Ora amarelos, ora verdes, dobrados em partes, deixavam ver no exterior algumas linhas traçadas a negro. Eram os aerogramas.
Chegavam ao ritmo do possível; aflita a espera se havia demora. Lá dentro, algumas palavras calculadamente riscadas no intuito de impedir a leitura do engano ou da mensagem. E nós sem sabermos se fora o autor ou alguém sem nome nem rosto nem corpo, mas tão presente, tão abafadoramente presente, como o medo da guerra e o temor pelos nossos.
Os aerogramas eram lidos com a avidez de quem sacia longa sede. Primeiro baixo, movendo os lábios. Era assim que a mãe bebia cada palavra dos filhos e os outros presentes ficavam suspensos dos rictos desses lábios e das pausas que faziam. No fim, a mãe dizia para uma das filhas: "lê lá tu, alto." E no fim: "Lê outra vez." E em cada leitura pedia que se repetissem passagens, como se quisesse gravar aquelas palavras para ser capaz de as reproduzir, para si própria, imaginando a voz dos filhos. Só o pai assumia comportamento diferente: sentado, cabeça descaída, olhar fixo no chão. As mãos cruzava-as sobre os joelhos, para que ninguém visse quando cravava as unhas na carne, a esconjurar a dor.
Nos aerogramas falava-se da saudade e do carinho, perguntava-se pela família, sendo eloquentes pelo que silenciavam e nós nem nos atrevíamos a supor. Calava-se o medo e iludia-se a morte.
Um dia, de madrugada, duas canções: primeira senha, segunda senha. Começara o fim do medo. Não tardaria, aqueles que escreviam os aerogramas diriam, ao vivo, as misérias que viveram, em catadupa como se tivessem medo de esquecer e quisessem fazer de nós testemunhas.
10 comentários:
Li alguns desses aerogramas e lamento não os ter guardado para os reproduzir aos mais novos com quem, diariamente, contacto.Relatos de dor, de amor, de tristeza, de medo, tão distantes mas tão próximos.
Bem-hajas, amiga, por no-los teres recordado.
Abril "auroreou" em Liberdade. Assim se mantenha.
Beijinhos
Viva, Sophia!
São memórias tremendas, ainda muito sofridas apesar da passagem dos anos. Pensei que já me custasse menos escrever sobre elas, mas não foi bem assim. No entanto, tal como diz, importa passar o testemunho.
Um abraço
Amiga MPS
Os aerogramas de que fala e eu me recordo perfeitamente, eram a fase posterior áquelas despedidas, no cais da Rocha de Conde de Óbidos, que eram de partir o coração e ainda hoje me arrepio só de pensar.
Sobre a semente do 25 de Abril, ela foi lançada no dia 6 de Março se 1921, e começou a germinar,após o 1º congresso do PCP em 10 e 11 de Novembro de 1923, quando foram feitos os primeiros presos políticos, a partir daí, foi a longa história de sofrimento, de tantas mulheres e homens não necessáriamente comunistas, mas verdadeiros democratas, que pagaram com a vida, a sementeira que floriu em 25 de Abril de 1974.
A minha respeitosa homenagem para todos!
Gostei de ler e ver a sementeira, nesta sua postagem!
Em http://poetas-populares.blogs.
sapo.pt
pode ver momentos de inspiração, de uma grande poetisa!
Abraço
Manangão
Caro José
Os transmontanos nem sequer tinham direito à Rocha Conde d'Óbidos (como todos os que não fossem de Lisboa ou perto). Do três irmãos que me mandaram para a guerra, só pude despedir-me do mais novo porque, nessa altura, já estava em Lisboa. Mas fui ao aeroporto, memória que apetece sacudir.
Tem razão quando realça a importância do PCP na luta contra a ditadura(embora em 1921 ainda vivêssemos na I República): o PCP foi, durante todo o Estado Novo, a única força política verdadeiramente organizada e, por isso, capaz de levar por diante uma série de acções que fizeram sobressaltar a ditadura. A luta contra o Estado Novo pode fazer-se, quase só, estudando a História do PCP.
Um abraço
Vá lá saber-se porquê, os aerogramas trouxeram-me à memória outra 'invenção' bizarra daqueles tempos. As 'madrinhas de guerra'!
Um Xi Grande
Não recebi, nem nunca “botei” qualquer aerograma, pois sou – fui – refractário das Forças Armadas e andei em bolandas por terras do Brasil, regressando à minha adorada Santa Terrinha somente após o 25 de Abril.
Aerograma que, se não me falha a memória – já não é de ferro, como era, tem um boicelo de ferrugem a empenar... –, está profundamente ligado ao Movimento Nacional Feminino, criado em tempos da Outra Senhora no rescaldo do “Caso Santa Liberdade” e da eclosão da Guerra Colonial, em Janeiro – Março de 1961.
Entre as suas funções e alforrias dadas pelo Estado português e a Administração Geral do Correios, estavam o uso corrente de aerogramas isentos de taxa por aquele organismo, postos ao serviço dos militares.
O Movimento Nacional Feminino foi fundado pela D. Cecília de Carvalho Supico Pinto – que descendia das famílias Casal Ribeiro e Van Zeller, pois Supico Pinto eram apelidos do marido –, e também pela professora dr.ª D. Madalena da Câmara Fialho (oriunda de Cabo Verde), e pela enfermeira D. Antónia Torres Pereira (fundadora da Associação Católica de Enfermeiros), que levaram tudo aquilo muito a peito. Deram corpo às famosas madrinhas de guerra, ao Natal do Soldado e umas “caridadezinhas”, uma missão divina.
Caríssima PV
As saudades que tinha de si! Receba um abraço já no início, para no fim lhe poder dar outro.
Associou muito bem, como, se fizer favor, pode ler no comentário que o Jofre escreveu. Eu é que nem pensei no assunto, enroladas que estavam as entranhas ao recordar tempos tão maus.
Um abraço.
Meu caro Jofre
O meu amigo é um bem precioso pelo tanto que sabe acrescentar de informação. Por isso, deixe que lhe diga que, se a sua memória está a esboucelar-se, então a minha já nasceu escaqueirada!
A opção que fez na juventude foi contrária à dos meus irmãos (o mais velho ainda tentou, mas custou-lhe caro). Pessoalmente, não sou capaz de me imaginar a ter de escolher entre uma coisa e outra. A única certeza que tenho é que a guerra é perversidade, maldade sem tamanho, fonte inesgotável de sofriemnto.
Curiosamente, há pouco tempo travou-se uma pequena discussão entre Pacheco Pereira (http://abrupto.blogspot.com/) e Vítor Dias (http://tempodascerejas.blogspot.com/)acerca dos conceitos de coragem e patriotismo associados às opções opostas, de ir à guerra ou de a rejeitar, saindo do País.
Um abraço e bem-haja pelo contributo que aqui deu.
MPS, minha amiga, atrevo-me a vir aqui hoje por dois ous três motivos.
Agradecer-lhe as suas palavras no post de hoje, principalmente.Deu-me para aquilo que levei um dia inteiro para fazer coisa tão simples. Mas em casa o silêncio era ensurdecedor e o trabalho ajudou. Depois vinha dizer-lhe que de aerogramas tenho quilos, atados aos molhos. Que na altura se não fosse assim, de graça, como iria ser?
E vou-me meter com a PV sobre as marinhas de guerra. Haveria madrinhas e madrinhas, mas ver os soldados virem do mato e terem um companhia "fraterna" para falar em outros temas que não na guerra, irem a um cinema, terem uma casa de família onde normalmente eram recebidas nesses dias de folga, e pensar que nunca se sabia se havia um próximo encontro...
Pronto, amiga, lá vou eu ocupando espaço...
Um abraço muito, muito amigo e muito grato.
Cara Meg
Seja bem-vinda e que todos os atrevimentos sejam como os seus! Deixe-se disso, por favor!
Obrigada pela achega: é mais um ponto de vista a somar aos outros que aqui estão, mostrando que o mundo não é a preto e branco. Por um lado, é verdade que havia muita caridade fingida no Movimento Nacional Feminino, associada a uma indesculpável apologia da guerra. Mas, por outro lado, é aquilo que a Meg diz: as madrinhas de guerra funcionavam, em muitos casos, como escape, uma forma de evasão do real - atitude doentia em situação normal, mas necessária quando é a realidade que está doente.
Um abraço e obrigada pela visita.
P.S. As coisas mais simples são, normalmente, as de mais difícil concretização
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