04/07/2006

4 de Julho

Hoje é o dia 4 de Julho. Os americanos celebram o seu dia nacional; a Humanidade deveria celebrar o momento em que alguém, agarrando na teoria, arregaçou mangas e pô-la em prática: a igualdade entre as nações e entre os homens.


Declaração de Independência dos EUA (1776)
(O texto completo pode ser lido aqui.)

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.

As palavras de Th. Jefferson inspiram-se, directamente, nos textos dos filósofos iluministas que, com as suas ideias de liberdade - revolucionárias numa Europa dominada pelo absolutismo e pelo despotismo - minaram a ordem estabelecida e, sem que os soberanos e os poderosos (que viviam de lhes servir de tapete e de escova de lustro das cabeleiras) se apercebessem disso, tornaram-se bandeira das revoluções que chegariam pouco depois. A independência dos EUA foi a primeira delas.

Será interessante comparar o texto da Declaração de Independência com o seguinte excerto do artigo Liberdade, de Diderot, incluído na "Enciclopédia" (1751) :

Todos os homens são naturalmente livres. (...) Nenhum homem recebeu da Natureza o direito de dirigir os outros. A liberdade é um presente do céu, e cada indivíduo tem o direito de a utilizar como entender, tal como utiliza a razão. (...) O poder que se baseia na violência não é mais do que uma usurpação e só durará enquanto durar a força do usurpador e a submissão dos dominados. Quando estes sacodem o jugo e expulsam o tirano fazem uso de um direito legítimo. O poder que deriva do consentimento do povo pressupõe regras que o tornam legítimo. (...) O príncipe recebe dos seus súbditos a autoridade que exerce sobre eles.

Montesquieu, Condorcet, o próprio Rousseau etc. são os pais destas novas ideias sobre o indivíduo, os povos e o poder. Sobretudo Montesquieu a quem se ficou a dever, pelo "Espírito das Leis", a formulação prática do modo como os poderes devem estar separados e ser independentes. São dele as palavras: Quando, na mesma pessoa ou na mesma instituição se reúnem o poder legislativo e o poder executivo, não existe o mínimo de liberdade, pois que quem faz as leis é o mesmo que as aplica. E, se as leis são tirânicas, serão aplicadas de forma tirânica. Igualmente não existirá liberdade se o poder de julgar não estiver separado dos outros poderes. Se olharmos para a constituição americana, praticamente intocada desde as origens, vemos o modo como estes princípios ganharam vida.

É provável que muitas pessoas, recordando-se da guerra-civil americana e da luta pelos direitos cívicos dos negros durante os anos 60 do séc. XX, se questionem acerca da honestidade da Declaração de Independência e do texto constitucional americano. É verdade que esses textos conviveram com a escravatura e com o segregacionismo racial e sexual, mas também é verdade que não precisaram de ser emendados quando a escravatura foi abolida, quando se deu direito de voto às mulheres e quando foram reconhecidos os direitos cívicos dos negros. Mulheres e homens como Luther King exigiam o cumprimento integral da lei! É verdade que G. Washington tinha escravos, mas isso não faz dele um hipócrita! À luz do tempo pensava-se a igualdade nestes termos: homem e branco! E já era muito, se nos lembrarmos que, também ao tempo, a desigualdade norteava a condição social e que, de acordo com o nascimento, assim se era detentor de direitos ou de deveres, porque se nascia privilegiado ou sem direitos nenhuns, a não ser o direito ao trabalho (o tal que, agora, começam a querer negar-nos!). Alguém, pois, que imagine igualdade neste quadro de desigualdades é profundamente revolucionário, mesmo que aos nossos olhos (transcorridos 230 anos) nos pareça e saiba a pouco. Mas, aqueles que ousam criticar os outros são capaz de olhar à sua volta e contentar-se com o mundo em que vivem e que ajudam a construir?

7 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

Últimas 6 linhas do texto não sei se bem as compreendi stop
Americanos foram grandes copiões stop
Teoria sem prática correspondente é demagogia stop
Meu cérebro muito cansado stop
"Nosso solilóquio" não compreendido stop
Solilóquio não tem companhia, vive só stop
Hoje sinto-me mesmo burro stop
stop

MPS disse...

Essa do solilóquio quem a não compreendeu fui eu. Passa para cá as orelhas de burro, se fazes favor!

Americanos copiões? Das boas ideias apresentadas, certamente! Mas há cópias que é preciso que se façam, porque é a forma de a democracia atingir o maior número possível de povos e de pessoas.

Com as últimas seis linhas quero dizer o seguinte:

1 - o conceito de progresso tem que ser entendido de acordo com o tempo. O que hoje nos parece pouco pode ter sido, na época, um passo enorme. É o caso dos fundadores da América que deram, de facto, um passo de gigante no caminho da conquista dos direitos à dignidade e à igualdade entre povos e indivíduos. Colónias que se assumem como nação em igualdade com a metrópole é um passo admirável; as mesmas colónias optaram pelo sistema republicano para que fosse efectiva a igualdade entre os indivíduos, os mesmos a quem é atribuído o direito de voto, adoptando o princípio, elementar para nós, da soberania popular. Só para teres um exemplo, a França revolucionária adoptou, na constituição de 1792, o sufrágio censitário: só os ricos podiam votar e só os muito ricos podiam ser eleitos. Os mesmos revolucionários também se não lembraram dos negros (que continuaram escravos) nem das mulheres.

Em Portugal estamos habituados a falar do carácter progressista da I República. E foi-o, em numerosos aspectos. Apesar disso, a lei eleitoral de 1911 determinou o sufrágio capacitário (votam os que são instruídos). Uma mulher, médica, de seu nome Beatriz Ângelo, quis recensear-se, mas foi preciso recorrer aos tribunais para ser autorizada, porque nem a comissão recenseadora nem o próprio ministro da justiça lhe aceitaram a inscrição. No ano seguinte, a lei eleitoral foi alterada, sendo excluídas as mulheres! Isto faz dos nossos republicanos tacanhos? Não, faz deles homens do seu tempo, querendo mudar aquilo que lhes parecia errado, mas não viam como errado tudo aquilo que nós vemos! Cada coisa a seu tempo!

2 - É por aquilo que acabei de escrever que me incomoda ouvir críticas aos agentes do passado: exige-se deles que fizessem mais do que podiam, que nos legassem um mundo perfeito! Eu vejo nisso uma contradição, porque nós convivemos, sem que isso pareça incomodar-nos muito, com todo o género de iniquidades. Ou seja: exigimos dos outros aquilo que não somos capazes de fazer.

Lembrei-me disto tudo a propósito do 4 de Julho e quis dizê-lo de forma sintética. A síntese, às vezes, é inimiga da explicação adequada.

Jorge P. Guedes disse...

Afinal tinha compreendido bem as 6 últimas linhas.
e estou genericamente de acordo.
Agora o solilóquio...mas, pronto, tornou-te "humana"!

MPS disse...

As orelhas de burro assentaram arraiais aqui para as minhas bandas. Podes explicar a última linha?

MeMyself&I disse...

Olá! Posso meter a "garfada"?

De facto, confesso, a história americana atrai-me bastante e acho que já tinha falado disto com a nossa cara MPS - eles são de facto uma nação muito jovem e, como tal, teram cometido num passado recente (e porventura continuarão a cometer) alguns erros graves. Contudo, são de facto uma nação admirável, cuja perseverança deveria servir-nos (a povos como nós) que nada nasce sem solução e condenado à partida.

Mas, (como sabem eu sou "adversativo" por natureza e fiel "advogado do diabo") é importante, e não posso deixar de o referir, que após essas inspiradas palavras de T. Jefferson, apenas 90 anos mais tarde foi introduzida a "13th Amendment" à Constituição dos EU - A Abolição da Escravatura.

Um abraço
Miguel

MPS disse...

Sê bem-vindo, Miguel: todos os contributos são isso mesmo, tributos somados, e agradeço que o faças.

Estava convencida de que já me tinha referido, aqui, à questão da escravatura mas, afinal, devo-o ter feito noutro sítio, provavelmente no blog do Jorge. Já não sei que palavras usei, mas a ideia era esta: os homens são filhos do seu tempo e as conquistas fazem-se aos poucos (o supetão dá, normalmente, resultados fátuos); aquilo que nós vemos como um mal era visto, há 200 anos, como natural e evidente. Pensemos, nos dias de hoje, quão controversa é a luta dos homossexuais e teremos um paralelo que ilustra bem as discussões do passado.

MPS disse...

Miguel:
Afinal tinha-me referido ao assunto da escravatura no texto do próprio artigo! Em todo o caso, fui reler a constituição americana, não fosse eu estar esquecida de algum aspecto essencial. Pude confirmar o que pensava: o texto é tão genérico que não exclui ninguém. Os excluídos eram-no por costume e não por lei (aliás, o Norte da não escavatura convivia, sob a mesma lei, com o Sul esclavagista). A essência da constituição é acerca da distribuição de poderes, eleição e funcionamento dos organismos. Transcrevo aquilo que lá está escrito:

ARTICLE I
Section I (Legislative Powers)
(...)No Person shall be a Representative who shall not have attained to the age of twenty five Years, and been seven Years a Citizen of the United States (...).

ARTICLE II
Section I (Executive Power, Election, Qualifications of the President)

(...)No person except a natural born Citizen, or a Citizen of the United States, at the time of Adoption of this Contitution, shall be eligible to the Office of President; neither shall any Person be eligeble to that Office who shall not have atteined to the Age of thirty five Years, and been fourteen Years a Resident within the United States. (...)

As emendas (nem entendo porque lhes chamam assim) não vêm emendar nada, esclarecem o texto constitucional, reforçando-o e dando voz às conquistas que os grupos de pressão vão alcançando. É por isso que, a par de emendas que nos parecem justas (quase todas as do "Bill of Rights, mas lembro que está lá o direito à posse de armas!); a XIII como referiste e eu reforço com a XIX que é de 1920 e atribui direito de voto às mulheres, há outras... bem outras como a "Lei Seca" (XVIII emenda, de 1919)! O que quero dizer com isto? É que mais valia que se deixasse estar a Constituição como foi escrita pelos fundadores porque é um texto de liberdade e, por vezes, surgem correcções a cercear essa mesma liberdade, atitude contrária ao espírito da Lei.