24/09/2006

Que a razão se faça ouvir: a lição de Bento XVI

Finalmente, as vozes da razão – aquelas que têm capacidade para tal – começam a fazer-se ouvir. Reconheço-lhes a dificuldade da missão, porque explicar o significado profundo de uma lição profunda é tarefa titânica porque a audiência, acostumada às tiradas bombásticas e às curtas frases de sujeito e predicado (às vezes, também, sem um deles), rapidamente se afasta dos textos longos e explicativos. Provavelmente, essas vozes conseguirão, apenas, dar argumentos àqueles que, com elas, já concordavam. Mesmo assim é importante que falem e que fique registado, por seu intermédio, que as pessoas do mundo inteiro não se transformaram todas em mentecaptas ou em medrosas ou em merdosas! Louvo-lhes a lucidez e a coragem.

Falo, naturalmente, da lição do Papa Bento XVI e das reacções que ela provocou. José Pacheco Pereira, no Abrupto, explicou porque é que os muçulmanos deviam levar a sério a interpelação do Papa e Maria José Nogueira Pinto, no DN, meditou sobre a importância da palavra. Pacheco Pereira teve, ainda, a bondade de indicar dois artigos excelentes, um no Le Figaro e outro Washington Post. Do artigo do Figaro, da autoria de Michel Fichant (professor na Sorbonne de História da Filosofia) destaco as seguintes passagens:

Il faut une bonne dose de sottise, de perversité – ou des deux –, pour trouver dans cette leçon magistrale une offense quelconque à l'égard de quiconque. Si le thème principal est le commentaire, superbement conduit, de la proposition : «Agir contre la raison est agir contre l'essence de Dieu», l'exposé comporte aussi, en contrepoint, une réflexion sur l'Université.

Celle-ci et ses professeurs, au-delà de leur spécialité, se voient assigner la tâche de «travailler dans le tout de la raison unique et d'exercer la responsabilité commune du juste usage de la raison».

(...)Le discours assurément n'est pas destiné aux foules. Les habiles et les affairés reprocheront sans doute à Benoît XVI de ne pas assez tenir compte de ce qu'il n'est plus professeur et que, comme pape, tout ce qu'il dit parvient aux oreilles de la foule. Mais si l'on comprend que le Pape ait dû exprimer ses regrets devant les réactions suscitées par un propos incompris, le professeur n'a pas à s'excuser d'avoir fait, et admirablement fait, son métier. Élitisme universitaire ? Peut-être.
Mais qu'on y prenne garde : ce serait une catastrophe pour l'Europe et pour l'identité de sa culture d'en rabattre, par lâcheté ou par ignorance, sur les exigences qui soutiennent cet élitisme-là.


O artigo do Washington Post, escrito por Charles Krauthammer serve-se da ironia e do humor, características humanas que, afirma, têm faltado a muitos muçulmanos. E mostra-lhes a contradição entre aquilo que, dizem, os ofende e as reacções face a essas ofensas. Destaco:

The pope makes a reference to a 14th-century Byzantine emperor's remark about Islam imposing itself by the sword, and to protest this linking of Islam and violence:

(…)In Mogadishu, Somali religious leader Abubukar Hassan Malin calls on Muslims to "hunt down" the pope. The pope not being quite at hand, they do the next best thing: shoot dead, execution-style, an Italian nun who worked in a children's hospital.
"How dare you say Islam is a violent religion? I'll kill you for it" is not exactly the best way to go about refuting the charge. But of course, refuting is not the point here. The point is intimidation
.

Haja quem escute estas vozes!

Sublinados meus

23/09/2006

Os filhos e os herdeiros

As árvores enxertadas dão todas o mesmo fruto, mas os frutos, apesar de serem da mesma casta uns dos outros, têm textura e sabor diferentes. Assim, por exemplo, um cerdeiro enxertado frutifica em cerejas, mas as cerejas dele nascidas tanto podem ser vermelhíssimas como discretamente tingidas, rijas como macilentas.

Os nossos pais são como árvores enxertadas e, por isso, dão origem a duas classes de descendentes: os filhos e os herdeiros.

Os filhos amam os pais pelas pessoas que são. Dedicam-se-lhes e provam essa dedicação, pautando as suas vidas pelos mesmos padrões éticos que lhes seviram de exemplo. Os filhos aprendem dos pais as atitudes e as palavras e sabem que será essa a maior riqueza que receberão. Por isso os filhos sonham a impossível perpetuação dos pais, mas, quando estes dão sinais de estarem incapazes de tomar conta de si, amparam-nos e sentem que chegou a vez deles de servirem de colo. Os filhos não fazem isto como um peso, fazem-no com a naturalidade do amor.

Os filhos, em lágrimas, cantam canções de embalar aos pais. Os filhos rezam, à noite, as orações que os pais já não sabem dizer.

Os herdeiros nascem de um enxerto invisível. Os herdeiros traduzem a relação biológica numa operação matemática: "quanto me poderá render o nascimento?"Os exemplos e as palavras que fizeram proveito aos filhos são, para os herdeiros, inaceitáveis e de tudo fazem tábua-rasa. As acções dos pais, em gritante contradição com as suas, vêem-nas como insultos. E afastam-se para não serem comparados. São amados, apesar de a sua ausência os privar de receberem carinho. Nos escassos reencontros a conversa deixa de fluir, por isso se resume a um "então mãe / pai, como está"?

Quando os pais deixam de ser capazes de tomar conta de si próprios, os herdeiros reagem com desagrado e são rápidos a alijar a carga. A incapacidade dos pais é sentida, por eles, como um atentado contra o próprio bem-estar, mas como não gostam que se façam comparações, tentam convencer os filhos a comportarem-se como eles. Se a situação se arrasta, os herdeiros começam a manifestar pública pena pela condição dos pais. Dizem que já não é vida e que a morte seria uma bênção. No seu íntimo, vão sonhando com isso, não vendo a hora de deitar a mão àquilo que consideram ser seu por direito. Os herdeiros consideram que os filhos, seus irmãos, os obrigam às únicas operações que detestam fazer: divisão e subtracção.

Quando a hora chega, ai dos irmãos! Querem chorar a perda, mas a matilha não lhes larga os calcanhares: há que fazer partilhas. Então, os herdeiros deixam cair a máscara!

17/09/2006

Vamos por partes (III)

Volto à carga com os horários, embora não por causa deles. Este, que aqui reproduzo, era o meu do 7.º ano (actual 11.º e que, ao tempo, se designava oficialmente por 2.º do Complementar, embora ninguém o tratasse por esse nome ). Reporta-se ao ano de 1978/79. Aulas ao sábado e dois furos. Ninguém reclamou, apesar de vivermos o tempo de todas as possibilidades e de todas as contestações. Ao todo, 22 horas distribuídas por seis dias.

Chegava-se ao liceu depois de uma passagem de dois anos pela escola preparatória. O tempo do liceu era, pois, o da sedimentação da amizade porque a idade tal deseja e os cinco anos aí passados eram bastantes para que ela levedasse.

O horário que reproduzo já não é o do cartão oficial, antes, aquele que a minha amiga Isabelinha achou por bem fazer para mim, antecedido deste desenho com a sua legenda de ternura.

O liceu funcionava em dois turnos: manhã e tarde. Terminada a última aula, as funcionárias da limpeza entravam para varrer todo o espaço. Regressavam ao trabalho antes que se iniciasse o turno da manhã, para limpar o pó que se deixara a assentar durante a noite. Às contínuas (não confundir com as primeiras), que começavam o seu serviço pouco antes do início das aulas, era pedido que vigiassem os corredores, abrissem os livros de ponto, registassem as faltas de alunos e professores, tivessem disponível o material dos laboratórios, respondessem quando um professor, da sua sala de aula, tocava a campainha, etc. Parece que estou a falar de outro mundo! Hoje, exceptuando a vigilância de corredores, todas as tarefas das contínuas são exercidas pelos professores. A democracia despromoveu a ambos embora às contínuas que, de facto, prestam serviços de limpeza, lhes dê o pomposo nome de "auxiliares de acção educativa". Não bate a bota com a perdigota!

Este artigo não há meio de ter um nexo. Parece escrito pela Inês Pedrosa!

Vamos, então, ao que me importa, que é a questão do tempo e dos espaços. O tempo, já se viu, não estava sobrecarregado de aulas. As tardes livres e os furos significavam que os estudantes (éramos assim designados, porque seria?!) podiam aproveitar para realizar os seus trabalhos e completar os estudos nas enormes e muito bem fornecidas bibliotecas dos liceus. Quando é que os garotos de agora podem fazer isso? E com que disposição? E com que livros, sabendo que as bibliotecas escolares pouco mais são do que depósitos de manuais enviados pelas editoras? E com que critérios, com que possibilidades, pergunto ainda, conhecendo as enormes dificuldades de leitura com que a miudagem transita da escola primária? Que se pode pedir que leia, a quem quase não sabe ler?

Eu estudei no Liceu Maria Amália em Lisboa. Os estudantes dispunhamos:

  • de um enorme vestiário onde deixávamos casacos, mochilas, pastas de desenho, chapéus-de-chuva, etc. Era vigiado por uma funcionária que nos fornecia uma chapa de metal indicando o espaço em que tudo estava guardado. Actualmente é bar e sala de convívio;
  • de uma enorme sala de convívio equipada, entre outras coisas, com sofás, um piano e reproduções de grandes obras da pintura. Actualmente é o (muito bom) centro de recursos;
  • de uma enorme e excelente biblioteca;
  • de um enorme salão de festas equipado com palco. Nesse salão assisti a concertos de música dirigidos pelo maestro José Atalaya e à encenação de muitas peças de teatro. Guardo no coração O Judeu com a presença do próprio Bernardo Santareno. Também serviu para as inúmeras RGA e RGE que os anos de Abril permitiram. Felizmente, esse espaço mantém-se com as mesmas funções;
  • de um enorme e bem fornecido bar que também servia de cantina. Actualmente serve apenas esta última função;
  • de uma estufa que era um regalo para os olhos e de muitos (quatro ou cinco?) e grandes pátios para horas de prazer, de descanso e de brincadeiras. Os pátios estão, hoje, degradados. A estufa, sinal dos tempos, depois de se deixar perder, foi transformada em parque de estacionamento para automóveis;
  • de jardins bem cuidados a toda a volta do edifício, onde não faltavam bancos nem passagens empedradas para que pudéssemos passear sem estragar as plantas. Todas as portas de acesso esvam franqueadas. Hoje as portas estão fechadas e é a boa vontade de um ou dois professores que mantem esses espaços relativamente tratados;
  • de salas de aula enormes, de paredes espessas amenizadoras do frio e do calor, altas, permitindo que as várias janelas fornecessem luz e não incomodassem a vista para o quadro nem servissem de distracção a quem se senta perto delas;
  • etc.

Nem vale a pena enumerar as diferenças, tão gritantes elas são. As nossas escolas transformaram-se em depósitos de alunos e, com isso, perderam a primeira das suas funções que é a de serem lugar de aprendizagem e de aquisição do gosto pela cultura. Não há espaços, há cubículos sobrelotados. A democracia, como convinha que fizesse, alargou a escolaridade, mas não cuidou da educação. Aos professores tratou-os com o mesmo desvelo, retirando-lhes os espaços necessários à realização de um trabalho decente.

Quanto a mim, passei do tempo da contestação para o da constatação da minha impotência.

16/09/2006

Fugiu-lhe a boca para a verdade?

Manchete do novel hebdomadário: Sol



É uma falsa mentira!
comentário exaltado de Isaltino à SIC

Com a verdade me enganas?
Pela boca morre o peixe?

(Não sei, pergunto eu!)


Que outros adágios poderemos aplicar aqui?

12/09/2006

Ora muito bem feita!

O Manuel Lameque era um caldeireiro que, apesar de baixo e feio, era um gabarolas. Gabou-se, certo dia, que as mais lindas raparigas de Penas Juntas (Vinhais) eram suas amantes. Elas, furiosas, não estiveram com mais aquelas e fizeram-lhe... o que vem escrito na letra da cantiga que se segue:

Malo haja o Caldeireiro,
mais a sua gabação
se não fosse o ele gabar-se
ou o capariam ou não.

No lugar de Penas Juntas
houve uma grande alegria,
caparam-no Caldeireiro,
foi mui grande tirania.

Se fordes por Penas Juntas,
Rapazes, tende cautela,
caparam-no Caldeireiro
lá na rua da Capela.

As moças de Penas Juntas
até aqui eram senhoras,
agora têm por notícia
de umas grandes capadoras.

No lugar de Penas Juntas,
ali no bairro primeiro,
lá na rua da Capela
caparam-no Caldeireiro.

Já toda a gente dizia:
agora ficou capado;
inda foi dali p'ró Vilar
c'o traste dependurado.

Assim que lá chegou
começou logo a gritar,
foi o médico de Vinhais
acabar de lo cortar.

Dia vinte oito de Março,
sábado d'Aleluia
caparam o caldeireiro
lá no meio da rua.

Sábado d'Aleluia
caparam-no caldeireiro,
p'ra não descobrir as moças
até lhe ofereceram dinheiro.

in P.e FIRMINO A. MARTINS, Folklore do Concelho de Vinhais, 2.º vol.

Pois que o exemplo pegue!!

11/09/2006

Dedicatória

Hoje não há tempo para mais, mas aqui fica,
dedicado a quem me chateia:

Olha, o amor que t'eu tenho
e o que t'hei-de vir a ter,
cabe na folha da urze,
ainda se não há-de encher.
Popular de Vinhais

10/09/2006

Mais Carlinhos

Para começar bem disposta na segunda-feira:

O gesto de semear manualmente o cereal é um gesto único: o saco cai dependurado do ombro esquerdo; a mão direita entra no saco e sai, não muito cheia . Os três primeiros dedos seguram a semente enquanto o polegar e o indicadir se harmonizam de modo a deixar cair o número certo de grãos. Esses gestos são repetidos vezes sem conta, à medida que o camponês percorre cada centímetro da terra que lhe irá dar o sustento do ano.

Certo dia, o Carlinhos da Sé andava pela praça como se estivesse a semear, mas não tinha saco nem tinha nada. Umas pessoas que passavam perguntaram-lhe:

- Tu que fazes, Carlinhos?
- Estou a botar milho ós pombos! E continuou com o seu gesto de tirar milho do nada.
- Mas aqui não há pombos, Carlinhos!
- Tamém pró milho qu'ou les boto! Rematou, cerce e lógico, o Carlinhos

Boa semana para todos!

09/09/2006

Jornais

Não integro o grupo daqueles seres especiais que, antes de nascerem já liam jornais e, no fim da infância, já tinham digerido todos os clássicos. Como me custa chamar-lhes mentirosos, imagino-os para mim mesma como imensas e devoradoras gargantas sempre abertas, insaciáveis.

Associo as minhas primeiras leituras de jornal ao acto de lavar a loiça, vejam bem! Eu, infanta minúscula, implorava à minha mãe que ma deixasse lavar. Que não, eu era muito pequena e deixava-a mal lavada eram os argumentos habituais. Mas, de quando em vez, perdia o amor por malgas e pratos e lá me dizia que sim. Para que a parede não ficasse salpicada, forrava-se de jornal o bocado em que se encostava a selha. Não sei se foi o aspecto gráfico ou se foi a beleza das letras semeadas em código que despertou a minha atenção, o que sei é que, em vez de poupar tempo à minha mãe, constantemente a chamava para que me lesse as que tinham a cor vermelha, ou as que vinham destacadas de algum modo (aprendi depois que se chamava itálico). Aos poucos, fui querendo identificar as letras que ouvia repetidas nas lições de meus irmãos até que, certo dia, perguntei a minha mãe se aquelas letras escritas ali, no lugar que o meu dedo apontava, se liam assim. Que sim! Depois desse dia, os livros da escola passaram a abrir-se para que eu também aprendesse, com minha mãe por mestra. Desde então, associo o acto de ler a esses momentos de ternura que eram as horas debruçada sobre a mesa com o cabelo de minha mãe a acariciar-me o rosto enquanto o seu abraço me conduzia a mão e o olhar e a sua voz me corrigia a leitura.

Vem isto a propósito de jornais. Fechou O Independente que de independente só tinha o nome, vai ser lançado o Sol, título que não parece de jornal e o Expresso foi remodelado. Para que se compreenda o primeiro parágrafo, eu não leio o Expresso desde o seu início, porque em 1973 começava eu a entrar na adolescência, embora haja gente mais nova do que eu que jura a pés juntos que o leu desde o primeiro número. Comigo não foi assim porque era adolescente normal e os adolescentes normais lêem outras coisas. Tornei-me sua leitora assídua desde os meus 16 anos e só parei com isso vai para quatro anos. O motivo foi a remodelação. É que o Expresso tinha uma revista extraordinária recheada de artigos bem escritos que apetecia ir lendo ao longo da semana. A Revista foi transformada na Única , não passando esta de recolha de "faits divers", daqueles que se encontram em qualquer revista tonta (digo eu que as não leio). O meu amor pelo Expresso acabou aí e, com ele, as rotinas dos sábados de manhã. Hoje, propagandeada nova remodelação, voltei a comprar o jornal, agora em formato "Berliner". O caderno principal vem reduzido a 32 páginas das quais, três são páginas inteiras de publicidade. Das restantes, 14 têm metade do espaço ocupado com publicidade. Esta só não está presente nas páginas de opinião (págs. 28 e 29) e nas duas centrais. Tudo somado: as catorze metades são sete páginas, mais as três integrais dá a bela soma de 10 páginas de publicidade compradas sem querer (falta somar todos anúncios que não contabilizei)! Quanto à Revista? Mantém-se integralmente Única, por isso, cheia de pena, continuo sem motivos para voltar a comprar o Expresso. Vou tentar o Sol, talvez me faça esquecer o nome!

05/09/2006

Vamos por partes (II)

Não vou usar eufemismos: os garotos de agora têm uma vida lixada. São, pelo menos, 35 horas de frequência obrigatória na escola (entre o 7.º e o 9.º ano) o que, dividido por cinco dias úteis, dá uma média de sete horas diárias a que têm que somar-se as necessárias para cumprir toda a panóplia de exercícios, relatórios, fichas, etc. que cada professor lhes vai pedindo. Ou seja, se são esforçados e cumpridores, estes miúdos trabalham, no mínimo, nove horas por dia. É possível aprender bem com esta sobrecarga? Duvido!

Garotos de 12 anos precisam de brincar. Em que tempo o poderão fazer? O horário escolar tolhe a infância. São sete horas por dia encafuados em buracos sombrios ( a maior parte das salas de aula não passa disso mesmo) onde o ar se não renova porque as persianas da janelas têm de estar corridas para que o sol não frite as cabeças e a luz exterior não impeça a utilização do quadro preto (quem desenhou estas escolas devia ser obrigado a aprender nelas)! Onde é que estas crianças gastam as energias e soltam raivas e frustrações, se até perderam o direito aos intervalos entre aulas? A escola está a transformar-se numa fábrica de infelizes e inadaptados.

Nas trinta e cinco horas semanais aprende-se, de facto, o que é importante? Duvido de novo. As 35 horas semanais são divididas entre:

L. Portuguesa
L. Estrangeira I
L. Estrangeira II
Matemática
História
Geografia
C. Naturais
F. Químicas
E. Visual
E. Tecnológica (ou outra)
E. Física
E. Acompanhado
A. Projecto
F. Cívica

ou seja, 35 horas a dividir por muitas disciplinas dá quase nada a cada uma. Esclarecendo melhor: os professores de Inglês, Francês, História, Geografia, C. Naturais e F. Químicas têm, conforme os anos, entre 90 e 135 minutos semanais para ensinarem tudo o que é preciso. Hora e meia ou duas horas e um quarto! Parafraseando Matilde Rosa Araújo, é "uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma". Tudo se agrava se atendermos à organização dos tempos lectivos em blocos de 90 minutos, o que significa que a miudagem, boa parte das disciplinas, tem-nas uma vez por semana. De que se lembra cada um quando chega à aula na semana seguinte? E se faltou? Não há aprendizagem efectiva quando o assunto só volta a ser tratado muito tempo depois, se se não relembra e se não treina.

Há ideias que nascem de geração espontânea, pegam de estaca e medram mais do que erva regada. É aqui que se incluem as áres curriculares não disciplinares que só existem pelo gosto, óbvio, que quem as criou tem pela perífrase. Tais áreas integram a Área de Projecto; o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica. Para que existem e para que servem? Para nada, a não ser maçar os garotos, roubar-lhes horas preciosas do seu dia e tempo às disciplinas, ou seja, ao saber. Eis o único motivo pelo qual os professores foram mandados avaliar "competências" em vez de saberes. Foram transformados em amestradores.

A tudo isto some-se a dispersão a que os professores são obrigados: têm que, na sua disciplina, agarrar no programa nacional e fazer dele adaptações sucessivas: umas são "adaptações a" e outras são "adaptações segundo". As "adaptações a" são as que se fazem ao meio escolar; a cada uma das turmas que lecciona (que podem chegar a 11!) e, dentro destas, ao desenvolvimento e interesses de cada um dos alunos. As "adaptações segundo" são as que são feitas para respeitar e integrar os seguintes projectos: "projecto educativo de escola"; "projecto curricular de escola"; projecto curricular de turma (um por cada turma que lecciona) e projecto da "Área de Projecto". Alguém que conte o disparate que é o número de projectos existentes numa escola!

É de doidos! A senhora ministra quer fazer o favor de me explicar como é que tem cara de assacar aos professores a responsabilidade pelos maus resultados dos exames nacionais? Exames nacionais?! A lógica, a continuar a do parágrafo anterior, exige um exame por aluno!

Alguém ainda se lembra do seu horário escolar? Eu conservo os meus porque não fui ensinada a odiar a escola.
Eram tão longas as tardes! Tão cheias de liberdade!

02/09/2006

Carlinhos da Sé

Hoje deu-me para pensar no Carlinhos da Sé. A Sé é a de Bragança e o Carlinhos figura que nunca conheci mas de quem se contam histórias sem fim. Já morreu há bons anos, mas continua na memória de todos, mesmo dos que o não conheceram.

O Carlinhos era um doido a quem se queria bem e devia ter voz fanhosa porque é com voz nasalada que todos falam quando contam histórias das dele. Na graça e na mansidão opunha-se ao outro maluco, seu contemporâneo: o Laribau.

Pois bem, ao tempo em que havia prostíbulos com outro nome, as prostitutas eram obrigadas a fazer regularmeente um exame sanitário. Àquelas que se não apresentassem à inspecção médica a polícia ia buscá-las para as obrigar.

A rua da Caleja era onde residia a avó do Carlinhos e, também, lugar de muitas prostitutas. Certo dia, enquanto brincava com o aro, o Carlinhos ouviu dizer a uns polícias que iam buscar as raparigas da Caleja e não esteve com meias medidas: desatou a correr rua abaixo, rodando o seu aro enquanto gritava:

Fuja, minha avó! Fuja, que vêm a prender as putas todas da Caleja!

*
Outra vez, estava ele cantando o fado:

É numa rua bizarra
A casa da Mariquinhas...

Duas raparigas que passavam quiseram meter-se com ele:

- Ó Carlinhos, diz lá qual de nós é a mais bonita?
- Oh!Oh!Oh! Num cheguêis!
- Anda, diz lá que te damos cinco c'roas!
- Vvvvvotai cá!

As raparigas deram-lhe o dinheiro que ele guardou cuidadosamente no bolso. Mas continuou a cantar, em vez de lhes responder:

É numa rua bizarra...

- Então, Carlinhos, demos-te o dinheiro e não respondes?
O Carlinhos, mirando as duas de alto abaixo, remata:

- Ora, o qu'é que qu'rêis, coisa ruim num tem escolha!

*

Só mais uma, para terminar:

Certa noite, o Carlinhos ia a passar pela igreja da Misericórdia onde estavam a velar um morto. Ouviu dizer:
- Coitadinho, ficou-se como um passarinho!

O Carlinhos prosseguiu o passeio até que chegou à Sé, ali perto. Alguém perguntava sobre o morto:

- Ele de que morreria?
- Com algua fisgada nos cornos, foi a resposta pronta do Carlinhos!

****

Por ser fim-de-semana faço descanso das coisas sérias.

01/09/2006

Vamos por partes (I)

Há direitos que ganhariam muito se fossem entendidos como deveres. De um direito somos livres de abdicar, ao invés, o dever cumpre-se e a contumácia é o crime de quem o não faz.
Um direito que, para mim, ganharia muito em ser entendido como dever é a educação.

O direito do indivíduo à educação assenta no dever de a comunidade se organizar e disponibilizar os meios necessários, que são onerosos, para a sua concretização. Ora, não me parece equilibrado nem justo que uns tenham os direitos e os outros os deveres. Por indivíduo entendo aqui cada um dos estudantes e cada uma das unidades familiares respectivas.

Por que conjunto de razões deve, então, a educação considerar-se um dever? Antes de mais, porque é ela que garante que o indivíduo tenha uma vida. Alguém quer prescindir de viver a sua? Então prepare-se para ela.

É a educação que permite que o indivíduo conquiste o seu lugar: se não trabalhou para o alcançar, de que se queixa no fim? O país ganharia muito se, em vez de se apiedar dos coitadinhos que não tiveram oportunidades, lhes perguntasse e às famílias: quanto trabalhastes? Um indivíduo instruído sabe mover-se, entender o mundo, interpelá-lo e interagir com ele; sabe colaborar com a comunidade e ousa transformá-la. Dito de outro modo: cria-se e cria; não se lamenta, constrói a sua vida.

Um indivíduo sem educação nem sequer é um espaço vago porque nas sociedades o vazio não existe. É, pois, da responsabilidade de cada um, encontrar o seu lugar e preenchê-lo.

Não se pode pedir a uma criança que tenha consciência da importância da educação e a noção de que escola é trabalho. Mas compete à família a assunção dessa responsabilidade em nome da criança e do futuro que irá construir. À comunidade, representada pela escola, compete fornecer os instrumentos do saber e o próprio saber, única forma de se não transformar em fraude.

Valores e atitudes como o respeito, a obediência e a honestidade têm que vir de casa, têm que ser praticados em casa, impostos se necessário. É intolerável, para mim, ver a facilidade com que as crianças faltam à escola, com autorização dos pais. Mais intolerável, ainda, é a Lei dar total cobertura a essas faltas.

Enquanto se brinca aprende-se muito, mas a educação não pode ser vista como uma brincadeira de que se desiste quando deixa de apetecer. Estudar pode ser divertido? Pode, mas não tem que ser! Enquanto andarmos a culpar os professores acusando-os de que não sabem estimular os alunos estamos a contribuir para a desresponsabilização das crianças e jovens e das suas famílias. A educação tem que ser entendida como um remédio: às vezes adoça-se, mas tem que ser tomado, às horas certas e durante o tempo recomendado! Alguém culpa o médico pelo mau sabor do medicamento? Então porque é que se aceita como pertinente que um estudante se desculpe dos maus resultados dizendo que o professor não estimula?

Nunca se fala em estímulo que me não lembre dos cães de Pavlov. À nascença, as crianças não o são, mas rapidamente aprendem a ser. Aprendem que a preguiça compensa porque não é castigada; aprendem que a mentira compensa porque a sua voz é ouvida em igualdade com a dos pais e a dos mestres; aprendem que a desonestidade compensa porque vêem o logro ser elogiado.

Ora, tudo, nas famílias e no sistema de ensino está organizado de molde a desincentivar o trabalho. Para que há-de a criança esforçar-se se, no fim do ano, tem tratamento igual às trouxas que se esforçam e levam a vida a sério? Quando tal deixa de acontecer é já demasiado tarde. Não é aos 14 anos que vai alguém aprender a ler e a escrever porque, nessa idade, exige-se que interpretem, que comentem, que justifiquem e proponham alternativas!

*
Vêm estas reflexões a propósito do artigo que a senhora ministra da Educação escreveu, hoje, no DN. Nele, repete integralmente o discurso que já lhe conhecemos, antecipando novo ano de conflitos, tragicamente insistindo em não querer ver qual a dimensão e a origem do descalabro da educação pública em Portugal.

Conheço muitos professores que são relapsos, alguns, até, não deveriam exercer a profissão, uns porque são incapazes de amar e de conviver com outras gerações; outros porque pouco mais são do que analfabetos diplomados. Como chegaram à docência, estes, que já são fruto das modernas pedagogias de que a culpa é sempre do professor? A senhora ministra faça o favor de responder.