28/09/2007

Passar bem!

U outro dia seve Don fuan
a mi começou gran noj' a crescer
de muitas cousas que lhe oí dizer.
Diss' el: – Ir-me quero, ca já se deitar an –
E dix' eu: – Bõa ventura ajades,
Porque vos ides e me leixades.

E muit’ enfadado do seu parlar
Sev’ i gran peça, se mi valha Deus,
E tosquiavam estes olhos meus.
E quand’ ele disse: – Ir-me quer’ eu deitar
E dix' eu: – Bõa ventura ajades,
Porque vos ides e me leixades.

El seve muit’ e diss’ e parfiou,
E a mim creceu gran nojo poren.
E non soub’ el se x’ era mal, se bem.
E quand’ el disse já m’ eu deitar vou
E dix' eu: – Bõa ventura ajades,
Porque vos ides e me leixades.


D. Dinis (in: António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal )





Apetece dizer esta cantiga a tanta gente!
(Fotografia retirada daqui)

21/09/2007

Bem-haja

Há gestos que, de tão generosos, nos reconciliam com o lado bom da vida.

A generosidade está em oferecer, gratuitamente, tempo e trabalho àqueles que se desconhecem.

Hoje, a generosidade entrou em minha casa pela mão da Porca da Vila: leu os meus lamentos e ofereceu-me uma urzeira mais a meu gosto.

Bem-haja!


São para si estas pascoelas.


16/09/2007

Laranjas e traições

Foram os espanhóis que lhe deram o nome: guerra de las naranjas porque, ao entrar em Portugal pelo Alentejo, Godoy, o “Príncipe da paz” (haverá título mais descabido?), colheu um ramo de laranjeira que enviou à sua amante, nada menos do que a rainha Maria Luísa, esposa de Carlos IV de Espanha (Carlota Joaquina, a horrenda esposa de D. João VI tinha bem a quem sair!). Com este gesto, Godoy, primeiro ministro de Espanha e favorito do rei, pretendia simbolizar a conquista de Portugal com cuja coroa sonhava.

A Guerra das Laranjas (1801) foi o primeiro episódio da Guerra Peninsular que se estenderá até ao fim das invasões francesas, mas tudo tinha começado antes, por volta de 1795, quando a Europa absolutista, apadrinhada pela liberal Inglaterra, declara guerra à República jacobina que se instalara em França em 1792. Desengane-se quem quiser ver aqui uma guerra de ideologias, porque isto quase não passa de guerra de cobiça e de rapina. Não são assim todas as guerras?

A Inglaterra e a Espanha faziam parte da aliança para combater a França (a 1.ª das coligações com esse propósito, criada em 1793 e que, além das nações referidas, contava ainda com a Áustria, a Prússia, a Sardenha e a Holanda). Uma e outra, alegando alianças antigas, exigem que Portugal lhes forneça contingentes navais, homens, armas e dinheiro. Ambas, como pode ver-se, marimbavam-se para as nossas necessidades de defesa. O príncipe regente D. João governava o País havia pouco tempo e não soube, por isso e por estar tão mal rodeado de ministros e embaixadores, impor as necessidades do País às exigências dos aliados. Mesmo assim, as nossas embarcações seriam fundamentais para os sucessos de Nelson no Mediterrâneo e a campanha do Rossilhão teria sido ainda mais torpe se não fosse a acção das nossas tropas superiormente conduzidas por Gomes Freire de Andrade.

A verdade militar é que a França derrota a Espanha e, suprema ironia e maldade, a Espanha alia-se à França e, de seguida, as duas exigem que Portugal rompa com a Inglaterra, lhe declare guerra; aprisione navios e pessoas inglesas em terras portuguesas e lhes confisque os bens. Portugal não pode, obviamente, aceitar porque sabe que, no preciso instante em que se afaste dos ingleses, perderá os arquipélagos atlânticos e a Índia. Contra a França combate, agora, a 2.ª coligação (Áustria, Inglaterra, Rússia e Turquia – 1798). É neste contexto que se inscreve a Guerra das Laranjas. As praças alentejanas vão caindo sem que os defensores disparem um tiro, mas, apesar disso, os invasores vão pilhando e sobrecarregando os povos com impostos imorais. Contrariamente, no Norte, Gomes Freire, inconformado com tudo isto, avança pela Galiza onde as populações conquistadas se vão declarando Portuguesas.

Tudo começara a 20 de Maio; a 7 de Junho assinava-se, em Badajoz, a paz que não seria ratificada por Napoleão, ainda primeiro cônsul. Queria muito mais do que o muito que o embaixador português aceitara, de motu proprio, conceder. Novo tratado será assinado em Madrid (29 de Setembro de 1801): a França assegura o pagamento de uma indemnização de vinte e cinco milhões de libras tornesas (das quais, cinco milhões não seriam declarados, para proverem o lucro pessoal dos negociadores); alargamento enorme da Guiana francesa, além das medidas contra a Inglaterra que tinham motivado o início da guerra. A Espanha garante para si a posse das praças de Elvas, Campo Maior e Juromenha, bem como todo o território além do Guadiana onde se inclui, naturalmente, Olivença.



O Príncipe D. João tarda em aceitar semelhante acordo de paz, e novo tratado virá pela mão da sua aliada que assina separadamente, com a França, a paz de Amiens (os preliminares desse acordo datam de 1 de Outubro). Esse tratado parece prever a integridade do território nacional e possessões ultramarinas (artigo 6.º), mas um artigo secreto sanciona a extorsão territorial decidida em Madrid. Bem dizia Talleyrand que Portugal estava metido entre dois terrores e que o menor não era, certamente, o das esquadras britânicas!

Napoleão está imparável: já é imperador dos franceses e a grande parte da Europa tem-na, ou conquistada, ou vassala, ou aliada, que é outra maneira de dizer vassala. Nova aliança se organiza contra si (a terceira, de 1805, que conta com a Inglaterra, a Áustria e a Rússia); Portugal e Espanha negoceiam a neutralidade paga com a França. A Inglaterra, que fecha os olhos no que toca a Portugal, não aceita tal neutralidade à Espanha que se vê, de novo, envolvida na guerra (os seus navios estarão em Trafalgar). Chegamos a 1806 e Napoleão decreta o “Bloqueio Continental”, pedindo à Espanha que o ajude a obrigar Portugal a fechar os seus portos aos ingleses. D. João vai protelando, escrevendo para Inglaterra, propondo alternativas a França, etc. Em 1807 Napoleão está farto de tanta conversa e, em 12 de Agosto, dá um prazo até 1 de Setembro para que Portugal declare guerra à Inglaterra e junte os seus navios à esquadra francesa, notícia que será corroborada pelo embaixador espanhol em Portugal.

Creio que Napoleão sabe que Portugal não tem alternativas, mas percebe que pode enganar Godoy, assinando, com ele, o Tratado de Fontainebleau (27 de Outubro de 1807). Tal tratado prevê a partilha de Portugal: Entre-Douro e Minho tornar-se-iam no Reino da Lusitânia Setentrional governado pelo rei da Etrúria (da família dos reis de Espanha e recentemente desapossado do seu trono por Napoleão); o Alentejo e o Algarve formariam o Principado dos Algarves e seria entregue ao próprio Godoy, e tudo o resto ficaria para a França que decidiria o que fazer depois da paz.


Este tratado era um engodo porque, dez dias antes, Napoleão ordenara que Junot entrasse em Espanha onde se reuniria com as tropas espanholas para conquistar Portugal mas, uma vez em Salamanca, o general recebe ordens para não esperar pelos espanhóis e entrar sozinho no nosso País. Fê-lo a 19 de Novembro de 1807. Portugal definhava!

Passaram-se duzentos anos e há portugueses que acreditam que Espanha esqueceu o seu sonho hegemónico. Diriam o mesmo os portugueses de 1383? Os de 1580? Os de 1801?

Por mim, creio que a Espanha, jamais esquecerá que a liberdade portuguesa lhe desfeia o mapa!

08/09/2007

D. Afonso Henriques

Alexandre Herculano chamou-lhes Crónicas Breves de Santa Cruz de Coimbra. Inscrevem-se no registo histórico dos cronicões ou da história analística, mas estes diferem um pouco, porque entram na narrativa, aproximando-se da crónica. Duas são dedicadas a D. Afonso Henriques, a terceira e a quarta, mostrando bem essa espécie do culto que os monges de Santa Cruz criaram em torno da figura do nosso fundador. Aqui transcrevem-se excertos da terceira dessas crónicas breves.

D. SOLEIMA

[O papa, sabendo que D. Afonso Henriques se recusava a soltar a mãe, mandou excomungar a terra pelo bispo de Coimbra. Este lançou a excomunhão e fugiu de madrugada.] E el-rei foi-se logo à sé e chamou todos os cónigos na crasta e disse-lhes que dessem de antre si um bispo. E eles disserom que o nom fariam, que tinham bispo. E el-rei lhes disse que aquele que eles diziam (que) nunca jamais em todos seus dias seria bispo. E ele, vendo que nom queriam fazer o que lhes ele mandava, degredou-os todos de sua terra.
E em saindo el-rei da crasta, viu vir um crérigo que era mui negro de sua color e disse-lhe como havia nome. E o crérigo lhe respondeu que havia nome Martinho. El-rei, porque o viu assi negro, perguntou-lhe por nome de seu padre, e ele lhe disse que havia nome Çoleima. E el-rei lhe perguntou se era bom crérigo ou se sabia bem o ofício da igreja.
E ele lhe disse:
__ Senhor, nom há na Espanha dous que o milhor saibam do que eu.
E el-rei lhe disse entom:
__ Tu serás bispo dom Soleima, e guisa-te logo como me digas missa.
Respondeu o crérigo:
__ Nom sou ainda ordenado de missa como bispo que vo-la possa dizer.
E el-rei disse:
__ Eu te ordeno como me digas missa, senom cortar-teei a cabeça com esta espada.
E o crérigo, com medo, vestiu-se com as vestiduras e fez-lhe o ofício. E este feito foi sabudo em Roma e cuidarom que era hereje. E o Papa mandou a ele um cardeal que lhe mostrasse a fé.

O EMISSÁRIO DO PAPA

O cardeal partiu-se de Roma e veio em Espanha e os reis per onde ele vinha honravam-no muito. E foi dito a el-re Dom Afonso:
__ Senhor, eis aqui vem um cardeal que vem a vós de Roma porque sodes miscrado com o Papa por este bispo que fezeste.
E el-rei disse:
__ Ainda me nom arrependo.
E disserom-lhe:
__ Sabede, senhor, que todos os reis, per u ele vem, provam de lhe beijar a mão.
E el-rei disse:
__ Certo nom será tão honrado cardeal em Roma que a Coimbra viesse que me tendesse a mão pera lha beijar que lha nom cortasse, e desto se nom poderia ele falecer.
[O cardeal soube disto e ficou com medo. O rei recebeu-o na alcáçova e entabulou-se o seguinte diálogo]
__ Cardeal, que viestes aqui fazer de Roma, que de Roma nunca me veio senom mal? E qual riqueza me trazedes de Roma pera estas idas que faço amiúde contra os Mouros? Dom cardeal, se me trazedes, que me dedes; senom ide-vos vossa via.
E o cardeal disse:
__ Senhor, eu sou vindo aqui pera vos mostrar a fé de Jesus Cristo.
E el-rei disse:
__ Certo, cardeal, tão bons livros havemos nós aqui como vós em Roma e tão bem sabemos como o Filho de Deus descendeu do céu (…)
[ D. Afonso Henriques continuou a desbobinar as verdades da fé, mostrando que sabia bem o credo de Niceia]
E depois que lhe disse todas estas cousas, mandou-lhe dar pousada e tudo o que lhe era mester.
E o cardeal, logo que foi na pousada, mandou poer cevada e mandou por todos os crérigos da vila e, ao cantar dos galos, excomungou toda a vila, e foi-se de guisa que, quando foi luz, tinha ele já andado duas léguas. (…)
[D. Afonso, mal deu pelo sucedido, montou em seu cavalo e foi no encalço do cardeal. Foi encontrá-lo na Vimieira e quis logo cortar-lhe a cabeça, mas quatro nobres que o acompanhavam, dissuadiram-no:]
__ Senhor, por Deus e por mercê, nom matedes o cardeal, ca dirão em Roma que sodes hereje.
E el-rei disse:
__ Certas, vós lhe dades a cabeça.
E o cardeal quando se viu em tal medo, disse a el-rei:
__ Senhor, nom me matedes, ca eu farei qual preito vós quiserdes.
E el-rei lhe disse:
__ Pois quero que Portugal nom seja excomungado (…). E dês i quero que me mandedes de Roma uma carta que nunca Portugal nem eu sejamos excomungados em todos meus dias, ca eu o ganhei com esta minha espada. E para esto quero que me leixedes aqui este vosso sobrinho em penhor atá que me mandedes a carta. E se atá quatro meses me nom mandades a carta, eu cortarei a cabeça a vosso sobrinho.
E o cardeal outorgou tudo o que el-rei quis e dês i foi-se sua vida. E ante que os quatro meses fossem cumpridos, lhe veio a carta: dês ali em diante fez el-rei em toda sua terra arcebispos e bispos e beneficiados quais ele quis.
E depois que el-rei e o cardeal houverom todo o seu preito firmado, e ao tempo que lhe havia de mandar a carta, como já ouvistes, desvistiu-se el-rei de todas suas vestiduras e disse:
__ Quero-vos mostrar, dom cardeal, como eu sou hereje.
E entom lhe mostrou todas as feridas que houvera em seu corpo, dizendo e assinando quantas e quais feridas houvera em as batalhas, e quais em as combater e quais em as entradas das vilas que tomara aos Mouros.


Citado a partir de: Maria Ema Tarracha Ferreira, Prosa e Poesia Medievais
(cortes e texto intercalado meus)