Vi-o ontem, convenientemente precedido de uma entrevista à sua filha, o documentário da RTP sobre Marcello Caetano.
Quem não soubesse o que eram os serviços noticiosos da ditadura, confundidos com propaganda, aprendeu ali como, em tempo de democracia, se mimetizam os mesmos. Um documentário tem, por força, que documentar, mas aquilo não documentou, por isso não foi um documentário; aquilo serviu-se do material do Estado Novo e reproduziu-o sem mais! Aliás, a única voz ouvida foi a do próprio Marcello Caetano (mais lá para o fim ouvir-se-ia a voz de Spínola lendo o comunicado da Junta de Salvação Nacional). Assim, ficámos todos a saber o que era a oposição no entendimento do ditador: um bando de traidores que andam lá por fora a difamar a Pátria junto dos governos estrangeiros e que se reuniram "numa cidade de província" sabe-se lá porquê (a isto foi resumido o Congresso de Aveiro). Vimos enormes manifestações de apoio popular sem que fosse dita uma palavra acerca do modo como eram organizadas essas "manifestações espontâneas", nomeadamente aquela com que o ditador foi recebido no regresso da sua visita ao Reino Unido para comemorar o centenário da aliança luso-inglesa. Nessa visita fora recebido em apupos por manifestantes londrinos que, pela sua imprensa livre, souberam do massacre de Wiriamu (nome que o locutor de serviço da democracia não sabe pronunciar!) e a recepção no regresso à Pátria quis-se de desagravo. Nas palavras que dirigiu à multidão junto ao aeroporto, Caetano referiu-se à maldade da oposição no estrangeiro, afirmando que "até tinham convencido um dos maiores partidos ingleses a oporem-se à sua visita"; a filha, na entrevista, afirmara "nós alcançámos os nossos objectivos e eles (a oposição) alcançaram os deles". Eloquente!
Pelas "Conversas em Família" ficámos a saber como era perniciosa a acção da oposição no meio estudantil e sindical. Quem não sabia, aprendeu que os movimentos de libertação das colónias eram terroristas, etc.
O documentário provocou-me náuseas. No final, aqueles que tivessem menos de 50 anos e soubessem pouco de História tiveram razão em questionar-se acerca das causas do 25 de Abril porque, afinal, Marcello Caetano era um anjo do céu cujas asas se chamavam PIDE e censura, e o colonialismo era a sua dádiva de civilização ao mundo!
Haja decoro! A palavra fascismo primou pela ausência. Apenas a expressão de uma senhora do povo escapou a esta lavagem da História com lixívia: "este Salazar é mais simpático do que o outro"! Os autores do programa da RTP acharam piada à frase mas não a compreenderam, de outro modo tê-la-iam ignorado do mesmo modo que ignoraram tudo o que não fosse a propaganda do ditador.
Que miserável regresso de férias!
Nota: não sendo sobre o programa, vale a pena ler este artigo de Nuno Brederode Santos no DN de domingo dia 20 de Agosto
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
No meio de tantas coisas para pôr em dia logo após o 1º período das férias, só hoje, dia 31, me vou referir ao que penso sobre o tema do artigo.
Pelo que relatas, pois não vi o programa em causa, o tratamento dado ao tema mais me parece um serviço encomendado.
No entanto, a "nódoa" em tal serviço foi o comentário da senhora
que acha "este salazar mais simpático".
Não fora a falta do lápis azul e a encomenda teria sido entregue e servida de forma exemplar, a recordar os velhos tempos da ANI.
Porque a propaganda veio a nossas casas através da televisão pública, deveria de imediato ter sido repudiada publicamente pelos actuais chefes do regime democrático.
Que eu saiba, não foi. O que é grave e preocupante, mas está longe de me deixar surpreendido.
Da cortina estendida salvou-se, vá lá, a "nódoa".
Li, de seguida, o artigo de N.Brederode.
Simples e objectivo, conta a verdade sobre a figura de Marcelo.
Mas quantos menores de 45 anos e pouco conhecedores dos factos históricos terão lido o artigo?
A Imprensa livre já se vai encontrando, apenas, fora dos grandes palcos.
É que dois minutos de RTP são mais eficazes do que vinte artigos de opinião num jornal, mesmo no DN!
Por fim, Brederode Santos faz uma homenagem a um amigo e isso, não se comenta, regista-se!
Estávamos no Verão, Jorge, estávamos no Verão e as pessoas estão no reino dos algarves a saborear a alienação. Esta tonta aqui é que tem a mania que gosta de História e nem nas férias se esquece disso.
Enviar um comentário