Alexandre Herculano chamou-lhes Crónicas Breves de Santa Cruz de Coimbra. Inscrevem-se no registo histórico dos cronicões ou da história analística, mas estes diferem um pouco, porque entram na narrativa, aproximando-se da crónica. Duas são dedicadas a D. Afonso Henriques, a terceira e a quarta, mostrando bem essa espécie do culto que os monges de Santa Cruz criaram em torno da figura do nosso fundador. Aqui transcrevem-se excertos da terceira dessas crónicas breves.
D. SOLEIMA
[O papa, sabendo que D. Afonso Henriques se recusava a soltar a mãe, mandou excomungar a terra pelo bispo de Coimbra. Este lançou a excomunhão e fugiu de madrugada.] E el-rei foi-se logo à sé e chamou todos os cónigos na crasta e disse-lhes que dessem de antre si um bispo. E eles disserom que o nom fariam, que tinham bispo. E el-rei lhes disse que aquele que eles diziam (que) nunca jamais em todos seus dias seria bispo. E ele, vendo que nom queriam fazer o que lhes ele mandava, degredou-os todos de sua terra.
E em saindo el-rei da crasta, viu vir um crérigo que era mui negro de sua color e disse-lhe como havia nome. E o crérigo lhe respondeu que havia nome Martinho. El-rei, porque o viu assi negro, perguntou-lhe por nome de seu padre, e ele lhe disse que havia nome Çoleima. E el-rei lhe perguntou se era bom crérigo ou se sabia bem o ofício da igreja.
E ele lhe disse:
__ Senhor, nom há na Espanha dous que o milhor saibam do que eu.
E el-rei lhe disse entom:
__ Tu serás bispo dom Soleima, e guisa-te logo como me digas missa.
Respondeu o crérigo:
__ Nom sou ainda ordenado de missa como bispo que vo-la possa dizer.
E el-rei disse:
__ Eu te ordeno como me digas missa, senom cortar-teei a cabeça com esta espada.
E o crérigo, com medo, vestiu-se com as vestiduras e fez-lhe o ofício. E este feito foi sabudo em Roma e cuidarom que era hereje. E o Papa mandou a ele um cardeal que lhe mostrasse a fé.
__ Senhor, nom há na Espanha dous que o milhor saibam do que eu.
E el-rei lhe disse entom:
__ Tu serás bispo dom Soleima, e guisa-te logo como me digas missa.
Respondeu o crérigo:
__ Nom sou ainda ordenado de missa como bispo que vo-la possa dizer.
E el-rei disse:
__ Eu te ordeno como me digas missa, senom cortar-teei a cabeça com esta espada.
E o crérigo, com medo, vestiu-se com as vestiduras e fez-lhe o ofício. E este feito foi sabudo em Roma e cuidarom que era hereje. E o Papa mandou a ele um cardeal que lhe mostrasse a fé.
O EMISSÁRIO DO PAPA
O cardeal partiu-se de Roma e veio em Espanha e os reis per onde ele vinha honravam-no muito. E foi dito a el-re Dom Afonso:
__ Senhor, eis aqui vem um cardeal que vem a vós de Roma porque sodes miscrado com o Papa por este bispo que fezeste.
E el-rei disse:
__ Ainda me nom arrependo.
E disserom-lhe:
__ Sabede, senhor, que todos os reis, per u ele vem, provam de lhe beijar a mão.
E el-rei disse:
__ Certo nom será tão honrado cardeal em Roma que a Coimbra viesse que me tendesse a mão pera lha beijar que lha nom cortasse, e desto se nom poderia ele falecer.
[O cardeal soube disto e ficou com medo. O rei recebeu-o na alcáçova e entabulou-se o seguinte diálogo]
__ Cardeal, que viestes aqui fazer de Roma, que de Roma nunca me veio senom mal? E qual riqueza me trazedes de Roma pera estas idas que faço amiúde contra os Mouros? Dom cardeal, se me trazedes, que me dedes; senom ide-vos vossa via.
E o cardeal disse:
__ Senhor, eu sou vindo aqui pera vos mostrar a fé de Jesus Cristo.
E el-rei disse:
__ Certo, cardeal, tão bons livros havemos nós aqui como vós em Roma e tão bem sabemos como o Filho de Deus descendeu do céu (…) [ D. Afonso Henriques continuou a desbobinar as verdades da fé, mostrando que sabia bem o credo de Niceia]
E depois que lhe disse todas estas cousas, mandou-lhe dar pousada e tudo o que lhe era mester.
E o cardeal, logo que foi na pousada, mandou poer cevada e mandou por todos os crérigos da vila e, ao cantar dos galos, excomungou toda a vila, e foi-se de guisa que, quando foi luz, tinha ele já andado duas léguas. (…)
[D. Afonso, mal deu pelo sucedido, montou em seu cavalo e foi no encalço do cardeal. Foi encontrá-lo na Vimieira e quis logo cortar-lhe a cabeça, mas quatro nobres que o acompanhavam, dissuadiram-no:]
__ Senhor, por Deus e por mercê, nom matedes o cardeal, ca dirão em Roma que sodes hereje.
E el-rei disse:
__ Certas, vós lhe dades a cabeça.
E o cardeal quando se viu em tal medo, disse a el-rei:
__ Senhor, nom me matedes, ca eu farei qual preito vós quiserdes.
E el-rei lhe disse:
__ Pois quero que Portugal nom seja excomungado (…). E dês i quero que me mandedes de Roma uma carta que nunca Portugal nem eu sejamos excomungados em todos meus dias, ca eu o ganhei com esta minha espada. E para esto quero que me leixedes aqui este vosso sobrinho em penhor atá que me mandedes a carta. E se atá quatro meses me nom mandades a carta, eu cortarei a cabeça a vosso sobrinho.
E o cardeal outorgou tudo o que el-rei quis e dês i foi-se sua vida. E ante que os quatro meses fossem cumpridos, lhe veio a carta: dês ali em diante fez el-rei em toda sua terra arcebispos e bispos e beneficiados quais ele quis.
E el-rei disse:
__ Certo, cardeal, tão bons livros havemos nós aqui como vós em Roma e tão bem sabemos como o Filho de Deus descendeu do céu (…) [ D. Afonso Henriques continuou a desbobinar as verdades da fé, mostrando que sabia bem o credo de Niceia]
E depois que lhe disse todas estas cousas, mandou-lhe dar pousada e tudo o que lhe era mester.
E o cardeal, logo que foi na pousada, mandou poer cevada e mandou por todos os crérigos da vila e, ao cantar dos galos, excomungou toda a vila, e foi-se de guisa que, quando foi luz, tinha ele já andado duas léguas. (…)
[D. Afonso, mal deu pelo sucedido, montou em seu cavalo e foi no encalço do cardeal. Foi encontrá-lo na Vimieira e quis logo cortar-lhe a cabeça, mas quatro nobres que o acompanhavam, dissuadiram-no:]
__ Senhor, por Deus e por mercê, nom matedes o cardeal, ca dirão em Roma que sodes hereje.
E el-rei disse:
__ Certas, vós lhe dades a cabeça.
E o cardeal quando se viu em tal medo, disse a el-rei:
__ Senhor, nom me matedes, ca eu farei qual preito vós quiserdes.
E el-rei lhe disse:
__ Pois quero que Portugal nom seja excomungado (…). E dês i quero que me mandedes de Roma uma carta que nunca Portugal nem eu sejamos excomungados em todos meus dias, ca eu o ganhei com esta minha espada. E para esto quero que me leixedes aqui este vosso sobrinho em penhor atá que me mandedes a carta. E se atá quatro meses me nom mandades a carta, eu cortarei a cabeça a vosso sobrinho.
E o cardeal outorgou tudo o que el-rei quis e dês i foi-se sua vida. E ante que os quatro meses fossem cumpridos, lhe veio a carta: dês ali em diante fez el-rei em toda sua terra arcebispos e bispos e beneficiados quais ele quis.
E depois que el-rei e o cardeal houverom todo o seu preito firmado, e ao tempo que lhe havia de mandar a carta, como já ouvistes, desvistiu-se el-rei de todas suas vestiduras e disse:
__ Quero-vos mostrar, dom cardeal, como eu sou hereje.
E entom lhe mostrou todas as feridas que houvera em seu corpo, dizendo e assinando quantas e quais feridas houvera em as batalhas, e quais em as combater e quais em as entradas das vilas que tomara aos Mouros.
Citado a partir de: Maria Ema Tarracha Ferreira, Prosa e Poesia Medievais
__ Quero-vos mostrar, dom cardeal, como eu sou hereje.
E entom lhe mostrou todas as feridas que houvera em seu corpo, dizendo e assinando quantas e quais feridas houvera em as batalhas, e quais em as combater e quais em as entradas das vilas que tomara aos Mouros.
Citado a partir de: Maria Ema Tarracha Ferreira, Prosa e Poesia Medievais
(cortes e texto intercalado meus)
19 comentários:
Saúdo o regresso ás lides e previno-te desde já para "a invasão".
Interessantes estes excertos, sem dúvida.
Fiquei mais enriquecido, como era hábito.
Um abra
Claro que o acento tinha de sair para o lado errado... continuo com o vício de não rever os textos...
Encontrei-te no Jorge do Sino da Aldeia e vim fazer-te uma visita. Gostei do que li. Um per�odo interessante da hist�ria por que Portugal passou ap�s a batalha de S.Mamede e que s� ficou sanado em 1179 com o papa Alexandre III e a bula Manifestis Probatum.Ficarei leitora ass�dua.
Beijinhos
Que bom que o 'Urzeira' acordou!... Fico muito contente por este regresso.
As crónicas, uma delícia.
Um Xi Grande da Porca
Jorge:
não é bem um regresso, é uma interrupção do silêncio, que se impunha. Regresso, regresso, vamos lá ver quando e se. Em todo o caso, obrigada pela tua visita e pelas palavras de ânimo.
Um abraço
Sophiamar
Notavelmente sintético e metafórico, o seu nome! Lembrou-me imediatamente a Sophia de Mello Breyner. Fui espreitar à sua casa e vi que me não enganara. Este é, pois, o segundo amor que temos em comum: a obra de D. Sophia. O primeiro saltou logo à vista: quem é capaz de associar as crónicas breves à bula "Manifestis Probatum" tem que saber e amar a História.
Obrigada pela visita e gentis palavras
Cara Porca da Vila
Obrigada, do fundo do coração.
Como já disse ao Jorge, isto não é bem um regresso, mas pode ser que me anime...
Quanto às crónicas são isso mesmo: uma delícia! Hoje, depois de lidas as notícias segundo as quais o governo não receberá o Dalai Lama por causa da China, dei por mim a pensar sobre quem iremos nós construir os mitos modernos.
Um abraço
Voltei ao teu blogue para reler e dizer-te que seria bom que por aqui continuasses. Gostei do que li e a blogosfera precisa de blogues como o teu.
Sou uma apaixonada por poesia, por história, por literatura...
Agradeço o teu comentário no Sophiamar.
Beijinhos
Olá "chedre" ;-)
Um abraço do tamanho do mundo!
Sophiamar
Quanta gentileza! Muito obrigada.
Ó Miguel, que surpresa boa!
Tenho pensado tanto em ti e na Vanda! Só por cobardia, acredita, é que te não escrevi para saber novidades. Entretanto, tenho a certeza de que a nova fase das tuas lides académicas há-de ser tão brilhante como a primeira.
Obrigada pela visita e pelo abraço que retribuo a ti e à Vanda.
Meu caro "Chedre"
Cobardia é palavra que não figura no teu dicionário. Eu e Vanda estamos bem. Estamos juntos e somos felizes, logo estamos bem - não há silogismo mais simples que este de felicidade.
No que diz respeito aos concursos, ficamos, novamente, à espera pelas próximas colocações.
As minhas lides académicas aproximam-se de uma nova fase, mais complicada mas que será ultrapassada, apesar de, confesso, a cada ano que passa, sentir-me cada vez mais desiludido com a minha aposta na Educação.
Um grande abraço
Compreendo-te tão bem! Mas não percas a esperança. Tu e a Vanda.
Obrigada pela ternura do "chedre".
Um abraço
Minha cara MPS
Saúdo o regresso do chedre à sua urzeira.
É sinal de que vamos continuar a ser presenteados com a habitual riqueza dos seus textos.
Um abraço desde a Raia
Chanesco
Quanta gentileza, a sua. Ricos textos são os seus, que fui lendo, mas sem alma para deixar registo.
Um abraço
Passei para te dizer que deixei resposta l� no sophia. Espero mais um post.Anima-te e vai continuando.
Voltarei para ler novo post.
Beijinhos
Não consigo ler o post que me recomendaste. Há erro!
Beijinhos
Ando um pouco afastado do mundo dos blogues, e por coisas e loisas, quase nada nem ninguém visito.
Hoje, impelido pelo destino aqui chegado, constato o seu apreciado e sentido regresso à blogosfera, que saúdo veementemente.
Bem-haja, pela falta que nos fazia. Tenho, agora, motivos para visitar os amigos mais frequentemente. Um retorno que saúdo efusivamente.
Bem-haja o Jofre pelas suas, sempre, tão generosas palavras!
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