“Banhamo-nos e não nos banhamos sempre no mesmo rio” é um dos aforismos de Heraclito que mais me fez pensar e gosto de o aplicar à pessoa humana e à sua condição. Quantos milhares de células perdemos por dia e quantos milhares cria de novo o nosso corpo? Todo o corpo vivo sofre revoluções diárias e, no entanto, a essência permanece de tal modo que somos capazes, a cada instante, de dizer: sou eu; és tu!
A primeira identificação que se faz de alguém é a identificação biológica e mesmo que uma pessoa que conhecemos comece a ter comportamentos diferentes do habitual continuamos a chamar-lhe o mesmo nome, porque, de facto, não o sendo, é da mesma pessoa que se trata! Qual é, então, o seu verdadeiro eu? Aquele que conhecemos primeiro ou aquele que observámos depois? O que é que faz com que digamos que alguém é um ser humano? O seu comportamento? A sua biologia?
Responder a estas perguntas é encontrar a resposta para outras duas: o que é um ser humano? Quando começa a vida humana? Alguém, em completa honestidade, pode responder?
Sei que um óvulo não é vida humana e que um espermatozóide também não. Ambos são células humanas e nada mais. Mas um ovo, que é um óvulo fecundado por um espermatozóide, é muito mais do que a união de duas células, uma masculina e outra feminina. Por isso se chama ovo e a sua análise química traduz a existência de um novo indivíduo. Humano? Não sei responder, mas interrogo-me e inquieto-me porque não sei definir o que é a vida humana. A criança que fomos é a mesma pessoa que somos? Sim e não, de novo! Sei que se a criança que fomos tivesse morrido, as pessoas que somos não poderiam existir porque só daquele conjunto de células poderia resultar o conjunto de células que hoje somos. Do mesmo modo, a criança que fomos só pôde acontecer porque um espermatozóide do nosso pai fecundou o óvulo da nossa mãe. A única certeza que se pode extrair daqui é que a vida é um processo contínuo e cumulativo.
Há quem argumente que só se pode falar de vida humana depois de dez semanas de gestação, altura em que começa a formar-se o sistema nervoso central. Confesso que esse argumento me faz reflectir mais do que qualquer outro. Mas… Quem acompanhou pessoas que sofrem de esclerose ou da tremenda doença de Alzheimer dá-se conta de como vão perdendo capacidades porque o seu sistema nervoso central vai morrendo até que a pessoa chega ao ponto de ser incapaz de identificar quem mais ama e vai deixando, mesmo, de saber quem é – até o próprio nome! Aquele ser deixou de ser pessoa? Há cientistas que admitem que sim e até defendem que devem ser utilizadas em experiências científicas. Não perfilho tal opinião. O sistema nervoso pode fazer de nós pessoas brilhantes ou limitadas, pessoas boas ou perversas mas, sozinho, não chega para definir alguém enquanto ser humano. Poderíamos dizer que, neste caso, há um passado a ter em conta…
O feto de dez semanas poderá não ter sistema nervoso, mas há um futuro que deve ser levado em conta! Tudo o resto resvala perante este modo de ver e só quem não considera a vida como um direito absoluto e inviolável pode defender a liberdade de abortar!
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2 comentários:
A questão do aborto, disfarçado com o eufemismo puritano de interrupção voluntária da gravidez, é tema complexo, e, infelizmente fracturante, em Portugal. Cada questão leva sempre a nova e mais filosofante questão, debate intenso, e nesta campanha presente, um ruído veemente e pouco esclarecedor. Como sobre a vida, e onde começa a vida, como tão bem expõem.
Entendo que o problema é político, humano e social, mas certamente pertenceria ao poder político legislar sobre a questão. Assim este referendo será somente uma manobra de diversão dum governo subtil, espaço de manobra para passar mais uns meses incólumes. O País e o poviléu andam largamente distraídos, e a governança continua.
O aborto sempre existiu e em todas as classes sociais por motivos díspares. Como tal, sempre existirá, legal ou ilegalmente, no futuro.
A mim chocam-me duas importantes premissas. Os abortos feitos em vãos de escada, em “clínicas” (?) e salas sem qualquer intervenção e cuidados médicos e de enfermagem, mesmo quando estes são feitos clandestinamente por estes profissionais. O outro aspecto aviltante é o número de jovens, adolescentes e mulheres que morrem em consequência de hemorragias e septicemia, evitáveis e tratáveis em unidades hospitalares.
A mulher – e todo o ser humano – tem direito à dignidade, que certamente não encontram nessa degradante situação.
Mesmo que o não vença, como talvez suceda, haverá sempre aborto, e indefinidamente mulheres e adolescentes a morrer inutilmente, devido à clandestinidade.
Depois, uma lei que permita humanizar esta situação, não obriga ninguém a abortar.
Certamente que sou contra o uso desenfreado ao aborto como regra anticonceptiva, o abortar por abortar. O que desejo, e todos nós, é que não morra mais ninguém, mortes que se podem perfeitamente evitar.
Hoje, esta campanha é só de lugares-comuns, chantagem, radicalização desnecessária e contraditória.
Eu, que com a idade me tornei céptico sobre a condição humana, direi um barbarismo idiota: tão desmotivado que estou da vida política, não irei votar. Ganhe quem ganhar, embora pessoalmente, como deixei subentendido, penso que a vitória do sim, responde em parte aos meus anseios, na medida em que permite às mulheres que recorram à interrupção da gravidez, o façam em segurança e sem qualquer estigma.
O seu lúcido texto revela uma eminente preocupação humanista, que foi do meu inteiro agrado.
Jofre
Estou-lhe imensamente grata pelas suas palavras.
Partilho, como deve calcular, da sua preocupação para com o sofrimento humano. Nenhuma forma de sofrimento pode ser indiferente às pessoas de bem. O que me distancia é a solução encontrada, porque me parece uma não solução! Por mais que me esforce não sou capaz de entender como é que o sacrifício de um ser pode ser a solução para problemas económicos ou sociais de alguém, sobretudo num tempo em que os métodos anticoncepcionais estão à disposição de um estender de mãos no supermercado! De quem me não consigo esquecer é do feto, o único a quem não são dadas alternativas nem hipóteses de defesa. No meu entender, a mulher é, quase sempre, a menos responsável no meio disto tudo.
Quanto ao referendo estamos inteiramente de acordo: há assuntos que se não devem plebescitar; antes, devem ser tratados serenamente por quem de direito: o Parlamento. Não posso falar acerca da campanha - a que não assisto - mas dou-lhe razão no que à intenção diz respeito: é uma forma de desviar a atenção dos problemas sérios e profundos do país.
Compreendo também o seu cepticismo porque tudo isto não passa da versão contemporânea do "pão e circo", mas agora dão-nos o circo enquanto nos vão tirando o pão da boca.
Um abraço
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