17/07/2006

"Bodas de Sangue"


Não poderia esquecer o Lorca autor de textos dramáticos. Referirei Bodas de Sangue, texto de grande intensidade emocional. As personagens vivem num mundo rural apresentado como sendo de grande violência e em que o recurso ao assassinato faz parte do quotidiano daquela gente. Nesse mundo, qualquer migalha de chão é quanto basta para distinguir o nível social das pessoas e os casamentos fazem-se a partir dessa distinção e da noção de que devem somar partes equivalentes e não distintas. Não sei até que ponto este texto ilustra a realidade mas com ele, certamente, Lorca quis denunciar práticas que considera injustas e desadequadas.

O enredo é, mais ou menos, este: uma rapariga vai-se casar. Já estivera noiva de outro (Leonardo) mas, tudo indica, fora ela a romper o noivado, apesar do forte sentimento que nutrem um pelo outro. No dia do casamento da rapariga, os dois não resistem e fogem. Naquele momento são os dois casados, e a humilhação feita paga-se com sangue. O excerto que se segue é o diálogo entre ambos, uma vez consumada a fuga. É Lorca a deitar a sociedade espanhola no divã do Dr. Freud.

LEONARDO

Que vidros cravam minha língua presa!
Porque eu quis-te esquecer,
e pus um muro de pedra
entre a tua casa e a minha.
É verdade. - Não te lembras?
E quando te vi de longe,
enchi meus olhos de areia.
Mas, se montava a cavalo,
em tua porta me achava -
Tornou-se-me o sangue negro,
com alfinetes de prata.
E o sonho foi-me cobrindo
as carnes de erva daninha.
Pois a culpa não é minha.
A culpa, a culpa é da terra
e do cheiro que desprendem
teus peitos e tuas tranças.

NOIVA

Ai que loucura! Não quero
contigo cama nem ceia,
e o dia não tem minuto
que estar contigo não queira.
Porque me arrastas, e sigo
e se me dizes que venha,
eu te acompanho nos ares
como um fiapinho de erva.
Deixei um homem austero
mais a sua descendência,
no meio da nossa boda,
de coroa na cabeça.
Receberás o castigo
e não quero que o recebas.
Deixa-me sozinha, foge!
Que não tens quem te defenda.

A construção psicológica das personagens é notável, como pode constatar-se. A violência que, de início, sentimos apenas latente, vai crescendo ao longo do enredo, ganhando forma para, finalmente, se materializar no desenlace. A estrutura emocional da peça é, de facto, a da tragédia, e o seu clímax é arrepiante.

Mas há outro aspecto importante a focar em relação às personagens: apenas Leonardo tem nome; todas as outras são designadas pela função: o noivo e a mãe (do noivo); a noiva e o pai (da noiva); a mulher (de Leonardo) e a sogra (de Leonardo). Apesar disso, Leonardo não é o protagonista, pois esse papel é desempenhado, claramente, pela noiva. Se as personagens não têm nome, é porque se quer que elas representem grupos.

Nenhuma personagem é verdadeiramente livre: os três núcleos familiares apresentados formam uma espécie de triângulo de ódio, ciúme e morte. E a terra andaluza vai sendo lavrada por estas raivas e regada pelo sangue vertido.

3 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

E que cantarão "los poetas andalúces de ahora"?

MPS disse...

las árboles en la luna! Lembras-te? "Quiero plantar un árbor en la luna, madre..."

MPS disse...

"un árbol", claro!