24/09/2008

Camilo


Camilo Castelo Branco tem um ódio de estimação: o Marquês de Pombal. Por alturas do centenário da sua morte, em que se organizaram grandes comemorações com particular empenho dos republicanos, Camilo, no melhor do seu estilo eloquente e verrinoso, traçou-lhe o retrato. Transcrevo algumas passagens do final da obra.



(Capa da 4.ª edição, de 1943, revista pelo Dr. Augusto César Pires de Lima)

O rei estava a expirar, quando o Marquês foi demitido de um modo original. Saiu-lhe o cardeal da Cunha ao salão da entrada, e disse-lhe: V. Ex.ª pode retirar-se do paço, onde já não tem que fazer. A intimação brutal partia de um homem que o Marquês elevara depois de o ter humilhado a vilíssimas condescendências. O cardeal vingava-se. – Ponha-se na rua! E depois o proscrito assanhado vingava-se do cardeal: - que ele votara pela morte dos meninos da Palhavã, que ficara com a baixela da casa de Aveiro sem pagar. «Ah! Ele é isso? O ladrão das pratas disse que fui eu que as roubei? Então deixa estar que eu já te arranjo, patife!» Supremos biltres, os dois ministros! (P. 243)

(…)

O Marquês deixara o povo na sua velha miséria bestial, e o fidalgo na sua arrogante imbecilidade – mas povo e nobreza sem vislumbres de dignidade. A opressão, um longo sofrimento são os maiores aviltadores da alma. O povo beijava a fímbria do hábito andrajoso de Fr. Miguel da Anunciação, que saía trôpego e cego do cárcere de Pedroiços. Os Távoras aceitavam comandâncias de tropas, e o marquês de Alorna esquivou-se a aparecer na côrte sem que a sua augusta senhora e rainha o ilibasse da mancha de conspirar contra seu augusto senhor e rei D. José. O Marquês não tinha que temer-se da ira do povo nem da honra da nobreza. O despotismo embrutecera-os todos em vinte e sete anos de terror, de tristeza, de uma desconsolação profunda, que se revela na paralisação da jovialidade popular daquele longo período. Durante o reinado de D. José I não houve uma festa nacional (…). A inauguração da estátua equestre foi ainda um violento assalto aos haveres do comércio, quebrantado pelas Companhias, e à classe dos operários, espoliados pela rapacidade do correeiro (1), uma das trombas absorventes do Marquês. (p 251-252)

(…)

A História, para vingar a Justiça, levantou um patíbulo a esse infame imortal, e a democracia engrinaldou-lhe o cadafalso em altar, volvido um século. Há muito que recear da doblez de tais sacerdotes. A Liberdade, essa então não tem nada que esperar dêstes seus filhos bastardos. Ao passar pelo monumento ao Marquês, que vai erigir-se, a Justiça há-de procurar nas praças de Lisboa a estátua do conde de Basto; e, não a encontrando, perguntará se as fôrcas da Cordoaria e de Belém eram mais necessárias que as fôrcas do Cais-do-Tôjo e da Praça-Nova ao progresso do género humano. (p. 264)

S. Miguel de Seide, 31 de Maio de 1882
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(1) O juiz do povo Manuel José Gonçalves

11 comentários:

Isamar disse...

O Marquês de Pombal é considerado, segundo alguns historiadores, um grande estadista. De facto, atendendo às reformas que levou a cabo, quer a nível do ensino, quer do comércio, quer da agricultura, quer da indústria e outras, assim pode ser entendido. No entanto, também não alimento simpatia pela sua figura embora não possa afirmar que lhe tenha ódio.

Um abraço

Anónimo disse...

Amiga MPS
A matéria que estudei sobre o Marquês de o Pombal, foi do tempo escolar, sendo eu natural do concelho de Oeiras onde ele até foi Conde. Desde miúdo que, formei a minha opinião pensando que Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal e mais tarde Conde de Oeiras, tinha algo de ROMANO.
Conta-se até uma estória engraçada, entre ele e a Rainha D. MariaI, que o desterrou para terras de Pombal, e um belo dia não recordo a propósito de quê, ele apareceu em Lisboa em cima de uma galéria cheia de terra e puxadapor dois cavalos, a rainha ficou sabedora e madou chamá-lo ao Passo, chamando-lhe á atençao pelo facto de o ter desterrado para terras de Pombal, ao qual ele retorquiu,saiba Vossa Magestada que estou em Liboa mas, pizando terras de Pombal.
Stora, disfarçei bem!
Ái que lá vem chumbo...
Abraço amiga

Anónimo disse...

Será por influência do meu sobre estimado Camilo que torço e retorço as ventas ao Sebastião José? Lembro-me menino e moço, com os cueiros agarrados aos fundilhos – passe a liberdade, pois teria 12/14 anos – quando li pela primeira vez o “Perfil do Marquês de Pombal” e a cavada influência – definitiva – que marcou no meu espírito de rapaz aldeão minhoto. Livro, diga-se, requisitado nas saudosas carrinhas da Fundação Calouste Gulbenkian.

O “Proémio” foi para mim um êxtase, com aquela oração de abertura – que cito de memória: «ESTE LIVRO NÃO VAI AGRADAR A NINGUÉM»! A impressão que aquilo me fez, e afinal, o livro encantou em pleno aquele perdido rústico dos montes do Minho, na distante década de 1960.

E o desfilar das personagens, a marquesa velha, a marquesa nova, os Távoras, o Rei, o José Policarpo de Azevedo, o desembargador José de Mascarenhas Pacheco Pereira de Melo («o monstro da crueldade»). Seria por causa única deste livro que passei a saborear a História ou a gostar de Camilo, ou as duas coisas em simultâneo? Tanto faz..., afinal tive a mais feliz das infâncias.

Bem-haja por este artigo, uma romagem de saudade no meu passado. Afinal estaremos velhos e decrépitos quando olhámos saudosos para o nosso passado? Bem-haja!

MPS disse...

Cara Sophiamar

Há um mistério que não consigo resolver: como é que os republicanos têm tanto apreço por um homem que, em Portugal, é o símbolo maior da tirania?

Que fez reformas é inquestionável. Resta saber se fez as necessárias ao progresso do País ou, apenas, as que lhe traziam mais poder. Ou seja: é o Marquês um amante do progresso - um iluminista, como o pintam - um alguém que nunca vê saciada a sua fome de poder e riqueza pessoal?

Um abraço

MPS disse...

Meu caro Manangão

Passou com distinção! Engraçada essa sua associação do Marquês a uma certa ideia do poder romano - próximo de Nero, talvez!

Um abraço

MPS disse...

Meu caro Jofre

Velho, decrépito e infeliz é quem não tem passado para o qual olhar com saudades!

Li o livro de Camilo com bastantes mais anos do que o Jofre, buscando razões que justificassem a minha desconfiança em relação à figura. Tive-as em abundância, embora discorde de Camilo em alguns passos. Não obtive resposta para a perplexidade de ver republicanos e democratas, como lhes chama Camilo, a endeusarem Pombal. Sempre que pergunto a algum: porque abominam Salazar e aplaudem Pombal? a resposta é a mesma, que me não serve - Pombal era um iluminista, Salazar um obscurantista. Eu, sem a eloquência de Camilo, continuo a perguntar-me porque é que o cárcere de Pedrouços "era mais necessário ao progresso do género humano" do que o de Caxias.

Um abraço

Isamar disse...

Cara Amiga

O Marquês de Pombal trouxe da Áustria a forma de governo que implantou em Portugal,o despotismo iluminado ou esclarecido segundo o qual o déspota, esclarecido pela "razão", governava sem erros. O Marquês, ministro de um rei cuja aptidão para o exercício da governação é muito discutível,fez uma governação próxima da tirania. Afinal era o absolutismo na sua fase mais severa. Sabemos como dizimou parte da nobreza, afastou os Jesuítas de Portugal não tenho contudo melhorado as condições de vida do povo que vivia num estado de total exploração.

Um abraço

MPS disse...

Cara amiga

Pombal bem podia ter trazido outras coisas de Inglaterra onde esteve muitos anos. Pelos vistos, esses anos nem sequer lhe chegaram para aprender a língua. Será que cada um só aprende aquilo que a sua natureza lhe permite?

Os nossos estrangeirados mantiveram-se pelo estrangeiro, uns reduzidos à penúria, outros queimados por cá em efígie pelo "reformador da Inquisição"! Não vislumbro o que este homem tenha de iluminista. De déspota, porém, nada lhe falta.

Um abraço

Meg disse...

Cara MPS,

Depois do texto, dos comentários e das respectivas respostas, esta, sim, foi mais uma lição de História.
De Camilo gosto do estilo, do desassombro, do inconformismo.
Do Marquês, julgo que ninguém saberá nunca os seus verdadeiros desígnios.
Mas eu sou a ignorância assumida.

Um abraço

MPS disse...

Cara Meg

Não se menospreze, por favor, até porque o único não ignorante é Deus nosso Senhor que, quiçá, preferiria saber menos do que sabe...

Como salta à vista que gosta de ler aconselho-lhe vivamente esta obra de Camilo, embora só a encontre, provavelmente, em bibliotecas ou alfarrabistas.

Um abraço

29 Setembro, 2008 22:33

meus instantes e momentos disse...

muito lindo teu/s blog/s, parabens , foi muito bom conhecer.
Maurizio