Os !Kung San habitam a África Austral há mais de 20 000 anos.
A sua ancestralidade pode ser atestada pelas inúmeras pinturas rupestres que foram deixando pelos caminhos do tempo. São caçadores-recolectores, autênticas relíquias vivas do nosso passado humano. Usam uma linguagem de estalidos (representada graficamente por !) e o nome que se dão a si próprios pode ser traduzido por “Pessoas”. São geralmente conhecidos pela designação inglesa, “Bushmen” que adaptamos para “Bosquímanos”.
Os !Kung vivem no deserto do Kalahari que não é um deserto de dunas, antes, uma espécie de savana que ocupa uma extensa área partilhada pelos actuais territórios da África do Sul, Namíbia e, sobretudo, Botswana. A Norte, algumas franjas entram por terras angolanas. O Kalahari é atravessado por alguns rios que determinam os caminhos dos !Kung e tem época de chuvas que permite que a vida vegetal e animal sejam abundantes. O modo de vida deste povo do deserto que, inesperadamente, passou a contar com uma garrafa de coca-cola, ficou ternamente registado no filme de Jamie Uys, Os Deuses Devem Estar Loucos.
Há cerca de 25 anos, o Professor Viegas Guerreiro, decano da antropologia em Portugal, apresentou-me aos !Kung, exibindo um filme que ele próprio realizara durante os dois anos em que vivera com este povo. Aprendi, assim, que os San não têm chefes e que as decisões que interessam ao grupo são tomadas em grupo. Esses grupos podem ser extensos – até 100 pessoas – se os alimentos disponíveis forem bastantes, mas normalmente são menores, podendo não ultrapassar os 10 indivíduos.
Os San abrigam-se em cabanas que constroem recorrendo à vegetação alta que fazem assentar sobre uma estrutura de ramos. Os homens dedicam-se à caça e não importa os dias que demore até capturarem uma presa, porque a maior vergonha é regressar ao acampamento sem o suprimento de carne necessário. Caçam usando lanças feitas com as próprias mãos, com pontas de sílex (?) habilmente trabalhadas e que embebem em veneno eficaz. Sobre as mulheres recai a obrigação de serem elas a garantir o sustento diário, recolhendo frutos e raízes. Com que mestria o fazem! Onde nós não vislumbramos nada a não ser areia, elas abrem um buraco fundo com as mãos e encontram raízes enormes que o saber ancestral lhes ensinou a descascar bem com as suas lâminas de pedra e a pisar cuidadosamente para lhes extrair o suco venenoso. Depois resta uma farinha que assam sobre as brasas da fogueira pequena. Quando escasseiam as bagas e os frutos vão-se embora, seguindo os trilhos do rio. Pelo caminho vão deixando registos nas pedras com as suas magníficas pinturas rupestres ao ar livre.
Quando morre alguém metem-no na sua cabana. Os vivos, mesmo que haja alimentos, levantam o acampamento e partem, levando consigo o nada que possuem e quase nada deixando que permita o estudo do seu modo de vida a quem se queira guiar pelos restos materiais. O abandono dos mortos, segundo o professor Viegas Guerreiro, é das poucas manifestações religiosas dos San. A outra é a dança ritual dos curandeiros, para curar os doentes ou para pedir ao tempo que mande a chuva da sobrevivência.
Nem historiadores nem antropólogos são capazes de explicar por que razão alguns povos evoluíram no seu modo de vida enquanto outros se deixaram permanecer imutáveis. Quando, há cerca de 8000 anos o Neolítico chegou a África, os povos que se sedentarizaram e começaram a praticar a agricultura viram a sua população crescer e passaram a exercer grande pressão sobre os territórios percorridos pelos povos nómadas. Assim aconteceu com os Bantos e os !Kung San. Estes foram empurrados para o deserto que nunca foi terra que apetecesse a ninguém. Mas o golpe maior chegaria com os Boers, os puritanos holandeses que, em guerras sucessivas, iriam reduzir este povo a números insignificantes.
Em data que não sei precisar, o governo do Botswana delimitou uma área, a que chamou reserva, e encafuou lá os bosquímanos. Área sem acesso a água e pouco extensa para permitir o modo de vida tradicional, condenando-os à morte lenta. Em 1997, o supremo tribunal desse país, alegando prejuízos para o meio ambiente, decidiu expulsá-los da reserva. O mesmo organismo, há poucos dias, permitiu o seu regresso, mas desobrigando o governo do abastecimento de água e de alimentos.
A sua ancestralidade pode ser atestada pelas inúmeras pinturas rupestres que foram deixando pelos caminhos do tempo. São caçadores-recolectores, autênticas relíquias vivas do nosso passado humano. Usam uma linguagem de estalidos (representada graficamente por !) e o nome que se dão a si próprios pode ser traduzido por “Pessoas”. São geralmente conhecidos pela designação inglesa, “Bushmen” que adaptamos para “Bosquímanos”.
Os !Kung vivem no deserto do Kalahari que não é um deserto de dunas, antes, uma espécie de savana que ocupa uma extensa área partilhada pelos actuais territórios da África do Sul, Namíbia e, sobretudo, Botswana. A Norte, algumas franjas entram por terras angolanas. O Kalahari é atravessado por alguns rios que determinam os caminhos dos !Kung e tem época de chuvas que permite que a vida vegetal e animal sejam abundantes. O modo de vida deste povo do deserto que, inesperadamente, passou a contar com uma garrafa de coca-cola, ficou ternamente registado no filme de Jamie Uys, Os Deuses Devem Estar Loucos.
Há cerca de 25 anos, o Professor Viegas Guerreiro, decano da antropologia em Portugal, apresentou-me aos !Kung, exibindo um filme que ele próprio realizara durante os dois anos em que vivera com este povo. Aprendi, assim, que os San não têm chefes e que as decisões que interessam ao grupo são tomadas em grupo. Esses grupos podem ser extensos – até 100 pessoas – se os alimentos disponíveis forem bastantes, mas normalmente são menores, podendo não ultrapassar os 10 indivíduos.
Os San abrigam-se em cabanas que constroem recorrendo à vegetação alta que fazem assentar sobre uma estrutura de ramos. Os homens dedicam-se à caça e não importa os dias que demore até capturarem uma presa, porque a maior vergonha é regressar ao acampamento sem o suprimento de carne necessário. Caçam usando lanças feitas com as próprias mãos, com pontas de sílex (?) habilmente trabalhadas e que embebem em veneno eficaz. Sobre as mulheres recai a obrigação de serem elas a garantir o sustento diário, recolhendo frutos e raízes. Com que mestria o fazem! Onde nós não vislumbramos nada a não ser areia, elas abrem um buraco fundo com as mãos e encontram raízes enormes que o saber ancestral lhes ensinou a descascar bem com as suas lâminas de pedra e a pisar cuidadosamente para lhes extrair o suco venenoso. Depois resta uma farinha que assam sobre as brasas da fogueira pequena. Quando escasseiam as bagas e os frutos vão-se embora, seguindo os trilhos do rio. Pelo caminho vão deixando registos nas pedras com as suas magníficas pinturas rupestres ao ar livre.
Quando morre alguém metem-no na sua cabana. Os vivos, mesmo que haja alimentos, levantam o acampamento e partem, levando consigo o nada que possuem e quase nada deixando que permita o estudo do seu modo de vida a quem se queira guiar pelos restos materiais. O abandono dos mortos, segundo o professor Viegas Guerreiro, é das poucas manifestações religiosas dos San. A outra é a dança ritual dos curandeiros, para curar os doentes ou para pedir ao tempo que mande a chuva da sobrevivência.
Nem historiadores nem antropólogos são capazes de explicar por que razão alguns povos evoluíram no seu modo de vida enquanto outros se deixaram permanecer imutáveis. Quando, há cerca de 8000 anos o Neolítico chegou a África, os povos que se sedentarizaram e começaram a praticar a agricultura viram a sua população crescer e passaram a exercer grande pressão sobre os territórios percorridos pelos povos nómadas. Assim aconteceu com os Bantos e os !Kung San. Estes foram empurrados para o deserto que nunca foi terra que apetecesse a ninguém. Mas o golpe maior chegaria com os Boers, os puritanos holandeses que, em guerras sucessivas, iriam reduzir este povo a números insignificantes.
Em data que não sei precisar, o governo do Botswana delimitou uma área, a que chamou reserva, e encafuou lá os bosquímanos. Área sem acesso a água e pouco extensa para permitir o modo de vida tradicional, condenando-os à morte lenta. Em 1997, o supremo tribunal desse país, alegando prejuízos para o meio ambiente, decidiu expulsá-los da reserva. O mesmo organismo, há poucos dias, permitiu o seu regresso, mas desobrigando o governo do abastecimento de água e de alimentos.
Falta dizer que, na reserva, tinham sido encontradas importantes jazidas de diamantes. Pobres !Kung San!
7 comentários:
Estive, ontem, para fazer um artigo sobre os Bushmen mas ainda bem que não o fiz.
Tudo o que diria está aqui, e ainda mais alguma coisa que o contacto com o prof. viegas guerreiro te trouxe.
Sobre estes povos, haverá talvez que comentar que a sua pureza incomodou e incomoda muita gente.
Os boers sempre foram uns "queridos" desde que tomaram conta da terra africana que não lhes pertence.
Encontradas jazidas de diamantes na reserva, era de esperar essa acção das autoridades.
Assim se têm feito as grandes fortunas em terras flamengas e não só!
Um nojo!
Abraço grande.
Jorge
Foi, precisamente, por ter lido a notícia do dia que tens na tua página que me lembrei que, há muito tempo, pretendia escrever sobre os !Kung. Sem saber passei-te à frente. Desculpa.
Tens razão quanto aos Boers, pessoas que puseram em prática actos contrários à Humanidade. Quero, no entanto, sublinhar o papel desempenhado pelas actuais autoridades do Botswana que seguem, em relação aos Bosquímanos, práticas idênticas às dos Boers. O racismo e toda a crueldade que lhe está associada é triste apanágio de muitos.
Um abraço
Cara MPS: passei para ler este seu interessante artigo sobre os bosquimanos, os khoisan, ao que parece, descobertos pelos europeus durante a expedição marítima de Vasco da Gama em 1497.
A filologia grafou este povo sob diversas formas: bosquimanes, bosquimanos, bosquímanes, bosquímanos, boximanes, bochimanos, bochimanes, etc.
A população bosquimane de Angola fala (falava?) dois dialectos quase em vias de extinção na década de 1970: Maligo e !O!ung, ambas línguas nasais, cheia de estalidos, com fonemas consonânticos classificados entre egressivos (sem estalidos), e ingressivos (com cliques). Não usam verbos auxiliares, que são transitivos ou intransitivos.
Os bosquímanos de Angola foram alvo dum prolongado estudo do professor António de Almeida, que a eles dedicou mais de 20 anos de pesquisa a partir da década de 1950.
De resto e como sempre, foi um prazer vir aqui ao seu blogue. Até breve.
Caro Jofre, mais uma vez devo agradecer-lhe o sempre válido e estimado contributo.
Há, de facto, esses nomes todos para o mesmo povo cujo modo de vida, creio, não deve chegar à próxima geração.
Obrigada por ter referido o nome do Professor António de Almeida que, lamentavelmente, omiti no texto. Obrigada, também, pelos valiosos esclarecimentos acerca da língua dos San.
Um abraço
muitissimo obrigado, me ajudou bastante seu relato sobre a vida dessas pessoas... Que em nosso seculo (nao tao moderno), mas ainda sim! Existam pessoas vivendo dessa "forma".
abraço.
Anónimo
Disponha sempre.
Outro abraço
Olá,meu nome é Pedro Luz,sou antropólogo brasileiro com mestrado pelo PPGAS/Museu Nacional. Minha tese de doutorado é sobre os Hüpda, coletores-caçadores do noroeste amazônico. Sou estudioso de povos coletores-caçadores, como os Kung San e gostaria de saber como ter acesso aos trabalhos dos estudiosos portugueses mencionados nesta página. Agradeço qualquer ajuda,um abraço do outro lado do atlântico, Pedro. pedroluz.rlk@terra.com.br
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