24/11/2006

Gedeão

Poema da Malta das Naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes, no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas prais de Portugal.


Rómulo de Carvalho faria hoje anos. O cientista e o professor são um com o poeta Gedeão que me acompanhou na descoberta da poesia. É dele uma das sínteses mais poderosas acerca do ser português: "provo-me e saibo-me a sal". Bem-haja por ela, uma vez que "não se nasce impunemente nas prais de Portugal."

7 comentários:

Anónimo disse...

"Poema da malta das naus", éste o título do poema de Gedeão, escrito em 1958.
Um fantástico resumo da epopeia portuguesa.
Mais tarde musicado por José Niza e admiravelmente cantado por Samuel.

E desta, lembras-te, cantada pelo Manuel Freire e com música também do J.Niza?

"Lágrima de preta"

Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado

Olhei-a de um lado
do outro e de frente
tinha um ar de gota
muito transparente

Mandei vir os ácidos
as bases e os sais
as drogas usadas
em casos que tais

Ensaiei a frio
experimentei ao lume
de todas as vezes
deu-me o qu'é costume

Nem sinais de negro
nem vestígios de ódio
água (quase tudo)
e cloreto de sódio

Um grande poeta!

MPS disse...

Grande lapso, o meu: esqueci-me do título! Vou já emendar a mão!

Como esquecer a "Lágrima de Preta", a "Pedra Filosofal", o "Poema do Homem Só", a "Fala do Homem Nasdcido", a "Calçada de Carriche" e tantos etc.?

Não me lembro de ouvir o Samuel a cantar o "Poema da Malta das Naus", antes, o Manuel Freire. É curioso que, quando há mais do que um a cantar Gedeão, prefiro sempre a versão do Freire, mesmo se o termo de comparação é o Adriano ("Lágrima de Preta" e "Fala do Homem Nascido").

Tal como tu, integro Gedeão na categoria dos grandes poetas, apesar de não dar origem a estudos nem a teses universitárias. Eles é que perdem, porque "eles não sabem nem sonham".

Um abraço

Anónimo disse...

Bom fim-de-semana, são os meus desejos daqui do Alto Minho, "perdido" que estou numa serra a descansar, enquanto chove intensamente... Estou a passar uns dias de férias e tenho, nesta localidade, alguma dificuldade de acesso à Internet, por isso a visita é breve, mas não posso ficar insensível...

António Gedeão, o meu poeta preferido, direi melhor, aquele que acima de todos mais aprecio. Conheço de cor dezenas dos seus poemas, e ainda me comovo com quase todos: Poema do Alegre Desespero, Pedra Filosofal, Lágrima de Preta, a Luísa, da Calçada de Carriche, “que sobe que sobe, sobe a calçada, toda derreada, passam magalas, é apalpada, não deu por nada”. Tudo sublime, neste homem intenso e imenso, que foi além de poeta, cientista, pedagogo e professor, dramaturgo, historiador, investigador, divulgador, homem da cultura. Esta minha paixão pela obra poética de António Gedeão não se explica, é poesia na sua essência. Até o seu nome é dum lirismo simbiótico: Rómulo Vasco da Gama de Carvalho. Tinha razão quando dizia que (e vou sitar de memória, e espero que esteja tudo bem):

Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
Com gente de todo o mundo
Que a todo o mundo pertence

Como sempre, este blogue é, cada vez mais, imprescindível.

Veja o Zinão hoje e nos dias seguintes, por favor.

MPS disse...

"Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que homens da minha aldeia
são centenas de milhões"

... se os tipos da globalização trouxessem livros nos bolsos, em vez de cartões de crédito, já teriam descoberto Gedeão!...

Caro Jofre, sempre tão gentil, e a visitar-me mesmo em férias. Invejo-o, não pelas férias, mas pelo local delas.

Pelos vistos, partilhamos gostos poéticos semelhantes. Eu só não sei ser tão categórica quanto à hierarquização das minhas preferências.

Um abraço, e depois conte sobre o concerto da chuva a atravessar o arvoredo.

Se há mais Zinão, vou já a correr lê-lo!

Chanesco disse...

Cara Bragançana

De facto não se dá o tempo por perdido quando se entra en sítios onde a sabedoria se sorve como fruta suculenta.

Lembro-me da primeira vez em que ouvi a Pedra Filosofal, cantada, não sei se pelo Freire ou pelo Correia de Oliveira. Pôs-se-me a pele em "coiro de pita" tal foi a emoção.
Só mais tarde soube quem era Gedeão apesar de ter estudado por um livro de física de que ele era autor, mas assinado como Rómulo de Carvalho.

Abraço

MPS disse...

Chanesco:
foi, certamente, pela voz de Manuel Freire (que compôs a música). Eu, pelo menos, não conheço o poema cantado por mais ninguém. Também eu fico "cum pele de pita" cada vez que oiço essa obra-prima e recordo com saudade as aulas de filosofia do liceu em que dissecámos, a propósito do conhecimento científico o "Poema para Galileo":

Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

Obrigada e um abraço.

MPS disse...

Correcção:

há gafes imperdoáveis. Espero que o Jofre nos conte sobre o conSerto da chuva a atravessar os ramos das árvores.