02/04/2011

QUARESMA, VIEIRA E POLÍTICOS

Quem sou eu? Isto se deve perguntar a si mesmo um ministro (...).Eu sou um desembargador da casa da suplicação, dos agravos, do paço. Sou um procurador da coroa. Sou um chanceler-mor. Sou um regedor da justiça. Sou um conselheiro de Estado, da guerra, do ultramar, dos três estados. Sou um vedor da fazenda. Sou um presidente da câmara do paço, da mesa da consciência. Sou um secretário de Estado, das mercês, do expediente. Sou um inquisidor. Sou um deputado, sou um bispo. Sou um governador de bispado, etc. Bem está, já temos o ofício: mas o meu escrúpulo, ou a minha admiração, não está no ofício, senão no um. Tendes um só desses ofícios, ou tendes muitos? Há sujeitos na nossa corte que têm lugar em três e quatro, que têm seis, que têm oito, que têm dez ofícios. Este ministro universal, não pergunto como vive, nem quando vive. Não pergunto como acode a suas obrigações, nem quando acode a elas. Só pergunto como se confessa (...). Como se hão-de ajuntar em um só homem, ou se hão-de confundir nele tantos ofícios? Se um mestre com carta de examinação dá má conta de um ofício mecânico, um homem (que muitas vezes não chegou a ser obreiro) como há-de dar conta de tantos ofícios políticos? E que não faça disto consciência este homem! Que se confesse pela Quaresma, e que continue a servir os mesmos ofícios, ou a servir-se deles depois da Páscoa! Isto me admira! (...)

E com que meios se fazem, e se conseguem todas estas cousas que temos dito? Com um papel, e com muitos papéis, com certidões, com informações, com decretos, com consultas, com despachos, com portarias, com provisões. Não há cousa mais escrupulosa no mundo que papel e pena (...). Eu não sei como não treme a mão a todos os ministros da pena, e muito mais àqueles que sobre um joelho aos pés do rei, recebem os seus oráculos, e os interpretam e estendem. Eles são os que com um advérbio podem limitar ou ampliar as fortunas; eles os que com uma cifra podem adiantar direitos, e atrasar preferências; eles os que com uma palavra podem dar ou tirar peso à balança da justiça (...). Se perguntardes aos gramáticos donde deriva este nome calamidade: calamitas? Responder-vos-ão que de calamo. E que quer dizer calamo? Quer dizer cana e pena; porque as penas antigamente faziam-se de certas canas delgadas. Por sinal que diz Plínio que as melhores do mundo são as da nossa Lusitânia. Esta derivação ainda é mais certa na política que na gramática.


P. António Vieira, Sermão da Terceira Dominga da Quaresma (1655)
in, M.ª Ema Tarracha Ferreira, Os Trinta Sermões do Rosário, ed. Fundação Casa de Bragança, Dezembro de 2010

1 comentário:

Isamar disse...

Um bom sermão, à semelhança de outros, do nosso sapiente Padre António Vieira. Todos os políticos o deviam ler e meditar no que aqui está escrito. É que o desempenho da política deve sê-lo de forma meticulosa, honesta, responsável, imparcial porque é um serviço prestado ao Estado e todos nós fazemos parte dele e sofremos quando as decisões tomadas não são bem poderadas. Assinar direitos e obrigações exige rectidão, respeito por todos aqueles a quem são dirigidos, enfim,exige nobreza de carácter.E já não falo das obrigações quaresmais de que muitos andam arredados,já esqueceram ou fazem tábua rasa.

Bem-haja, amiga!

Abraço