27/01/2007

História e memória

A filosofia da História importará somente aos historiadores, mas os seus rudimentos deveriam interessar a todos quantos fazem gosto de ler livros de História.

A grande revolução no modo de encarar a História operou-se no início do séc. XX, reflectindo directamente as novas teorias da Física de Einstein. Ela está associada à revista Annales mas, sobretudo, à História Nova cuja cúpula é Fernand Braudel. Entre nós, o seu representante maior é Vitorino Magalhães Godinho que, numa interpretação muito original e lúcida dos tempos e ritmos da História, criou o conceito de Complexo Historico-Geográfico. Tal conceito significa que uma determinada realidade tem que ser interpretada à luz das estruturas da época e das diversas conjunturas que estabelecem relações múltiplas entre si e com outras de outros lugares, construindo um todo com sentido. É uma História vista à luz de modelos e, para mim, continua a ser aquela que melhor interpreta o tempo histórico que não é linear nem simples nem simplista. A ideia de que a velocidade confere características diferentes ao tempo é, pois, o grande contributo da Física para a História.

A História é antiga como a ciência e a sua mãe é a Grécia clássica. A História ciência, porém, nasceu no séc. XIX pela mão dos positivistas. Se quisermos, Herculano foi um positivista. A sua História é cristalina porque rigorosa; avessa a sentimentos porque contrários à real explanação dos factos. O positivista é escrupuloso na leitura dos documentos; apresenta apenas os factos que pode comprovar – somente esses – e recusa qualquer veleidade interpretativa. Foi por isso que Herculano rejeitou a integração na sua História de Portugal do milagre de Ourique, o que lhe valeu crítica acesa dos contemporâneos. Mas é por isso que, ainda hoje, se queremos a verdade dos factos é em Herculano que os procuramos. Nele e em Oliveira Marques (e em poucos mais), o último historiador positivista que sempre se recusou a utilizar a História como instrumento político. É por isso que a sua História de Portugal, ao contrário de outras, integra a minha biblioteca e, ao contrário de outras também, fornece-me os dados de que preciso, sempre que busco informação. O seu critério é a verdade, por isso é fidedigno.

Mas não deve o historiador combater a ditadura? Deve! Como? Estudando os assuntos proibidos e aqueles que são deturpados pelo regime, porque usados como propaganda! E foi por isso que Oliveira Marques estudou a I República, tema tabu para o Estado Novo, e nos deu a conhecer os documentos que nos ensinam como era a vida quotidiana durante a Idade Média.


Uma sociedade que preza a sua História deveria conhecer os seus historiadores. Oliveira Marques faleceu outro dia. Quem deu por isso?

5 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

Não vou comentar sobre os termos em que a história deve ser interpretada, embora eu - pouco menos que leigo nessa matéria-considere que a interpretação mais correcta de um dado facto de deva fazer à luz do tempo em que se produziu, muito embora seja difícil esquecer os outros a que, posteriormente, deu origem.
Não está ao alcance do comum leitor ou estudioso interpretar os acontecimentos de uma dada época com a mentalidade da época em que os leu o, ou deles lhe foi dado conhecimento.

quanto a Oliveira marques, que me parece ser o ponto fulcral desta postagem, muita gente terá sabido da sua morte, pois esta foi notícia dos telejornais e veio nos periódicos. O que penso é que pouca gente terá sabido da sua vida e da sua obra!
Conhecer os seus historiadores é decerto importante para se conhecer a história de um povo. Quanto mais não seja para se compararem as versões e não aceitar uma como mais verdadeira do que a outra, ou para não se consumirem as "histórias" contadas como verdades históricas pelo mais mediático de todos os ditos historiadores, o Professor Hermano Saraiva.

Um abraço.

MPS disse...

Jorge

Eu não queria que isto parecesse a secção de necrologia, mas fez-me impressão o pouco que li sobre o assunto. suponho que deve ter sido mais ou menos assim: a U. Nova escreveu à Lusa a dar a informação, convencida de que, por lá, alguém conheceria a obra de Oliveira Marques. A Lusa enviou a informação para as redacções que se limitaram a reproduzir as duas linhas fornecidas pela Lusa. É por isso que eu pergunto se alguém deu pelo desaparecimento do historiador, porque reproduzir não é conhecer e quem não conhece não pode informar!

Hoje, no entanto, depois de ter publicado o post, fui ler o DN onde uma crónica de A. Pinto Leite reflecte sobre a personalidade. Ou seja: é um historiador a falar de outro. Também a minha escrita, com as devidas distâncias, não sai do mesmo círculo.

Quanto à referência que fazes a J. Hermano Saraiva, permite-me que discorde em parte: eu não recomendo os livros dele a ninguém, mas ele desempenha, na RTP, um papel importante de divulgador do nosso património e tradições que, inevitavelmente, se aliam à História. Fá-lo em bom Portugês e sendo capaz de captar a atenção do público, algo que o distingue de quase todos.

Um abraço e obrigada pelas tuas palavras.

MPS disse...

Irra! tinha que sair gralha logo no "Português"!

Anónimo disse...

Andei um pouco fugido, embora cá viesse sempre de fugida para ler o blogue, sem contudo o comentar.

Negociações com a edilidade em virtude do projecto que apresentei para as comemorações dos 50 anos da publicação do romance “A Casa Grande de Romarigães” tomaram quase todo o meu tempo.

Como homem da História, não podia deixar de comentar este artigo, com a penitência pelo atraso, pelos motivos expostos.

O século XX é fértil em grandes historiadores, investigadores a merecerem menção. Lúcio de Azevedo, quase autodidacta, especialista nos assuntos do século XVII; Anselmo Braamcamp Freire, o excelente genealogista que desprezava a maioria dos genealogistas; José Queiroz Veloso, historiador que tão tardiamente iniciou a carreira de investigador histórico, especialista maior dos assuntos do século XVI; o minhoto Alfredo Pimenta, erudito dos estudos medievais; Fortunato de Almeida e a sua magnífica “História da Igreja em Portugal”; Jaime Cortesão, médico, sumidade infatigável na área dos Descobrimentos, que tanto aprecio; Armando Cortesão, cartografista de mérito; Aarão de Lacerda, na História da Arte; Vitorino Magalhães Godinho que tão bem refere; e para abreviar que a lonjura do comentário parece uma manta camiliana, Virgínia Rau, Borges de Macedo, Luís de Albuquerque, Joel Serrão, Joaquim Veríssimo Serrão, José Mattoso, etc. E tantos outros, afinal...

Sobre António Henrique de Oliveira Marques, referência duma geração, realce para os seus estudos biográficos sobre Bernardino Machado e Afonso Costa, e de inúmeras obras que fazem parte da minha biblioteca.

Somente mais um pequeno esforço, para lembrar que faleceu há dias o dr. Ruy de Albuquerque, professor jubilado de Direito, mas também historiador tal com o seu irmão Martim de Albuquerque, e cuja morte passou em claro na nossa imprensa.

Vou fugir de mansinho, mas certamente que não terei perdão por este arrazoado.

MPS disse...

Tem muita razão o Jofre, em chamar aqui todos esses nomes - de épocas diferentes e com visões distintas da História mas, cada um à sua maneira, dando um contributo inestimável para o conhecimento de nós próprios.

Fez bem, também, em referir o professor Ruy de Albuquerque: a História não pode passar sem o estudo do direito e ele, à semelhança de Marcello Caetano, embora em áreas um pouco distintas, deu um contributo fundamental para a correcta integração e interpretação do sistema jurídico português, particularmente o medieval.

Obrigada, Jofre, por não o ter deixado cair no esquecimento!

Um abraço