No artigo anterior referia-me ao facto de, sob meu ponto de vista, a autora não ter escrito uma única frase que fosse apelativa e me prendesse a atenção. Hoje apetece-me dar exemplo do contrário. Escolhi um autor maior da literatura em Língua Portuguesa, em texto muito pequeno. O livrinho pode ler-se num piscar de olhos, mas quem gosta de desbravar o significado das palavras e dos gestos, de se deleitar a visualizar as imagens e de se surpreender com elas, enfim, quem aprecia a escrita com o mesmo prazer com que degusta o melhor dos manjares, certamente lerá, com todo o vagar, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado. Transcrevo, aqui, algumas passagens.
Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso, funcionária relapsa. Demora-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir até não ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará antes das onze e olhe lá. (...) Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma funcionária subalterna, de rígidos horários. Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com medo do escuro. A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.
Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. (...) Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? (...)
Por mais cedo fosse, mais frio fizesse, estivesse onde estivesse, (...) pela madrugada arribava ele em casa do Sol para cooperar com a Manhãzinha. Sopra que sopra com a imensa bocarrona de ar. Apenas porém a brasa crescia em labareda, o Vento deixava por conta da Manhã atiçar a chama com o abanador das brisas e começava a recordar aventuras (...).
Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais (...). Pouco dada ao trabalho, a manhã deixa-se ficar embevecida a escutar (...) causando irremediável transtorno aos relógios, obrigados a diminuir o ritmo dos pêndulos e ponteiros, na dependência da chegada da Manhã para marcar as cinco horas em ponto. Muitos relógios enlouqueceram, não voltaram jamais a marcar a hora certa (...). (pp. 15-18)
Também os galos deixaram de saber às quantas andavam e, por isso, num dia em que o atraso foi ainda maior, eles e os relógios queixaram-se ao Tempo, "senhor de todos eles". O Tempo, para quebrar a monotonia da eternidade, aceita não castigar a Manhã se ela lhe contar a história que a fez atrasar-se tanto. E a Manhã conta-lhe a história que ouviu do Vento sobre os amores do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá, história que não pode ter desenlace feliz, pois não se está mesmo a ver que os gatos e as andorinhas foram sempre inimigos figadais?
É no Outono que os protagonistas percebem que o seu amor não pode durar. Jorge Amado dá-nos conta da mudança com as seguintas palavras:
No outro dia o Outono chegou, derrubando as folhas das árvores. O Vento sentia frio, e, para esquentar-se, corria zunindo pelo parque. O Outono trazia consigo uma cauda de nuvens e com elas pintou o céu de cores cinzentas. (p. 85)
A Andorinha Sinhá casa-se com o rouxinol.
No momento em que o cortejo nupcial, numa revoada, saía da capela, a Andorinha viu o Gato no seu canto. Não sei que jeito ela deu no voar que conseguiu derrubar sobre ele uma pétala de rosa, das rosas vermelhas do seu buquê de noiva. O Gato a colocou sobre o peito, parecia uma gota de sangue. (...) Já não havia futuro com que alimentar o seu sonho de amor impossível. Noite sem estrelas, a da festa de casamento da Andorinha Sinhá. Apenas uma pétala vermelha sobre o coração, uma gota de sangue.
A música doía-lhe no coração. Canção nupcial para os noivos; para o Gato Malhado, canto funerário. Tomou da pétala de rosa: olhou mais uma vez o parque coberto pelo Inverno, saiu andando devagar. Conhece um lugar longínquo, onde vive apenas a Cobra Cascavel, que ninguém aceita nos parques nem nas plantações. O Gato tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo. (pp. 107-109)
Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Publicações D. Quixote, 2002