28/10/2007

João Bénard da Costa e o Público que me perdoem, mas não resisto a trazer para aqui um pedacinho daquilo que um escreveu e o outro publicou, hoje, no caderno P2.


A acção situa-se a 14 de Agosto de 2089, por ocasião das comemorações do terceiro centenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A humanidade progrediu muito desde os bárbaros tempos de 2007, quando só eram punidas discriminações étnicas, religiosas, etárias, de género, por deficiência ou por orientação sexual. Tinha já quarenta anos a célebre lei sobre a Igualdade de Oportunidades para os Inteligentes e para os Imbecis, que proibia, sob severas coimas, e em casos contumazes sob pena de prisão, quem favorecesse, na escola, na vida privada ou na vida pública, determinado individuo em detrimento de outro, alegando a comprovada inteligência de um ou a comprovada estupidez de outro. Aperfeiçoamentos sucessivos, na gloriosa década de 50, haviam mesmo estabelecido que qualquer pessoa que fizesse prova de que fora prejudicada pelo seu atraso ou lentidão mental, tinha direito a receber uma pensão do Estado, destinada a compensa-la da injustiça "natural" que dela fizera, sem qualquer culpa própria, uma besta quadrada. Escusado será dizer que expressões como esta ou equivalentes ("estúpido como as casas", palerma, estólido, obtuso, bronco, idiota, tapado, etc etc) haviam sido rigorosamente proibidas e os códigos deontológicos de qualquer órgão de comunicação audio-visual, de qualquer estabelecimento de ensino, ou de qualquer profissão, proibiam-nas drasticamente. De 2069, datava lei ainda mais revolucionária sobre a Igualdade de Oportunidades para Competentes e Incompetentes, acabando com o escândalo da secular segregação dos últimos face aos primeiros, que, se era certo conhecer desde tempos imemoriais múltiplas excepções, antes da data histórica continuava, às vezes, a servir de valorização para uns e de desvalorização para outros. Também se lhe sucederam sanções jurídicas, sempre que alguém invocava a incompetência de um médico, de um professor, de um cineasta, de um electricista, de um pedreiro ou de um cozinheiro, para a profissão que livremente decidira abraçar. Em 2081, já nos prolegómenos da data célebre, o Parlamento mundial adoptara as leis que proíbam qualquer discriminação entre bonitos e feios. Dera-lhe origem o celebérrimo "affair Merna Parker". Foi o caso da referida senhora, actriz de profissão, que já havia beneficiado do subsídio de imbecilidade e do subsídio de incompetência, se ter candidatado ao papel de Cleópatra numa superprodução centesimal. Os responsáveis tinham-na preterido a favor de outra actriz, alegando que a sua manifesta anorexia, os seus proeminentes beiços leporinos, os seios que lhe pendiam até ao umbigo, o acne que lhe cobria o corpo e as tortíssimas pernas não a tornavam apta a reencarnar a mítica rainha do Egipto. O processo demorou quase dois anos e terminou com a vitória de Merna Parker.

4 comentários:

Anónimo disse...

Pode muito bem ser que 2089 não esteja assim tão distante... Basta avaliar a 'competência' da maior parte dos 'boys' cor-de-rosa que actualmente ocupam tudo o que é lugar de chefia neste país!...

Um Xi Grande

Anónimo disse...

Hola, Eu sou da Galiza, sigo moito o blog, e gostaria de preguntar ó autor por algún dato que publicou da Historia portuguesa.

Pode darme algunha caixa de correo pra me dirixir.

Grazas

uncarlos@hotmail.com

MPS disse...

Cara PV

A graça destes textos está nisso mesmo: finge-se um aprevisão do futuro para fazer crítica séria ao presente. Orwell fez escola!

Um abraço

MPS disse...

Caro vizinho galego

Esteja à vontade. Escrevo-lhe para o endereço que me deixou.

Obrigada pela visita