01/01/2008

Há quem lhe chame civilização!

O País estava em insurreição geral. Junot, formado na guerra clássica, acredita que a vitória depende da conquista das cidades; por isso ordena a Loison que vá tomar o Porto. Mas a Loison (e a todos os outros generais, por todo o País) depara-se um tipo diferente de guerra. É todo um povo em armas - paus e chuços - que se alvoroça e rebela contra os ocupantes, que ataca quase sempre de improviso e faz nascer a guerra de guerrilha. Estamos em 1808.


Loison saiu de Almeida a 17 de Junho. A 20, chegou a Lamego, que se rendeu imediatamente. A 21 atravessou o Douro próximo da Régua, em direcção a Mesão Frio (...). Quando, porém pretendeu continuar para Amarante e penetrou nas montanhas, foi para assistir ao fim do que tinha sido, até ali, o passeio militar francês em Portugal. Uma considerável força de paisanos, religiosos e quatro dúzias de fidalgos e oficiais (...) investiu contra os flancos e a retaguarda da coluna de Loison. (...)

Loison sofreu baixas significativas. (...)

Impedido de prosseguir, Loison recuou para a Régua, constantemente embaraçado pelas guerrilhas. Perto da Régua e, depois, na travessia do Douro para Lamego, o ataque intensificou-se e os franceses sustentaram de novo pesadas perdas em homens e material. Pela primeira vez, os «gloriosos conquistadores da Europa» fugiam. E fugiam diante de uns milhares de paisanos, com paus e piques e a rara espingarda raramente nas mãos de vocações naturais, como a do frade dominicano José de Jesus Maria, o «frade branco» que depressa se celebrizou pela sua infalível pontaria e a impressionante quantidade de soldados inimigos de que piedosamente aliviou a pátria martirizada.

Perante a inesperada eficácia da rebelião, Loison adoptou, quase como reflexo, a única estratégia coerente de contra-guerrilha: as represálias maciças sobre a população civil. Na impossibilidade de encontrar e bater os insurrectos, que esta escondia e apoiava, a única alternativa lógica (embora não exactamente moral) consistia em obrigá-la a mudar de campo, pagando largamente em vidas e em bens portugueses qualquer gesto contra o ocupante. (...)

À eleição destes métodos, no futuro banais, de sufocar o levantamento, e não à sua crueldade privada, deve o «maneta» Loison (não tinha um braço) a sua presente má reputação, como também por causa deles a locução «ir para o maneta» se fixou perenemente na língua. A campanha repressiva abriu, logo após a primeira derrota dos invasores, com o saque da Régua e, em toda a sua longa retirada para a fortaleza de Almeida, a coluna (que «diminuía a cada passo») queimou searas, casas, celeiros, matou homens, mulheres, crianças e velhos (...)

Acontece que a política de tomar um país por refém ou elimina totalmente a resistência ou, pelo contrário, a redobra. No caso, redobrou-a. As áreas que não se haviam «levantado», «levantaram-se nas costas do Maneta», i.e., assim que a coluna punitiva se afastou; e na sua frente, quando se espalhou a notícia dos crimes e devastações que cometera a revolta e a oposição violenta pareceram mais económicas e, principalmente, mais seguras, do que a submissão resignada, ao saque, ao fogo e à morte. Serpentina, uma aldeia perdida, ao pé de Celorico, é um exemplo típico. Os habitantes organizaram patrulhas para vigiar os movimentos de Loison. À sua aproximação, os homens fugiram, deixando para trás apenas o juíz ordinário e mulheres, crianças, inválidos ou velhos, que Loison matou. Numa palavra, a intimidação falhara e os franceses tinham agora de lutar contra um povo em armas.

Junot dá o Norte por perdido, mas não pode perder o centro e o Sul. Reúne as tropas entre Peniche, Santarém e Setúbal e decide enviar uma expedição a Leiria e Tomar, e outra ao Alentejo. O pensamento era o mesmo do do Maneta: destruir para intimidar.

Entretanto, os chefes menores, que estavam no campo, adiantavam-se por sua iniciativa (...). Em Beja, Maurasin assassinou 1200 pessoas e permitiu também a pilhagem, as violações, a profanação de conventos e igrejas. Enquanto Kellerman, que lhe encomendara esta meritória missão, proclamava em tom cesárico, para edificação da província: «Habitantes do Alentejo! Beja tinha-se revoltado, Beja já não existe.» Já não existiam, de facto, neutros, as cidades viam-se colectivamente declaradas «criminosas» ou «inocnetes» e toda a gente nelas tratada como tal. De norte a sul, a repressão assumia formas idênticasd por idênticas razões. Mas com resultados semelhantes. Em menos de três semanas, o Alentejo estava outra vez insurrecccionado e Évora restaurava o Príncipe Regente. (...)

A campanha de Loison no Alentejo foi, sem dúvida, a mais brutal da primeira invasão. O exército marchava em território absolutamente hostil. Os habitantes dos casais, das aldeias e das vilas fugiam à sua aproximação, levando consigo tudo o que podiam e, sobretudo, víveres. Em breve, os franceses ficaram sem vinho, carne, pão e água. Os soldados deliravam de sede. (...)

A dureza das condições que havia sido obrigado a suportar não inclinou o exército ocupante à moderação. A 28, perto de Montemor, destroçou uma força mista de paisanos, milícia e regulares espanhóis. A 29, surgiram em frente de Évora 10 000 franceses, dispostos não simplesmente à guerra, mas a uma vingança exemplar. No interior da cidade os rebeldes sabiam também que não lhes seria concedido quartel e mesmo os puros «civis», instruídos no destino de Beja e Vila Viçosa, não alimentavam ilusões sobre a sua probabilidade de salvação. Isto provocou uma luta tenaz e desesperada. Apesar da enorme superioridade técnica e numérica de Loison, os defensores da cidade aguentaram duas ofensivas gerais e só abandonaram os baluartes à ponta de baioneta. O próprio avanço dos franceses no interior de Évora foi duramente ganho, rua a rua, casa a casa, contra o «fogo terrível» que paisanos e milícias faziam das janelas, telhados e torres das igrejas. Segundo fontes oficiais do exército invasor, só da parte dos vencidos o custo das operações militares - i.e., excluindo a «carnagem» que lhes sucedeu - chegou a 5000 mortos e 2000 feridos e prisioneiros. E o saque e as execuções com que se celebrou a vitória aumentaram a conta para 8000 mortos e não se sabe quantos feridos. (...). No fim do dia, os soldados franceses recusavam-se a entrar no pelotão de fuzilamento. Mataram-se, é claro, as pessoas apanhadas de armaa na mão. Mataram-se as mulheres, velhos e crianças indiscriminadamente ou por acidente. Mataram-se dezenas de religiosos (...), a quem se deu, como a «feras», sistemática «montaria», por simples retribuição do papel do clero no levantamento. Assaltaram-se as igrejas e conventos, onde a população ingenuamente se refugiara, que se pilharam depois de ponta a ponta, do «santo tabernáculo» às sacristias e oratórios. Não se «poupou a decência, virtude e honestidade» das freiras. Por seu lado, os roubos atingiram extremos raros de minúcia e rapacidade. Desde o ouro e a prata da Sé e do Paço Episcopal ao ouro e à prata dos «remates» de «pequenas e delicadas peças» do museu privado de Frei Manuel do Cenáculo, desde o anel do bispo (que lhe tiraram do dedo) a cavalos e carruagens, desde móveis e roupas a géneros alimentares, nada escapou ao imperial apetite do ocupante. À noite, acompanhado de quarenta oficiais, Loison apresentou-se no Paço Episcopal. Ao que parece, queria jantar. Mas não jantou. Porque não havia de quê e as suas tropas tinham assassinado o cozinheiro.

Vasco Pulido Valente, Ir Prò Maneta, Lisboa, Alètheia Editores, 2007 (pp 65-75)


Eis aquilo a que alguns bem pensantes continuam a chamar a civilização que os franceses fizeram o favor de nos trazer!

Como o País volta a estar a saque (sem precisar de mãos estranhas), não me lembrei de nada mais verdadeiro para publicar em dia de ano novo.

3 comentários:

Isamar disse...

Sabes, este tipo de post é um dos meus preferidos. E, já agora, acrescento que gosto dos blogues simples, sem grandes decorações nem "condecorações". O Teu é um deles. Depois, os assuntos atraem-me. Foi há pouco mais de um mês que se comemoraram os duzentos anos da entrada das tropas napoleónicas em Portugal, E, de facto, muitos estragos fizeram . Olhão foi uma das terras onde o povo se lavantou em armas para os expulsar do canto lusitano e homens do mar, fizeram-se a ele, num caíque, e foram dar a boa nova ao rei que, com a corte, estava no Rio de Janeiro. Deste tempo ficou a expressão "ir para o maneta" com origem talvez nesse tal Louison.
Beijinhos e vai passando sempre.

Bom Ano Novo!

MPS disse...

Sophiamar

Grata pela preferência e pelos elogios.

Já dediquei alguns artigos a este assunto das invasões:

http://urzeira.blogspot.com/2007/09/laranjas-e-traies.html

http://urzeira.blogspot.com/2007/11/h-200-anos-vspera-do-1-de-dezembro.html

http://urzeira.blogspot.com/2007/12/ainda-os-franceses.html

De facto, os franceses pisaram solo nacional a 19 de Novembro de 1807 e entraram em Lisboa na véspera do 1.º de Dezembro!

Aquilo que diz de Olhão é a mais pura verdade e a ida ao Brasil desses pescadores valeu à terra o título de "Olhão da Restauração" [do Príncipe Regente, entenda-se].

E agora lembrou-me do Zeca Afonso:

"Ó Vila de Olhão
Da Restauração
Madrinha do povo
Madraste é que não"

Um abraço

MPS disse...

Sophiamar

Esqueci-me de um último assunto:

O Maneta é, de facto, o Loison.