
O aerograma amarelo foi retirado daqui e o verde daqui.

21/04/2008

Pra não dizer que não falei das flores

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Alguém se lembra, ainda, desta maravilha? Quem se lembra que o autor se chama Geraldo Vandré e que a escreveu para a realidade da ditadura brasileira, irmã gémea da nossa?

Palavras simples, mas que interpelam tanto!


Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Somos todos iguais

Braços dados ou não

Nas escolas, nas ruas

Campos, construções

Caminhando e cantando

E seguindo a canção...


Vem, vamos embora

Que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer...


Pelos campos há fome

Em grandes plantações

Pelas ruas marchando

Indecisos cordões

Ainda fazem da flor

Seu mais forte refrão

E acreditam nas flores

Vencendo o canhão...


Vem, vamos embora...


Há soldados armados

Amados ou não

Quase todos perdidos

De armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam

Uma antiga lição:

De morrer pela pátria

E viver sem razão...


Vem, vamos embora...


Nas escolas, nas ruas

Campos, construções

Somos todos soldados

Armados ou não

Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Somos todos iguais

Braços dados ou não...

Os amores na mente

As flores no chão

A certeza na frente

A história na mão

Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Aprendendo e ensinando

Uma nova lição...


Vem, vamos embora...

19/04/2008

Máximas tiradas de Lot

Lot's Wife, de E. Thor Carlson

Quando saíres de um lugar abominável não tenhas pena dos justos que lá deixaste, porque todos os justos saíram contigo.

Nunca olhes para trás nem te apiedes: a maldade dos que ficaram sorverá o teu olhar, secar-te-á o ser e transformar-te-á em estátua de sal.

11/04/2008

Depois de nós

A Natureza conserva a memória do início dos tempos. Pode parecer quieta mas, em silêncio, aguarda que os pés dos homens deixem de trilhar os caminhos. Então, sem mais delongas, adona-se novamente do chão que lhes emprestara.

Também as casa, santuários protectores dos elementos, conhecerão o mesmo destino. Talvez sejamos nós as últimas testemunhas de que, aqui, se ouviram os risos dobrados das crianças: os nossos risos! Talvez, por isso, sejamos nós os únicos a sentir este nó que nos sufoca a garganta.

06/04/2008

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

No artigo anterior referia-me ao facto de, sob meu ponto de vista, a autora não ter escrito uma única frase que fosse apelativa e me prendesse a atenção. Hoje apetece-me dar exemplo do contrário. Escolhi um autor maior da literatura em Língua Portuguesa, em texto muito pequeno. O livrinho pode ler-se num piscar de olhos, mas quem gosta de desbravar o significado das palavras e dos gestos, de se deleitar a visualizar as imagens e de se surpreender com elas, enfim, quem aprecia a escrita com o mesmo prazer com que degusta o melhor dos manjares, certamente lerá, com todo o vagar, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado. Transcrevo, aqui, algumas passagens.

Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso, funcionária relapsa. Demora-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir até não ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará antes das onze e olhe lá. (...) Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma funcionária subalterna, de rígidos horários. Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com medo do escuro. A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.

Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. (...) Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? (...)

Por mais cedo fosse, mais frio fizesse, estivesse onde estivesse, (...) pela madrugada arribava ele em casa do Sol para cooperar com a Manhãzinha. Sopra que sopra com a imensa bocarrona de ar. Apenas porém a brasa crescia em labareda, o Vento deixava por conta da Manhã atiçar a chama com o abanador das brisas e começava a recordar aventuras (...).
Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais (...). Pouco dada ao trabalho, a manhã deixa-se ficar embevecida a escutar (...) causando irremediável transtorno aos relógios, obrigados a diminuir o ritmo dos pêndulos e ponteiros, na dependência da chegada da Manhã para marcar as cinco horas em ponto. Muitos relógios enlouqueceram, não voltaram jamais a marcar a hora certa (...). (pp. 15-18)


Também os galos deixaram de saber às quantas andavam e, por isso, num dia em que o atraso foi ainda maior, eles e os relógios queixaram-se ao Tempo, "senhor de todos eles". O Tempo, para quebrar a monotonia da eternidade, aceita não castigar a Manhã se ela lhe contar a história que a fez atrasar-se tanto. E a Manhã conta-lhe a história que ouviu do Vento sobre os amores do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá, história que não pode ter desenlace feliz, pois não se está mesmo a ver que os gatos e as andorinhas foram sempre inimigos figadais?

É no Outono que os protagonistas percebem que o seu amor não pode durar. Jorge Amado dá-nos conta da mudança com as seguintas palavras:


No outro dia o Outono chegou, derrubando as folhas das árvores. O Vento sentia frio, e, para esquentar-se, corria zunindo pelo parque. O Outono trazia consigo uma cauda de nuvens e com elas pintou o céu de cores cinzentas.
(p. 85)


A Andorinha Sinhá casa-se com o rouxinol.


No momento em que o cortejo nupcial, numa revoada, saía da capela, a Andorinha viu o Gato no seu canto. Não sei que jeito ela deu no voar que conseguiu derrubar sobre ele uma pétala de rosa, das rosas vermelhas do seu buquê de noiva. O Gato a colocou sobre o peito, parecia uma gota de sangue. (...) Já não havia futuro com que alimentar o seu sonho de amor impossível. Noite sem estrelas, a da festa de casamento da Andorinha Sinhá. Apenas uma pétala vermelha sobre o coração, uma gota de sangue.


A música doía-lhe no coração. Canção nupcial para os noivos; para o Gato Malhado, canto funerário. Tomou da pétala de rosa: olhou mais uma vez o parque coberto pelo Inverno, saiu andando devagar. Conhece um lugar longínquo, onde vive apenas a Cobra Cascavel, que ninguém aceita nos parques nem nas plantações. O Gato tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo. (pp. 107-109)

Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Publicações D. Quixote, 2002

01/04/2008

Um livro



Apresentação

D. Sebastião e Miguel Leitão de Andrada nasceram em datas muito próximas. Deana Barroqueiro faz dessa coincidência o início e o pretexto do romance: “D. Sebastião e o Vidente”. O vidente é, naturalmente, Miguel de Andrada, o autor da “Miscelânea”, obra que reúne vários poemas, lendas, etc. e uma bela descrição da batalha de Alcácer Quibir na qual o autor participou.

É um livro muito longo que termina na página 629 com o latino “Finis”. Ao longo dessas páginas, a autora dá mostras da muita e árdua pesquisa que fez e que lhe serviu para descrever bem os ambientes e situar correctamente as personagens e os factos históricos. Para mim terminam aí as virtudes do livro.

Estilo

Há pouco a dizer sobre o estilo de Deana Barroqueiro, a não ser que não escreve capítulos maiores do que três ou quatro páginas facto que, só por si (porque se trata de artimanhas para prender o leitor), já é um insulto ao próprio leitor, insulto que vai repetindo pela voz do narrador com tiradas parecidas com isto: haverá já muitos leitores que estão de garras de fora para criticarem; esses que parem por aqui. A autora saberá (e quem a leu, também) que obras tomou por modelo quando começou a recear a crítica!

O romance está escrito numa prosa escorreita e certinha, pouco entusiasmante como uma linha recta. Ali não há rasgos literários e não se encontra uma frase em que o leitor se possa deter para a saborear melhor.

Toda a gente sabe de quem é o verso "amor é fogo que arde sem se ver". As normas da escrita ordenam, no entanto, que se utilizem aspas ou itálico e, naturalmente, se faça referência ao autor. Frequentemente, Barroqueiro não faz uma nem outra coisa. Mas faz mais: quando cita (percebe-se que é citação porque surge em itálico) não indica a fonte, o que, além de irritante, está errado. Ainda sobre citações, faz aparecer alguns poemas em contexto algo que, sendo exercício interessante a realizar com alunos, me parece de pouca valia para a literatura, tanto mais que faz parecer que os poetas não pensam os poemas e que os não trabalham, surgindo-lhes prontos e perfeitos.

Enredo

1 – A ideia não me parece má para um romance: uma criança nasce em data próxima do nascimento do rei Desejado e começa, desde menino, a ter visões terríveis. O romance, para fazer sentido (e jus ao título), deveria ter aproximado as duas personagens, mas a verdade histórica, a que a autora quer ser fiel, impede tal aproximação. Os dois falam-se, apenas, uma vez, durante o périplo de D. Sebastião pelo Algarve. E é por essa distância que o enredo não faz sentido, já que as visões de Miguel Leitão de Andrada nunca chegam ao conhecimento do Rei nem, coisa estranha, advertem o vidente dos perigos que o seu rei irá correr. Pelo contrário, ao longo da trama, apesar das visões, Miguel mostra-se um defensor acérrimo do Desejado e um entusiasta da conquista de África.

2 – A autora quer, a todo o custo, explicar a aversão de D. Sebastião pelo casamento. Para isso, lança mão da tese, (contestadíssima pelos historiadores) segundo a qual, o rei sofria de gonorreia. Não é a verosimilhança da doença que aqui se contesta. O que não posso tolerar é o ferrete lançado sobre uma figura real: Cristóvão de Moura.

Para quem se não lembra, Cristóvão de Moura, fidalgo português, partiu para Espanha integrando a casa da princesa D. Joana, mãe de D. Sebastião que, pouco tempo depois de ver o filho nascido, regressou ao seu país, tendo ajudado o irmão Filipe na governação e assumido, por algumas vezes, o cargo de regente. Cristóvão de Moura tem o seu nome manchado entre os mais férreos patriotas portugueses que o acusam de traidor porque, desde sempre, se assumiu fiel de D. Filipe, tendo-lhe sido muito útil nos meandros da compra do voto da nobreza portuguesa. Não vem ao caso defendê-lo nem atacá-lo, antes, estranhar como é que alguém, sem provas concretas, o acusa de acto profundamente maquiavélico e ignóbil. Segundo a autora, Cristóvão de Moura, de conluio com os próceres do rei menino (então com onze anos), terá feito com que uma prostituta infectada com gonorreia seduzisse o donzel, tendo como único objectivo impedir que o rei viesse a ter filhos e assim, quando D. Sebastião morresse, Filipe II alcançaria a almejada união ibérica. É uma acusação medonha que escamoteia os conselhos que Filipe II deu ao sobrinho, no sentido de evitar que se lançasse na loucura africana!

3 – De novo, a questão do vidente. O livro chega ao fim com o desenlace da batalha de Alcácer Quibir cuja descrição é das poucas páginas com interesse. Tendo em conta a importância da personagem, seria de esperar que, ao menos em breve resumo, nos fosse contado o resto da vida de Leitão de Andrada, até porque a autora nos deixou suspensos dos seus amores com a prima Beatriz que enviuvara muito antes da batalha. Ora, em termos amorosos, a biografia do cronista de Alcácer Quibir diz-nos que, regressado ao reino após o cativeiro em Fez, se casou em primeiras núpcias com D. Inez de Atouguia e, só depois da morte desta, logrou casar-se com sua prima Beatriz de Andrada. Enfim, fios que ficaram por tecer, dando origem a uma urdidura frouxa e pouco cativante.

*****
Nota
: o livro já recebeu, pelo menos, o prémio Máxima de Literatura, de 2007