Fiama Hasse Pais Brandão escreve de forma despojada. Ela afasta o acessório e usa as palavras em sentido rigoroso e coloca-as na frase em lugar medido ao milímetro. Resultam poemas límpidos e de significado claro. Em muitos, além do sabor da poesia, encontramos a militância política que significa desejo de verdade e ânsia de liberdade:
A Matéria Simples
Os brilhos que na noite vêm
são dos olhos dos que sonham,
viagens pelos mares de outras águas.
São os que não gostam de se elevarem
no ar sobre os antigos oceanos
e amam os pequenos riachos
e o fundo invisível dos poços.
(in, Fábulas)
Não creio que Fiama Hasse Pais Brandão integre a vaga dos poetas do Neotrovadorismo, termo inventado por Rodrigues Lapa; mas utilizou a recriação poética. No poema Barcas Novas inspira-se directamente na cantiga de amigo En Lixboa, sobre lo mar, de Joan Zorro, um dos poetas dos cancioneiros galaico-portugueses.
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
Não lavram terra com armas
os homens
Nelas mandaram meter
os homens com a sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
(in: Barcas Novas , 1967)
En Lixboa, sobre lo mar
En Lixboa, sobre lo mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai, mia senhor velida!
En Lixboa,, sobre lo ler
Barcas novas mandei fazer.
Ai, mia senhor velida!
En Lixboa, sobre lo mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai, mia senhor velida!
En Lixboa,, sobre lo ler
Barcas novas mandei fazer.
Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
E no mar as mandei deitar.
Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
E no mar as mandei meter.
Ai mia senhor velida!
Joan Zorro
Eis, como, um poema repleto de alusões eróticas se transforma em poema contra a guerra colonial (atente-se no ritmo e na repetição das palavras): a guerra não faz sentido porque As armas não lavram terra.
Fiama Hasse deixou-nos hoje. A minha memória não partilha do esquecimento a que tem sido votada.
5 comentários:
Simples mas justa homenagem a uma poetisa anti-establishment e, por isso, pouco compreendida e menos divulgada.
Minha antiga colega de Curso, mas de uma geração anterior, dos anos 60, foi no autocarro de 2 andares fretado pela Pide levada para um quartel militar, num dia qualquer de 1962, quando se encontrava na velha cantina da Universidade Clássica de Lisboa.
Como se explica Ípias..., Fiama Hasse Pais Brandão
Como se explica Ípias, que os antigos sábios
todos se tenham afastado dos negócios públicos?
perguntei, porque também eu calei
a minha voz pública de outrora. Cidade,
perdoa-me a ausência e o rancor,
perdoa que a minha voz agora
não nomeie os teus cais de embarque,
a dor, a miséria e cúpida opressão.
Ainda amo, neste exílio de paz a mesma Paz.
Sábia, não sou. Calei-me porque
as memórias minhas e a voz sozinha
também pertencem ao Todo, em harmonia.
Ainda amo a pátria, feita de lugares, parentes,
dos próximos, e do vento, meu semelhante.
Um abraço.
Caro Jorge, obrigada pelas tuas palavras e pelo poema de Fiama que aqui deixaste.
Lamento a demora, primeiro da publicação do teu comentário; depois da resposta, mas a vida, às vezes, passa-nos à frente.
Um abraço
Conhecia mal a figura literária de Fiama Hasse Pais Brandão, que sei ter sido poetisa, dramaturga, ficcionista, ensaísta e tradutora, e se não estou equivocado, esposa de Gastão Santiago da Cruz, poeta, encenador e crítico literário, durante muito tempo ligado ao grupo de teatro da Faculdade de Letras.
Aliás, o seu nome próprio era profundamente poético, raro e sui generis, e até foneticamente agradável e terno: FIAMA. Embora por este triste motivo, aproveitei para reler alguns dos seus poemas inseridos numa antologia poética.
Fiama Hasse foi tudo aquilo que o Jofre escreveu.
O curioso é que foi, precisamente, a sonoridade do seu nome que me levou à procura dos textos dela, depois de, pela primeira vez, ter ouvido o Adriano Correia de Oliveira a cantar o poema que transcrevi no post.
Um abraço
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