02/01/2008

Enquanto há força


Roubo ao Zeca Afonso o título do artigo.

Por enquanto vou sendo capaz de resistir à voragem que a leitura das leis, dos decretos normativos, dos despachos que explicam os decretos normativos e dos esclarecimentos aos despachos impõe aos professores ( não sei se, também, ao comum dos cidadãos). Revolta-me o turbilhão em que o ensino foi posto e a minha revolta traduz-se, não em gritos, mas no não perder de vista o essencial. E o essencial é o ensino, ele próprio. Por isso continuo a ensinar e insisto em recusar a ideia de que aprender é algo acessível a poucos; por isso me oponho à ideia de que a escola pública existe com o único fito de guardar crianças, não importa como nem a fazer o quê, antes de atingirem a idade de trabalhar (ideias jamais declaradas mas evidentes para quem se der ao trabalho de interpretar as políticas). Por isso me dou, exijo em troca e não fico surpreendida.

O ensino da História não pode conviver com o desconhecimento da Língua Portuguesa. Enfureço-me (com quem o permitiu) e entristeço-me (com os alunos) quando constato - e constato diariamente - que a garotada não aprendeu a escrever frases e é incapaz de estabelecer um raciocínio lógico e argumentativo, de estabelecer relações de causa/efeito porque, nem sequer, sabe o significado de causa e efeito. Também é incapaz de guardar grande coisa na memória. A simples e essencial memória de trabalho não comporta mais do que uma palavra!
Não aceito conformar-me com isto e, se recorro ao ensino tradicional (que manda decorar o que a isso se presta) para desenvolver a memória, socorro-me de outras manhas (desculpem-me se não digo estratégias, mas eu não estou em guerra com os alunos) para conseguir que os meus meninos aprendam a interpretar o mundo e a expressar o pensamento.

Escrever um poema não resulta, normalmente, de uma inspiração qualquer. Um poema é feito de muito trabalho e da obediência a regras, sejam elas conhecidas ou, simplesmente, intuídas. Expliquei aos meus alunos o que foi a cultura cortesã nascida na Idade Média, declamei-lhes muitos poemas e ensinei-lhes a importância das cantigas de amigo. Mostrei-lhes as regras das cantigas paralelísticas e, em conjunto, turma a turma, escrevemos uma para exemplo. Depois, pedi que cada um escrevesse a sua, obedecendo àquelas regras. Ultrapassada a inibição inicial e a vergonha que os rapazes tinham de escrever no feminino, num leva e traz constante (corrige aqui que não rima bem; este verso está muito longo...)os resultados foram os que esperava: francamente bons. Um não foi capaz de obedecer ao paralelismo (mas é a melhor de todas as cantigas, quanto a mim) e a outro saiu uma cantiga de amor. Para que o ramalhete ficasse mais vistoso, nem sequer faltaram as cantigas de escárnio.


Eis alguns exemplos. Os autores têm treze anos e dois deles são autistas. Repare-se na mestria com que alguns refrões foram introduzidos e na delicadeza de todos eles.


Amor, que já foi perdido
Porque não cedes ao meu pedido?
Esquecer-te irei? Não!

Amor que já foi amado
Porque não cedes ao meu rosto molhado?
Esquecer-te irei? Não!

Porque não cedes ao meu pedido?
É amor não correspondido.
Esquecer-te irei? Não!
Melissa Jorge

Ai estrelas deste céu brilhante
Aliviai-me desta dor constante
Da saudade!

Ai estrelas deste céu imenso
Aliviai-me desta dor intensa
Da saudade!

Aliviai-me desta dor constante
Para que saia triunfante
Da saudade!
Oana Zepa

Sobre aquelas águas brilhantes
Em ondas sempre constantes
Chegava meu amigo.

Sobre aquelas águas sombrias
Em ondas largas e frias
Chegava meu amigo.

Em ondas sempre constantes
Vindo de terras distantes
Chegava meu amigo.
Catarina Lopes





Ai grande rio Tejo
Bem sabes quanto desejo
Do meu amigo saber.

Ai grande rio tão belo
Bem sabes que tanto quero
Do meu amigo saber.

Bem sabes que desejo
E há longo tempo anseio
Do meu amigo saber.
Raquel Silva

Ai que brisa perfumada *
Tão fresca que me agrada
Assim como a minha amada
Tão serena e cobiçada!

Ai que lindo bosque
E árvores de tão alto porte
Assim como a minha amada
Tão serena e cobiçada!

Ai que linda e branca
Como ela é tão branda
Que só de olhar encanta!
Assim é a minha amada
Tão serena e cobiçada!
Manuel Couto * c. amor

Enquanto os barcos velejavam
E as águas se agitavam
As sereias cantavam!

Enquanto os barcos navegavam
E as águas se turvavam
As sereias cantavam!

E as águas se agitavam
Quando os amigos falavam
As sereias cantavam!

E as águas se turvavam
Quando os amigos se amavam
As sereias cantavam!
João Anselmo
Os pássaros voavam
Suas asas agitavam
E as saudades apertavam.

Os pássaros cantavam
Suas asas repousavam
E as saudades apertavam.

Suas asas agitavam
Pelos ventos que passavam
E as saudades apertavam.

Suas asas esticavam
Pelos ventos voavam
E as saudades apertavam.

Pelos ventos voavam
Mas notícias não chegavam
E as saudades apertavam.
Mauro Rodrigues

Sentada na areia
À espera da lua cheia
Pensava e murmurava.

Sentada no abrigo
À espera do meu amigo
Pensava e murmurava.

À espera da lua cheia
Sem te tirar da ideia
Pensava e murmurava.
Ricardo Borrego


Amigo meu, que estás na guerra,
Quando regressas à terra?
Levada de saudades sou!

Tão longe estás amigo meu
Que regresses bem, oro ao céu.
Levada de saudades sou!

Se virdes meu amado
Dai-lhe o seguinte recado:
Levada de saudades sou!

Esperançada no seu retorno
Me preparo e me adorno.
Levada de saudades sou!

Ouvindo os seus passos estou;
Para meu amigo eu vou.
Levada de saudades sou!
David Direito
À porta da estalagem
Pareceu-me ver a tua imagem.
Continuei viagem!

À porta do teu abrigo
Pareceu-me ver alguém contigo.
Continuei viagem!

Pareceu-me ver a tua imagem:
Eras mesmo tu, abencerragem!
Continuei viagem!
Rafael Oliveira


O Zé e a Rafaela não me falharam com duas belas iluminuras: aquelas que ilustram o artigo!
Perante isto, bem pode o poder político maçar-me. Eu olho para os meus garotos e sigo em frente. Enquanto há força!

10 comentários:

Isamar disse...

E está a ser tão difícil não perder de vista o essencial!Excelente trabalho este que nos apresentas feito por garotos de treze anos. Começam assim a desenvolver o gosto pela escrita, pela poesia, pela História... Não deixemos que o ensino se torne coisa abjecta e que os papéis se tornem a parte essencial do ensino. Enquanto há força, resistamos ao ensino que não queremos, à escola que não desejamos.
Beijinhosssss

Anónimo disse...

De facto é um trabalho interessantíssimo! È um agrado ver que temos professores empenhados e capazes de cativar e motivar os alunos para trabalhos desta qualidade!

Ficámos impressionados e tudo lemos com total satisfação.

Jofre Alves
Maria de Fátima
http://vilaflor.blogs.sapo.pt/

Porca da Vila disse...

Os seus 'garotos' estão de parabéns! E ou fui eu que li muito depressa, ou os poemas estão mesmo perfeitos!

Parabéns para si também! Imagino que não deve ser nada fácil motivar muídos de 13 anos e levá-los a escrever desta maneira!

Um Xi Grande para todos

MPS disse...

Sophiamar

Obrigada pela força. Eu e muitos outros vamos tentando, mas não sei se a nova geração de professores não virá já formatada. Penso, por exemplo, no caso da História que estará ligada à Geografia. O curso, devido a Bolonha, será de três anos e já a incluir o estágio pedagógico. Ou seja, em dois anos, o futuro professor terá que aprender toda a História e toda a Geografia que tem que ensinar. Que pode aprender em dois anos?

A conclusão só pode ser esta: teremos professores que saberão muito bem como ensinar coisa nenhuma. Isto, como se depreende, horroriza-me. Entretanto, o País deleita-se a discutir a cigarrilha de um senhor da ASAE enquanto oferece o silêncio aos crimes que se vão praticando contra o ensino dos cidadãos. É assim!

Um abraço

MPS disse...

Caríssima PV

Já estava com saudades suas!

Agradeço-lhe por mim e pela garotada. Eu concordo consigo: os poemas parecem-me perfeitos... não sei se estou a ficar com olhos de mãe!

Um abraço

MPS disse...

Caros Jofre e Maria de Fátima

Bem-hajam pelas vossas palavras. Às vezes consegue-se facilmente, mas quando há resistência recorre-se ao "tens que fazer porque eu mandei!"

Isto dá tudo muito trabalho. Houve garotos que tiveram que escrever três e quatro versões e, claro, eu tive que corrigir cada uma delas. Acredito que esse seja fundamento para que muitos colegas meus evitem lançar-se em aventuras destas. Mas a mim sabe-me tão bem ver os resultados!!!

Um abraço a ambos

Isamar disse...

Passei para te agradecer a visita mas não foi só isso que aqui me trouxe. Vim reler o teu trabalho.És professora de História ou Língua Portuguesa.Os trabalhos enquadram-se em qualquer das disciplinas.Só com muito empenho se conseguem, neste momento,"produtos de aula" desta qualidade.A sua preparação requer ao professor muito trabalho de casa e força para manter a motivação num período tão conturbado.
Quanto à próxima geração de professores não quero fazer grandes comentários. Bolonha reduziu de tal maneira alguns cursos que eu duvido que haja tempo para adquirir gosto pelo conhecimento. Porque o conhecimento adquirido na faculdade, em tão pouco tempo, deve mesmo ser nenhum.
Beijinhossss

MPS disse...

Cara Sophiamar

Sou de História mas, naturalmente, com muito amor por outas áreas, uma delas, aquela a que se dedica. Nem imagina o prazer que tenho em meter as mãos na terra, sempre que posso. Há coisas que se herdam!

No caso dos professores de História/Geografia e dos de línguas o grande culpado é o ME: foi o ME que decidiu unificar o ensino desses saberes e sabia que o estava a fazer para lhe serem aplicados os critérios de Bolonha!

Um abraço

Anónimo disse...

Querida amiga
Quanto trabalho! Quanta mestria!Quanta paciência! Quanto profissionalismo!Quanto amor à causa!
Tenho duas netas, uma no 1ºoutra no 3ºAno - sei o trabalho, extra escolar que elas nos dão, amim e à avó!
Ben-Haja pelo seu trabalho.
Pense no que vou, dizer-lhe, tenho 65 anos, inda recordo os nomes completos das minhas duas professoras,Maria de Sá Mendonça Falcão e Ermelinda da assunção Nunes, não sei se ainda fazem parte, dos aue se movem mas, seja como for ,presto-lhes a minha homenagem de gratidão!
Um abraço
josémanangão

MPS disse...

Caro José Manangão

Bem-haja pelas suas palavras e, sobretudo, por se lembrar de quem foram as suas professoras. Há tão poucos assim!

Um abraço