20/07/2008

Coisas boas (II)

Costumo ensinar isto aos meus alunos: na democracia existe o primado da lei. Nas ditaduras, a lei é o arbítrio do chefe. A partir de agora, poderei ler-lhes o seguinte excerto de As Benevolentes de Jonathan Littell:


[Thomas] Expusera-me uma vez em termos luminosos o princípio do funcionamento do sistema (devia ter sido em 1939, ou talvez até nos finais de 1938, por ocasião dos conflitos internos que tinham sacudido o movimento depois da kristallnacht): «Que as ordens continuem a ser vagas, é normal, até qualquer coisa de deliberado, e que decorre da própria lógica do Führerprinzip. Compete ao destinatário reconhecer as intenções do dispensador e agir em consequência. Os que insistem querendo ter ordens claras ou medidas legislativas não compreenderam que é a vontade do chefe e não as suas ordens o que conta, e que compete ao receptor das ordens saber decifrar e até antecipar essa vontade. Aquele que sabe agir assim é um excelente nacional-socialista, e nunca lhe hão-de censurar o seu excesso de zelo, embora possa cometer erros (…).» (p.499)

A obra As Benevolentes é um murro no estômago. Merecidamente, conquistou o prémio Goncourt, apesar de ser uma primeira obra. Nenhum aspecto do nazismo, dos mais horrendos aos mais desconcertantes, ficou de fora do escrutínio do autor. Da meticulosidade com que se estuda quem é judeu de sangue ou, simplesmente, adoptou a religião no cadinho de povos que é o Cáucaso; da justificação da perseguição aos judeus (os únicos verdadeiros inimigos porque são os únicos que permanecem racialmente puros e bastaria deixar dois vivos para, cinquenta anos depois, o problema voltar a existir) às dissertações sobre música, arte e literatura (afinal, havia nazis que liam Kafka). Confesso, no entanto, que o mais desconcertante para mim foi ler a deturpação dos princípios essenciais da grande filosofia alemã. Fica, aqui, a dissertação sobre Kant.

Eichmann continuava: «O imperativo [categórico], tal como o compreendo, diz: O princípio da minha vontade individual deve ser tal que possa tornar-se o princípio da Lei moral. Agindo, o homem legisla.» Limpei a boca: «Creio que estou a ver onde quer chegar. Pergunta-se se o nosso trabalho está de acordo com o Imperativo Kantiano.» -«Não é bem isso. Mas um dos meus amigos, que se interessa também ele por este género de questões, afirma que em tempo de guerra, em virtude se você quiser do estado de excepção causado pelo perigo, o Imperativo Kantiano fica suspenso, porque bem entendido, aquilo que desejamos fazer ao inimigo não desejamos que o inimigo no-lo faça, e portanto o que fazemos não pode tornar-se base de uma lei geral. É a opinião dele, claro está. Ora, pelo meu lado, eu sinto que ele não tem razão (…) mas ainda não encontrei um argumento imparável que lhe prove que ele está errado.» - «Apesar de tudo, é bastante simples, penso eu. Todos convimos em que num Estado nacional-socialista o fundamento último da lei positiva é a vontade do Führer. Trata-se do princípio bem conhecido: Führerworte haben Gesetzeskraft. Bem entendido, reconhecemos na prática que o Führer não pode ocupar-se de tudo e que por isso outros devem também agir e legislar em seu nome. Em princípio, esta ideia devia ser alargada a todo o Volk. Foi assim que o Dr. Frank, no seu tratado de direito constitucional, alargou a definição do Führer Prinzip nos seguintes termos: Agi de maneira a que o Führer, se conhecesse a vossa acção, a aprovasse. Não há qualquer contradição entre este princípio e o Imperativo de Kant.» (…) «Todo o direito deve assentar num fundamento. Historicamente, este foi sempre uma ficção ou uma abstracção: Deus, o Rei ou o Povo. O grande avanço que fizemos foi fundar o conceito jurídico de Nação sobre qualquer coisa de concreto e de inalienável; o Volk, cuja vontade colectiva se exprime através do Führer que o representa.» (pp. 515, 516)

O interlocutor de Eichmann é Max Aue, simultaneamente narrador e protagonista deste livro em que só a história pessoal dessa figura é ficção. Obra de leitura imprescindível que impressiona pelo rigor histórico, pela minúcia e pela capacidade de nos conduzir ao mais fundo horror humano. Ao contrário de Dante na descida ao Inferno, aqui é o próprio verdugo quem nos orienta os passos e nos explica tudo.

7 comentários:

Anónimo disse...

Amiga MPS
Em primeiro lugar direi,Que sorte têm os seua alunos, pelo facro de terem uma Stôra que lhes expôe desta forma, a grande difernça, entre as democracias as ditaduras.
não conheço este livro de Jonathan Littell, mas pelo trecho, que aqui postou, dá para entender que, faz a desmontagem do nacional-socialismo, talvez a última grade ditadura a que as democracias puseram termo, apesar de no avançar do tempo outras se estejam a evidênciar, com outras formas mais sufisticadas.
Ao ler-mos estes horrores, ficamos sempre com a sensação,que:-os avisos, as recomendações e as leituras sobre o assunto, nunca serão demais!
Bem haja por esta sua postagem.
Abraço

Anónimo disse...

Minha Estimada MPS:
Andei foragido uma quinzena de dias lá pelo meu Alto Minho, a organizar e apresentar umas coisinhas de folclore e a dar umas palestras sobre tretas etnográficas e históricas. Por opção não tenho por lá Internet, que já tive, mas passava os dias agarrado ao computador, horas inteiras a navegar na Internet, a fazer a mesma vida que fazia por cá. Cortei com tal ciclo altamente vicioso. Assim se justifica a ausência, nas minhas constantes deslocações ao Minho.

Ainda hoje me espanta e choca a barbárie nazi, uma página negra da humanidade, um desespero existencial: como foi possível? O nazismo faz-me sempre recordar um dos poemas épicos de Bertold Brecht (e cito de cabeça, que antigamente era absolutamente correcta e fidedigna), onde de modo humorístico e drástico desfere uma farpa certeira:

«O sol atrever-se ia a nascer
Sem a autorização do Fuhrer?
Se fosse fácil governar
Não precisávamos de espíritos esclarecidos
Como o do Fuhrer».

O poema é maior, claro. Lembro-me de ter folheado o livro em causa numa livraria, um calhamaço descomunal, que não comprei nem li, pois não leio romances, um grave defeito meu – a não ser para reler dos clássicos de Aquilino e Camilo. Por mera opção, somente leio livros de História, Genealogia, Heráldica, biografias, etnografia e linguística, e pouco mais. Boa semana.

MPS disse...

Caro Manangão

É bondade sua, porque a função do professor de História é explicar tudo criteriosamente.

Dizer que o Nazismo é uma ideologia de ódio soa a pouco. Os nazis obrigaram-nos a inventar palavras novas para o mal e, pelo asco, viraram o nosso pensamento do avesso. Por isso, todas as palavras de que dispunhamos para conferir atributos ao pensamento e à prática se revelaram escassas - tudo parce pouco para os qualificar, porque tudo eles superam. O nazismo é a vergonha da Humanidade, a cedência e o apelo ao mal, o crime absoluto. Como pode ter nacido? Como pode ter nascido na pátria do Iluminmismo?

Sabe, meu amigo, parece que os ingleses, para não chocarem a comunidade muçulmana (na qual, muitos negam a existência do holocausto), retiraram o holocausto dos programas escolares. Estas cedências são repugnantes porque negam a História e por aquilo que escreveu no seu comentário: a necessidade de não deixar esquecer.

Um abraço

MPS disse...

Caro Jofre

Confesso que senti a sua ausência devido ao muito que sempre acrescenta. Calculei que estivesse envolvido em alguma actividade culturalmente interessante, como se constata.

Também eu, quando vou para Trás-os-Montes, me livro de todas as dependências urbanas e profissionais. A minha gente é quem vale a pena e é ela que me ensina aquilo que nenhum google consegue encontrar.

Tenho dificuldade em chamar romance a este livro. Aliás, o enredo ficcional é pobre, sendo essa, no meu entender, a grande falha da obra. Ou melhor: o livro podia passar bem sem os enredos pessoais do narrador/ protagonista que, resumidos, não passam de conflito de Édipo por resolver. Se o protagonista não fosse ficcionado, a obra integrar-se-ia muito bem na memorialística.

Confesso que aprendi muito com esta leitura e recomendo-a vivamente, embora respeite escrupulosamente as suas opções que, sei, as faz porque já leu muitíssimo e com muitíssimo proveito.

____
Creio que o Jofre se refere ao poema que, a seguir, transcrevo, pedindo desculpa por ficar mal, mas alguns versos do Brecht são tão longos...

Dificuldade de governar

1

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2

E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?


Um abraço

Meg disse...

Querida amiga,

Aqui é o prazer que me traz para ler posts como este e outros.
Não se trata de retribuir, minha amiga

... Nas ditaduras, a lei é o arbítrio do chefe,

Não bastando a falta de tempo para ler o post, ainda sou obrigada a privar-me de ler os comentários.
Tempo virá, em breve...

Um grande abraço, minha cara Maria.

MPS disse...

Cara Meg

Tenho que lhe pedir mil desculpas: andei aqui com experiências nas caixas de comentários e, sem querer, eliminei os últimos. Quero dizer-lhe que li o seu (posterior a este), que muito agradeço e no qual referia a importância que, para si, tiveram as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian para poder ler sobre o assunto em apreço.

Devo dizer-lhe que me comoveu bastante - o assunto é para pesadelos e as leituras, mesmo quando orientadas, são dificílimas. Mas necessárias.

A grande novidade deste livro de que falo é que nos conta a história do ponto de vista dos nazis. A personagen ficcionada percorreu activamente os lugares mais negros da violência e de tudo nos é dado conta com um realismo que, até a mim que estou "batida" nestas leituras, me fez parar de ler algumas vezes e vomitar.

Mas há coias que, por mais que nos enojem temos de saber, nem que seja para estarmos alerta e não se voltarem a repetir.

Um abraço

Isamar disse...

Cara MPS

Acabei de ler um post de um amigo no blog Chuviscos, linkado no meu blog, sobre o lançamento das bombas nucleares no Japão no período a que o conteúdo deste livro se refere.É um autêntico murro no estômago, como diz, ler o livro que aconselha mas é necessário fazê-lo por muito que nos custe. Há períodos da História que não podemos esquecer. Erros que não podem repetir-se de tão cruéis que foram, tão injustos, tão humilhantes.
Este livro não se lê numa etapa. É preciso parar, pensar, digerir e, então prosseguir. Mas deve ser lido!

Um abraço