30/11/2007

HÁ 200 ANOS: VÉSPERA DO 1.º DE DEZEMBRO...

... Junot, o invasor a mando de Napoleão, entra em Lisboa. No Tejo ainda se avistavam os mastros dos navios que transportavam a família real para o Brasil. Na praia de Belém jaziam milhares de caixotes que não couberam nas embarcações disponíveis. Entre esses, dezenas continham as obras raras e preciosas da Biblioteca da Ajuda. Os franceses serviram-se lautamente.



Junot, que seguira a linha do Tejo, avançara com dificuldade pelas terras alagadas da Beira e do Ribatejo. Era um Inverno muito frio e chuvoso e, por causa dele, o poderoso exército de Napoleão mais parecia uma matilha de esfaimados e pedintes. D. João, o Príncipe Regente, para poupar a população à vingança que se oferece aos derrotados, ordenara que os franceses fossem recebidos como amigos. Assim, só a natureza lhes ofereceu resistência! Apesar de saber disso, Junot proclamava que nos vinha libertar das grilhetas da tirania absolutista. Viu-se bem depressa de que libertação se tratava!


Protecção á Franceza

Que vem a ser ter entrado
Dias antes do Natal
Tropa estranha em Portugal
Mal calçada, e mal vestida,
Esfaimada, e intorpecida
De cançasso, ou de fraqueza?
He protecção á Franceza!

Que vieraão cá fazer,
Sem lhes mandarmos recado?
Comerem-nos pão, e gado,
Pondo tudo em cofuzão!
Desta gente a protecção
Tem diversa natureza
He protecção á Franceza!

José Daniel Rodrigues da Costa, 1808

Rapidamente a acção dos franceses transforma em ódio a simpatia que, antes, algumas pessoas tinham pelos ideais da Revolução Francesa:

Se inda houver, o que não creio,
Maniacos desgraçados,
Que sejão apaixonados
Da aleivosia Franceza;
Tomemos a grande empreza
De lhes curar a loucura;
Porque dos Doidos a vêa
O que preciza he corrêa.

Onde está o Patriotismo
Honra de antigos varões?
São heroicas acções,
Ser traidor, ser de má fé?
Apoiando só quem he
Usurpador, e Tyrano?
Para curar estas falhas,
Récipe; chicote, e palhas.

António José Maria Capela, 1808

Décima

Entre os titres Generaes
Entrou hum de genio altivo,
Que ou era o diabo vivo,
Ou tinha os mesmos sinaes:
Aos alheios cabedaes
Lançava-se como setta;
Namorava branca e preta;
Toda a idade lhe convinha;
Comsigo tres = Emes = tinha,
Manhozo, Máo, e Manêta.

Idem

26/11/2007

VERA PYRRAIT



Vera Pyrrait é uma grande pintora. Um pedacinho de qualquer coisa é, pela sua mão e sensibilidade, transformado numa narrativa contada pelas cores e pela textura dos materiais de suporte. As suas cores, sobretudo os azuis, são transparentes como um dia claro e a mancha cromática tem a enorme capacidade de despertar ternura.

Desta vez Vera Pyrrait decidiu ilustrar palavras terceiras, em história para a infância. Pede um Desejo, da autoria de Inês Barros Baptista, ganhou brilho e harmonia com as cores e o traço de Vera Pyrrait.

O traço e as cores escolhidas remetem o leitor para um imaginário de ternura, distante daquelas figuras angulosas e de linhas vincadas que, ultimamente, se têm oferecido às crianças. É verdade que algumas características físicas das personagens, como a cor do cabelo das duas fadas, advêm do próprio texto, mas a escolha da forma do rosto, a expressão e cada um dos gestos figurados nasceram do mundo doce e afectuoso que Vera Pyrrait deseja que seja o da infância. É por isso que os abraços e as mãos que se dão ou se oferecem são gestos presentes na maior parte das páginas ilustradas.

O livro apaixona quem o vê. A título de exemplo (porque não sei se não estarei a violar direitos de ©) publico partes de algumas das ilustrações. Quem tem netos, filhos pequenos ou, simplesmente, continua a deslumbrar-se com a literatura para a infância, tem aqui uma excelente aquisição a fazer. A editora Âmbar não regateou na qualidade das reproduções.



Vera Pyrrait representa, assim ...

...a "Tristeza"...

... e o "Medo"...

... que as duas pequenas fadas irão ajudar a ultrapassar.

Resta-me uma provocaçãozinha final. Todas as personagens são representadas de corpo inteiro, à excepção da rainha cuja coroa é quase do tamanho do rosto. Ela tem olhos grandes (para ver tudo?), nariz bem marcado (para o meter em tudo?) e boca aberta (para mandar?). Mas não se lhe vêem os ouvidos (porque nada quer ouvir?). Querida Vera, às vezes dizemos aquilo que o momento nos sugere. Só pergunto se foi sem querer!

19/11/2007

Bendita seja a chuva

venusmarte.JPG




Que bela é a chuva! Que bela é a lua espreitada por entre as nuvens (mesmo que a fotografia tenha sido tirada em tempo de céu limpo e dias de horas mais longas)!


A beleza não cessa: haja quem disponha de coração limpo para poder contemplá-la!





Bendita a chuva mansa que penetra a terra e lhe devolve a vida.


Bendita a chuva reunida que dá caudal aos rios, enche as fontes e as nascentes e alimenta as grutas.


Bendita a chuva que limpa o ar e alarga o horizonte.


Bendita a chuva que lava o olhar e conforta a alma.


Benditos os dias de chuva em sucessão.


Benditos os astros que iluminam os sonhos mesmo se as nuvens não nos deixam vê-los!

11/11/2007

ARMISTÍCIO


Hoje é dia de S. Martinho, o monge bondoso que foi abençoado por Deus por ter oferecido a sua capa a quem, no Inverno, precisava dela.

Deus recompensa a bondade.

Por esta altura, nas terras da castanha, os donos dos castanheiros autorizam o "rebusco". O rebusco é uma prática secular e funciona como uma interrupção no direito de posse. No tempo do rebusco, aqueles que nada têm são livres de procurar em qualquer terra e em volta de qualquer castanheiro, os frutos que haja ainda por apanhar. No tempo do rebusco lembra-se que Deus deu a Terra e os seus frutos a todos os homens e, por isso, uma pessoa sem alimento é uma ofensa à pessoa de Deus. Deus irmana os homens e, em certas ocasiões, os homens lembram-se disso. Castanha era caldo e era pão; castanha era sustento e sobrevivência. Como negar isso aos irmãos?

***
Nos campos enlameados da Flandres, a morte era o sustento da raiva. Nas trincheiras nem sequer se sobrevivia: apenas os corpos escapavam à morte. Nas trincheiras, o inferno era de frio e de lama e os danados eram os corpos dos jovens em putrefacção.


Nos campos da morte, talvez alguém se tenha lembrado que era o tempo da castanha. No tempo da castanha assinou-se a paz. Os irmãos só existem se houver paz. No tempo da castanha assinou-se a vida.

Bendita seja a paz!

09/11/2007

Castanha


Este ano tem sido como primeiro parto em mulher madura: aos ouriços custa-lhes a abrirem-se e caem prenhes no chão. Cada castanha tem que ser desouriçada, rebolada pela ponta do pé e retirada pelos dedos fórcipes dos apanhadores. Custosamente, embora, o fundo da cesta vai-se enchendo de brilho doce e bom sabor.

Muitas castanhas estão, ainda, em leite, concebidas que foram fora de tempo - o pouco calor do Verão nem às árvores convidou ao devaneio!

O ritual da apanha da castanha exige tempo frio e a chuva agradece-se para que os pães se possam ir semeando. Este ano a tradição quebrou-se e, por sob os castanheiros, mulheres e homens envergavam vestes frescas de Verão. As terras de lavoura lá estão, lavradas, à espera que o céu as venha humedecer e as torne capazes de acolher a semente.

Enquanto nas cidades se discute a relevância do modo como se há-de obter energia eléctrica, nos campos reza-se para que nos devolvam as estações do ano já que, lá, nada existe sem a certeza da permanência.