02/06/2006

Vazio

A vertente cultista do barroco literário nunca me seduziu: palavras somadas a palavras falando sobre nada e dizendo coisa nenhuma.

A linguagem pedagógica, classificada como "científica", faz-me lembrar o cultismo barroco: muitas palavras que leio, viro do avesso, procuro-lhes o sentido... mas nada! Aquilo nada me diz, dali nada há para sair! Atente-se nos pontos seguintes, copiados da proposta ministerial de revisão do Estatuto da Carreira Docente:

2 - O docente desenvolve a sua actividade profissional de acordo com as orientações de política educativa e no quadro da formação integral do aluno, cabendo-lhe genericamente:

a) Identificar saberes e competências-chave dos programas curriculares de forma a desenvolver situações didácticas em articulação permanente entre conteúdos, objectivos e situações de aprendizagem, adequadas à diversidade dos alunos;

b) Gerir os conteúdos programáticos, criando situações de aprendizagem que favoreçam a apropriação activa, criativa e autónoma dos saberes da disciplina ou da área disciplinar, de forma integrada com o desenvolvimento de competências transversais;

A introdução lembra que os professores são funcionários a quem compete cumprir as determinações ministeriais. Não é que isso esteja mal, mas por causa disso é que não percebo como é que é aos professores que são assacadas responsabilidades pelo descalabro da educação! Se são responsáveis, então sejam acusados de desobediência e de golpismo; movam-se processos disciplinares contra eles, exonerem-se ou encarcerem-se conforme a gravidade de cada caso! Mas se se provar que cumprem, então concluam aquilo que qualquer pessoa bem formada ou com dois dedos de testa já concluiu: as opções políticas têm sido erradas, embora correctamente cumpridas! É a política educativa que precisa de vassoura!

Depois vêm as alíneas. Alguém é capaz de me explicar o que lá está escrito? Então sou eu que vou escolher quais são "os saberes e competências-chave dos programas curriculares" (...) "adequadas à diversidade dos alunos"? Então para que servem os programas? Não são para cumprir? É que, mais adiante, no mesmo documento, um dos pontos a ter em consideração na avaliação do professor... é o cumprimento dos programas! Em que ficamos? Escolhe-se o que consideramos essencial? Ensina-se tudo? E se não considerarmos nada essencial? E para as respostas ao exame, faz-se o exame nacional à medida do professor, da turma, do aluno? Em qual das circunstâncias é que o professor será bem classificado?

E que dizer da alínea b? Fica tão bonita no papel, não fica? Mas, exactamente, que querem que se faça?

Querem exemplos de "apropriação activa, criativa" dos saberes da disciplina? Seguem alguns, retirados, com erros e tudo, de respostas de alunos meus de oitavo ano (como combinam bem com as palavras da equipa ministerial)!

O capitalismo começou a 1/12/1640 que era liderado por D. João, Duque de Bragança que peterdia acabar com o Reinado dos Felipes e trazer a independência a Portugal.

Capitalismo é a forma económica de organizar a movimentação por objectivos do lucro predominado.

Capitalismo é uma religião de judeus que tem o nome de classicismo.

Capitalismo é uma forma de digerir um reino onde existe um capitalista para comandar todas as operações.

Os novos instrumentos ao serviço do capitalismo era a Inquisição e o Index. A primeira empresa inventada foi o Index que foi onde foi traduzida pela primeira vez a Bíblia para a língua Alemã. A Inquisição era para se conseguir manter uma fé ou religião fixa em Portugal. Estes novos instrumentos vieram ajudar e bastante Portugal e também o capitalismo.

Já sei! A culpa foi minha! Quem é que me mandou considerar o estudo do Antigo Regime como "saber-chave"? Eu é que devia reprovar!

Maria José Nogueira Pinto fala com seriedade daquilo que, verdadeiramente, importa na educação. Mas ela não sabe escrever em "eduquês" (expressão feliz de Nuno Crato) e a sua sensatez não chega à altura da campainha da porta dos iluminados do Ministério da Educação. Aos professores nem lhes vale a pena dizerem ai, porque nunca são ouvidos. Eu chamo a isto autocracia, mas isto sou eu, que não fiz nenhuma apropriação activa dos saberes!

Nota: os temas da educação estão a dar aorigem a uma série de artigos, como este, também no DN (3/6/06).

1 comentário:

Mário Lima disse...

Olá MPS. Obrigado pelo seu comentário no Rumo ao Sul. É bom saber que o que se escreve faz relembrar outros tempos, o tempo em que os cheiros, os sons e a imagem da terra onde se nasce ainda estão dentro de nós. Pena tenho de não saber os sons da cantiga em questão mas por certo, quem os ler, irá cantarolar como se o ontem fosse hoje. Tudo de bom