31/08/2006

Devoção popular

A devoção popular está recheada de belas fórmulas. A linguagem é simples, porém, quem conhecer o ritmo da frase e a musicalidade das palavras descobrirá nela encanto enorme. O povo adonou-se da fé; deu-lhe as cores do afecto e contou as histórias à sua maneira. E uma fé colorida e pura que assimila o passar dos dias.

Deixo aqui alguns excertos de orações recolhidas em:

Firmino A. Martins (P.e) , Folklore do Concelho de Vinhais, ed. Câmara Municipal, Vinhais, 1997

A edição citada é fac-similada da original de 1927 e a transcrição é textual


Ó altíssimo Senhor,
estais pregado nesse madeiro;
aqui tendes a minh'alma,
ponde-a de travesseiro

(...)

*

No alto daquela serra
está Nosso Senhor deitado,
sem lençol nem cabeceira.
Cheira a rosas e a cravos
e à flor d'amendoeira;
já omilho está em cana
e o trigo em flor;
já os passarinhos cantam
à ressurreição do Senhor. Amén

*


(Eis como se conta a história de Lázaro)


S. Lázaro se fezo pobre
p'ra um bom senhor servir,
à porta de rico home
esmola foi a pedir.
Rico home estava jantando
non no quisera ouvir.
Levanta-te, Manuel Gonçalves,
por ser o moço bem mandado
vai lh'abrir àqueles libréus
daquela boca mais cruel;
libréus que lá chegueram
de rodilhas se puzeram
lamberam as suas chagas;
por Deus e Santa Maria
morreram ambos num dia.
Da boca de São Lázaro
sai uma fonte menar,
da boca do rico home
sai um fogo infernal.
- Deixa meter o pol'gar
na tua fonte menar!
Se ó outro mundo tornar,
órfãs e viúvas mando casar,
igrejas e altares mando pintar.
- Vai-te daí, home rico,
no outro mundo já estiveste,
não me fizeste bem neum
se não mal quanto pudeste.

3 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

A CRIANÇA,A MÃE E A LUA

Luar, luar,
Toma o teu ar,
Deixa os meus meninos
Crescer e medrar.
(canção cantada em Baião, in Vasconcelos, 1982, V:80)
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CANÇÃO À LUA NOVA, cantada em S. Geraldo, Montemor-o-Novo:

Lua Santa!
Minha madrinha!
Não me faças mal a mim
Nem a coisa minha!
(Vasconcelos, 1982:27)
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No Brasil, recita-se três vezes a seguinte oração, para que a lua deixe estender ao luar as fraldinhas da criança:

Luar, luar,
Crescei, minguai,
Dá-me o teu bem, tomai o meu mal,
Aqui está o meu menino,
Deixai-mo criar.
(id., ibid.:28)
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As doenças da lua, consequências dos "ataques da lua", são várias: mal do afito (diarreia), quebranto (fraqueza), "afegar" (respiração ofegante). Além das canções, para fazer face a estas doenças há toda uma panóplia de rezas, acompanhadas de unções de unguentos de produtos vários com os quais se unta toda a criança. Em alguns lados (Alto Alentejo, por exemplo), procede-se ao "benzer da lua" ("benzedura" ou "bênçoa" da lua) , feito pela avó que acompanha a reza com a aspersão de azeite. Noutros lados, como no Cadaval, efectua-se a defumação, acompanhada de rezas com cruzes na mão e um crucifixo sobre a criança:

Menina (ou o nome da criança),
A lua por ti passô
E a tua cor luvô
E a sua dêxô;
Ela por aqui tornará a passar
E a tua tornará a dêxar
E a sua tornará a luvar.
Em lôvor de N. S. da Concêção,
Pois ela a tem na sua mão.
(Vasconcelos, 1982:33)
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BIBLOGRAFIA ÚTIL

VASCONCELOS, J. Leite de (1982) . Etnografia Portuguesa. Tentame de Sistematização, vol. V, VIII e IV. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

VASCONCELOS, J. Leite de (1984) . Tradições populares de Portugal, 2.ª ed. rev. e aum. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

PEDROSO, Consiglieri (1988) . Contribuições para uma mitologia popular portuguesa e outros escritos etnográficos, Lisboa, Pub. D. Quixote.

Um abraço,
Jorge 4.09.06 05:34 a.m.

MPS disse...

Que bela contribuição, obrigada Jorge!

Jorge P. Guedes disse...

Bela não sei, empenhada e gostosa foi.
As coisas e situações na vida em que, mais que as palavras,os actos são importantes.
Eu quis contribuir, fazendo a mim mesmo a vontade ao desejo.
Ainda bem que gostaste!

Um abraço amigo.
Jorge 05.09.2006 00:08