02/09/2006

Carlinhos da Sé

Hoje deu-me para pensar no Carlinhos da Sé. A Sé é a de Bragança e o Carlinhos figura que nunca conheci mas de quem se contam histórias sem fim. Já morreu há bons anos, mas continua na memória de todos, mesmo dos que o não conheceram.

O Carlinhos era um doido a quem se queria bem e devia ter voz fanhosa porque é com voz nasalada que todos falam quando contam histórias das dele. Na graça e na mansidão opunha-se ao outro maluco, seu contemporâneo: o Laribau.

Pois bem, ao tempo em que havia prostíbulos com outro nome, as prostitutas eram obrigadas a fazer regularmeente um exame sanitário. Àquelas que se não apresentassem à inspecção médica a polícia ia buscá-las para as obrigar.

A rua da Caleja era onde residia a avó do Carlinhos e, também, lugar de muitas prostitutas. Certo dia, enquanto brincava com o aro, o Carlinhos ouviu dizer a uns polícias que iam buscar as raparigas da Caleja e não esteve com meias medidas: desatou a correr rua abaixo, rodando o seu aro enquanto gritava:

Fuja, minha avó! Fuja, que vêm a prender as putas todas da Caleja!

*
Outra vez, estava ele cantando o fado:

É numa rua bizarra
A casa da Mariquinhas...

Duas raparigas que passavam quiseram meter-se com ele:

- Ó Carlinhos, diz lá qual de nós é a mais bonita?
- Oh!Oh!Oh! Num cheguêis!
- Anda, diz lá que te damos cinco c'roas!
- Vvvvvotai cá!

As raparigas deram-lhe o dinheiro que ele guardou cuidadosamente no bolso. Mas continuou a cantar, em vez de lhes responder:

É numa rua bizarra...

- Então, Carlinhos, demos-te o dinheiro e não respondes?
O Carlinhos, mirando as duas de alto abaixo, remata:

- Ora, o qu'é que qu'rêis, coisa ruim num tem escolha!

*

Só mais uma, para terminar:

Certa noite, o Carlinhos ia a passar pela igreja da Misericórdia onde estavam a velar um morto. Ouviu dizer:
- Coitadinho, ficou-se como um passarinho!

O Carlinhos prosseguiu o passeio até que chegou à Sé, ali perto. Alguém perguntava sobre o morto:

- Ele de que morreria?
- Com algua fisgada nos cornos, foi a resposta pronta do Carlinhos!

****

Por ser fim-de-semana faço descanso das coisas sérias.

5 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

Divertidíssimas as histórias deste Carlinhos da Sé, para lá de uma vez mais provar que, amiudadas vezes,era mais maluco o provocador do que o próprio maluco.
Este tipo de "doidos","maluquinhos"
como então se lhes chamava,eram comuns sobretudo nas nossas muito atrasadas aldeias em que o álcool e a consanguinidade "botavam" no mundo seres aparentemente falhos de juízo, mas que sempre serviram para fazer recados e carregar grandes fardos. Conheci alguns bem espertos, de raciocínio rápido e resposta lógica e certeira.

Curiosamente, o Porto da minha infância tinha também o seu Carlinhos da Sé, mas deste não sei histórias para contar. Dele me diziam que era "mariquinhas" e só me lembro de o ver subindo a rua, rebola que rebola, enquanto as mulheres - sobretudo elas - lhe lançavam chufas como provocação.
Então, o Carlinhos da Sé, sem parar, ia olhando para trás e insultando-as no melhor linguajar das ilhas(pequenos aglomerados de casas semelhantes aos pátios de Lisboa).
E sempre subindo a rua, rebola que rebola, rebola ainda mais, as mulheres rindo...insultadas e provocando mais, e o Carlinhos rebolando as ancas até desaparecer, rebola que rebola...rebola...que...rebola...

U a a a a
Jorge

MPS disse...

Cada terra com o seu Carlinhos, pelos vistos!

Pessoalmente só conheci um desses malucos: era o Zé Augusto a quem chamávamos o "Batitã", filho de pessoas muito estimadas. O Batitã era dos doidos maus, de cujas lapadas o sapateiro da aldeia dizia que eram mandadas pelo diabo: "acertam sempre!" Pessoalmente não tenho queixas, o Batitã sempre se mostrou meu amigo, mas as pessoas fugiam dele porque as pregava num piscar de olhs, embora todos se rissem das que pregava aos outros

É difícil contar histórias do Batitã porque ele não falava. Mas ia à missa! Sentava-se na grande laje dos degraus do altar-mor, virado de frente para a assembleia e, daí, envergonhava as mulheres porque (não havia ainda bancos) baixava a cabeça, espreitava-lhes por baixo das saias enquanto dizia: "a ti-ti-ti-ti!!" Era ver as mulheres a entalar as saias no meio dos joelhos!

MeMyself&I disse...

"São os loucos de Lisboa
Que nos fazem duvidar
Que a terra gira ao contrário
E os rios nascem no mar!"

É claro que a "Lisboa" da canção dos Ala dos Namorados pode ser substituída por qualquer terra deste nosso Portugal. Os "nossos", em Palmela, seriam o Baltazar e o velho da cordas (que ninguém conhece o nome. O primeiro, aparentemente inofensivo, deambulava pela vila, a pedinchar tabaco. Soube-se mais tarde que batia na pobre mãe, já idosa. Ainda logrou atravessar a ponte 25 de Abril a pé e, já no fim, incendiou a serra da Arrábida em troco de tabaco.

O velho das cordas era mais caricato. O nome diz tudo - deambulava pela vila à procura de cordas, sem justificação aparente. O seu aspecto andrajoso era o terror das criancinhas (eu incluído) - "Portas-te mal e entrego-te ao velho das cordas". Até os ossos se nos petrificavam... brrrrrrrr

Abraço

MPS disse...

O velho das cordas é a tua versão dos papão... com mais efeito em ti porque o vias. Eu só o imaginava!

Mas que há doidos muito interessantes, isso há!

Inês Quintana disse...

É bom recordar este Carlinhos com um especial carinho e fico contente que todos relembrem estas histórias daquele que era irmão do meu avô paterno.
Carlos do Carmo Quintana, era assim o seu verdadeiro nome.
Tinha 2 irmãos e uma irmã, mas pouco convivia com a sua família e preferia pairar na Sé de Bragança.
Apesar de todas as histórias algo engraçadas e peripécias que se contam do Carlinhos, ele era uma pessoa bastante inteligente. Dizem que morreu de um ataque de epilepsia, mas nada ficou comprovado até hoje.

Obrigada por dedicar este espaço ao meu tio avô :)