26/05/2008

Recados

E ao baixar os olhos mais de espaço,
mirabilmente vi que era torcido
cada um entre seu mento e o busto lasso,
que o rosto para os rins era volvido,
e só vir para trás lhe conviria,
pois por diante lhe era tolhido.
Talvez por força de paralisia
torcer-se alguém assim todo, reputo,
mas nunca vi ninguém nem haveria.
Leitor, se Deus te deixa colher fruto
desta lição, por ti pensa por certo,
como eu podia ter o rosto enxuto,
quando essa nossa imagem vi de perto,
mas tão torta seu choro desabrocha
que as nalgas vai banhar em rego aberto.

Dante, O Inferno Canto XX (Círculo oitavo)






Botticelli, ilustração para o Canto XVIII do Inferno de Dante







«Ai de mim, mestre, o que é isto que vejo?»
disse eu. «Ah, esta escolta antes desfaçam,
e vamos sós; que eu cá não a desejo.
Tão avisado que és, não vês que passam
eles agora a arreganhar os dentes,
e os cenhos carregados ameaçam?»
E ele a mim: «Ao medo não te tentes,
deixa-os arreganhar se a gana é tal,
que o fazem aos cozidos lá dolentes.»
Voltam no dique à esquerda do local;
mas não sem que cada um a língua meta
entre os dentes, ao chefe, por sinal:
e ele tinha do cu feito trombeta.

Dante, O Inferno Canto XXI (Círculo oitavo)
Trad. Vasco Graça Moura

8 comentários:

Meg disse...

Caríssima MPS;

E agora? Porque só gosto de me mexer onde me sinto à vontade, e estes recados são à medida de quem os produziu, não me atrevo a ouvir os meus pensamentos. Até porque provávelmente não estão habituados a este nível... Oa malabarismos de Dante não são para todos, para mim então nem ouso.

Cara Mps, agora é mesmo um grande atrevimento,pois vinha informá-la que tenho um convidado sobre cuja escrita muito gostaria de saber a sua opinião. Ele não está lá, mas sim em Ouro Preto, é engenheiro (dos verdadeiros) e professor de Economia Política na Universidade de Ouro Preto.
E POETA!
mas um Poeta que usa as palavras duma forma, para mim, simplesmente fascinante. Alguns poemas são uma orgia de palavras.
Não sei como dizer-lhe o quanto me faria feliz.
O Post parte de uma entrevista, que fala do Poeta e do Homem.

Um abraço

MPS disse...

Viva, Meg!

Atreva-se, sim! Se Dante meteu no inferno pessoas vivas à data em que escreveu, porque se não há-de atrever a Meg? Olhe que há trombetas muito estranhas mas que nunca se calam, cuidando que cantam bem!

Mas é também Sérgio Godinho, com o "Coro das Velhas"... abençoadas minhotas!

Vou visitá-la já de seguida.

Um abraço

Anónimo disse...

AmigaMPS
Será que vai acontecer o mesmo a estes pecadores não arrependidos, apesar de Lisboa não ser Florença para inspirar o vate Dante Aglighieri, que tambem já partiu para o seu inferno há muito,muito tempo.
Valha-nos o Sérgio,para nos dar alguma alegria.
Abraço

Isamar disse...

Cara mps:

Dante foi o poeta florentino que, melhor soube interpretar o seu tempo.
Na Divina Comédia estão patentes os medos dos homens,os seus sofrimentos,as suas dores e a busca incessante por um mundo melhor.
Actualmente,estamos em tempo de recados. Muito bem escolhidos. Embora datados do século XIII, de um período denominado das trevas, em que os mais pobres, obrigados à servidão, a troco de muito pouco,submetidos e manipulados pelo poder absoluto da igreja e dos senhores, encaixam no nosso tempo. Na perfeição!
Embora tenham passado oito séculos os tempos são tão difíceis quanto então. Os homens continuam mergulhados em sangrentas guerras, na fome, no desemprego...
Não está cada mais cavado o fosso entre ricos e pobres? Não foi essa a conclusão de um relatório da União Europeia?Afinal pouco se aprende com a História!

Um abraço

MPS disse...

Caro Manangão

"Estes" não são pecadores arrependidos porque já não têm medo do inferno. São só pecadores, embora cuidem que são boas almas... porque sim.

Mas discordo de si: Dante tem, por força, que estar no paraíso!

Um abraço

MPS disse...

Cara Sophiamar

Essa da idade das trevas - sabe-o bem, porque já o escreveu - é parvoíce criada no Renascimento (fazendo, então, algum sentido) e repetida até à exaustão por gente menos disposta a ou capaz de pensar.

Fez uma bela súmula da obra de Dante e, pese embora a distância, os exploradores exercem, hoje, com o mesmo acinte, o mesmo tipo de exploração económica que praticavam na Idade Média. Serão outros e serão mais...

Quanto às guerras, as nossas são infinitamente mais crueis do que as de antanho. Apesar do que acabei de dizer e dos enormes fossos que cavámos na dignidade humana, tenho uma perspectiva positiva da evolução da Humanidade.

Um abraço

Porca da Vila disse...

Não é muito diferente hoje o abismo que separa ricos e pobres. Num mundo em que a Lua já foi pisada e as sondas descem em Marte enquanto milhões de seres humanos vivem ainda em estado selvagem, num mundo em que alguns pagam centenas de contos de reis por uma simples garrafa de vinho enquanto milhões de seres humanos morrem à fome, num mundo em que uns poucos têm poder de vida e de morte sobre os restantes, não é fácil encontrar diferenças para o tempo de Dante. Ao contrário, talvez...

Xi Grande

MPS disse...

Caríssima PV

Recorda-se do Paulo de Carvalho e da sua "Maria Vida Fria"? Pois é, lembrou-me dele e da primeira versão - censurada - dessa canção. Dizia, mais ou menos assim:

"Há um homem a subir à lua
Outro que dorme na rua...
(...)
Há um preso por roubar um pão
E outro só por dizer - não!"

É difícil, de facto, admitir que mudámos pouco.

Um abraço