06/04/2008

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

No artigo anterior referia-me ao facto de, sob meu ponto de vista, a autora não ter escrito uma única frase que fosse apelativa e me prendesse a atenção. Hoje apetece-me dar exemplo do contrário. Escolhi um autor maior da literatura em Língua Portuguesa, em texto muito pequeno. O livrinho pode ler-se num piscar de olhos, mas quem gosta de desbravar o significado das palavras e dos gestos, de se deleitar a visualizar as imagens e de se surpreender com elas, enfim, quem aprecia a escrita com o mesmo prazer com que degusta o melhor dos manjares, certamente lerá, com todo o vagar, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado. Transcrevo, aqui, algumas passagens.

Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso, funcionária relapsa. Demora-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir até não ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará antes das onze e olhe lá. (...) Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma funcionária subalterna, de rígidos horários. Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com medo do escuro. A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.

Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. (...) Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? (...)

Por mais cedo fosse, mais frio fizesse, estivesse onde estivesse, (...) pela madrugada arribava ele em casa do Sol para cooperar com a Manhãzinha. Sopra que sopra com a imensa bocarrona de ar. Apenas porém a brasa crescia em labareda, o Vento deixava por conta da Manhã atiçar a chama com o abanador das brisas e começava a recordar aventuras (...).
Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais (...). Pouco dada ao trabalho, a manhã deixa-se ficar embevecida a escutar (...) causando irremediável transtorno aos relógios, obrigados a diminuir o ritmo dos pêndulos e ponteiros, na dependência da chegada da Manhã para marcar as cinco horas em ponto. Muitos relógios enlouqueceram, não voltaram jamais a marcar a hora certa (...). (pp. 15-18)


Também os galos deixaram de saber às quantas andavam e, por isso, num dia em que o atraso foi ainda maior, eles e os relógios queixaram-se ao Tempo, "senhor de todos eles". O Tempo, para quebrar a monotonia da eternidade, aceita não castigar a Manhã se ela lhe contar a história que a fez atrasar-se tanto. E a Manhã conta-lhe a história que ouviu do Vento sobre os amores do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá, história que não pode ter desenlace feliz, pois não se está mesmo a ver que os gatos e as andorinhas foram sempre inimigos figadais?

É no Outono que os protagonistas percebem que o seu amor não pode durar. Jorge Amado dá-nos conta da mudança com as seguintas palavras:


No outro dia o Outono chegou, derrubando as folhas das árvores. O Vento sentia frio, e, para esquentar-se, corria zunindo pelo parque. O Outono trazia consigo uma cauda de nuvens e com elas pintou o céu de cores cinzentas.
(p. 85)


A Andorinha Sinhá casa-se com o rouxinol.


No momento em que o cortejo nupcial, numa revoada, saía da capela, a Andorinha viu o Gato no seu canto. Não sei que jeito ela deu no voar que conseguiu derrubar sobre ele uma pétala de rosa, das rosas vermelhas do seu buquê de noiva. O Gato a colocou sobre o peito, parecia uma gota de sangue. (...) Já não havia futuro com que alimentar o seu sonho de amor impossível. Noite sem estrelas, a da festa de casamento da Andorinha Sinhá. Apenas uma pétala vermelha sobre o coração, uma gota de sangue.


A música doía-lhe no coração. Canção nupcial para os noivos; para o Gato Malhado, canto funerário. Tomou da pétala de rosa: olhou mais uma vez o parque coberto pelo Inverno, saiu andando devagar. Conhece um lugar longínquo, onde vive apenas a Cobra Cascavel, que ninguém aceita nos parques nem nas plantações. O Gato tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo. (pp. 107-109)

Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Publicações D. Quixote, 2002

8 comentários:

Anónimo disse...

Amiga MPS
Que podemos nós dizer, de quem escreve assim, desta maneira, com esta subtileza e imaginação, que nos dá a noção de estarmos a ver os actos descritos.
Que podemos nós dizer, senão que estamos mais enriquecidos culturalmente!
Este sim, vou tentar ler!
Abraço
José Manangão

Porca da Vila disse...

Uma delícia, que confesso nunca ter lido, apesar de conhecer o título. Deixou-me com água na boca!...

Xi Grande

MPS disse...

Caro José Manangão

É uma escrita que, da primeira à última palavra, nos entra no coração.

Um abraço

MPS disse...

Caríssima PV

Vale, mesmo, a pena, se gostamos de nos deixar enlevar.

Um abraço

Chanesco disse...

Nada tenho contra este livrinho que é um hino à escrita, nem contra o seu autor que possui uma obra incontornável.

O que me parece é que o Min. da Educação, ao adoptar esta obra para ser estudada nas escolas (não haveria um livro/autor português da mesma igualha) está ser submisso ao Gov. Brasileiro (na sequência do acordo ortográfico?).
Eu não sei dizer se o acordo nos é ou não favorável, mas parece-me que em termos de língua portuguesa Portugal está a perder hegemonia em relação ao Brasil.
Como dizem alguns estrangeiros quando se lhes pergunta se falam português, a resposta é: não, falo brasileiro.

Um abraço

MPS disse...

Caro Chanesco

Concordamos na apreciação de Jorge Amado e de sua obra!

Não lhe sei dizer se o ME adoptou, ou não, este livro. Creio, embora, que o ME não adopta nada (nem sequer os manuais): dá liberdade às escolas. Também não lhe sei dizer se esta obra integra aquelas que são aconselhadas no "Plano Nacional de Leitura", mas se sim, discordo de si, porque o importante é pôr a garotada a ler. Ler muito e ler o que é bom.

Aprender as variantes da Língua Portuguesa, creio, é um dever. O Chanesco, tão bem como eu, saberá dar importância a isso. Na Beira, como em Trás-os-Montes e em todas as regiões do País falam-se variantes da mesma Língua e não são só variantes vocabulares; é a própria construção frásica que varia muito! O Português do Brasil é mais uma (ou melhor: são muitas mais) variante da nossa querida fala.

Aquilo que diz sobre os brasileiros pode aplicar-se aos americanos, pois alguns também não sabem que falam inglês. No entanto, é a versão americana da Língua Inglesa aquela que é mais difundida. Não sei se os ingleses se sentem amesquinhados com isso. Eu não me sinto assim em relação ao Brasil que, basta dizer-se, só S. Paulo tem o triplo dos habitantes de Portugal inteiro. O Brasil tem um mercado editorial notável e uma presença assombrosa na internet. Que me espanta, então, que seja a versão brasileira aquela que é dominante no mundo?

Quanto ao acordo ortográfico discordo em absoluto dele. Nem que nos favorecesse economicamente o defenderia. Prezo muito a etimologia e dou grande importância à acentuação e à utilização de sinais gráficos auxiliares da leitura para que possa concordar com o dito acordo. Creio que é prejudicial para o nosso lado e também para o Brasil que, muito bem, soube preservar o trema, mas o vai perder agora. No Brasil também se vai começar a ouvir dizer "sequestro" como quem diz "quero".

Um abraço( e a urze não entra em conflito com o marganiço)

Anónimo disse...

Infelizmente não tenho, presentemente, hábitos de ler romances, porquanto por defeito leio tão-somente livros de História, heráldica, genealogia, biografias, etnologia e etnografia.
Mas foi nos romances que fiz a minha iniciação à leitura há muitas décadas, menino e moço, cheio de carranhas, a correr atrás das carrinhas da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian no meu sertão minhoto.
E quatro romancistas marcaram-me de sobremaneira: Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro e Jorge Amado (este mais tardiamente), escritor cuja obra devorei quando vivi no Brasil entre 1970 e 1974.
Um autor intemporal e imortal, que não dispensava a doçaria minhota: todos os natais a Pastelaria Natário, de Viana do Castelo, enviava pão-de-ló vianense para o Jorge Amado, no Brasil. Está na hora, quiçá, de reler alguns volumes de Jorge Amado...

MPS disse...

Caro Jofre

Essa não sabia eu, a de o Jorge Amado não dispensar a doçaria minhota! Tão exigente do paladar como da palavra, pelos vistos. Consigo estou sempre a aprender!

Também eu corri muito atrás dessas abençoadas carrinhas Citrën, baú de leituras que me parecia inesgotável.

Actualmente, os meus gostos de leitura continuam amplos, quiçá, dispersos. Pura e simplesmente, gosto de ser seduzida pelas palavras e, felizmente, há muita gente que o sabe fazer com mestria. Os mestres que o seduziram a si também me seduziram a mim, mas acrescento-lhess muitos outros.

Bem-haja pela partilha.

Um abraço