29/12/2007

Passeio Filosófico

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Embora cansadas, porque isto da idade já lhes não permite atravessar, impunemente e a pé, meia cidade, entraram entusiasmadas no Palácio da Ajuda. Queriam ver “A Rússia dos Czares” e relembrar o próprio palácio, morada inconclusa e mal amada dos últimos reis de Portugal.

A exposição, como o nome indica, está vocacionada para mostrar o poder e fá-lo bem devido à qualidade dos objectos expostos: inúmeras pinturas; objectos cerimoniais e do quotidiano e, até, as botas e algumas roupas de Pedro, o Grande. Tudo assevera o fausto da casa real russa e da nobreza a ela associada. Altos painéis dão conta dos principais acontecimentos relacionados com cada um dos czares representados, mas sente-se falta de informação adicional. Fazem falta, por exemplo, pequenas biografias de cada uma das figuras cujo retrato consta da exposição, porque se o nome de Bolkonski nos é familiar da Guerra e Paz, já quase todos os outros não nos dizem nada. E é pena! Fernando António Baptista Pereira, o comissário da exposição, já deu provas de que sabe fazer bem. Porque o não terá feito desta vez?

As duas visitantes demoraram-se bastante na observação de duas pinturas que retratavam, uma, o casamento de Alexandre III e a outra, o de Nicolau II. Que contraste! A primeira é uma obra magistral, vivíssima pelo realismo com que apresenta a enorme catedral repleta de gente que se mostra e mostra o seu poder pelo traje, penteados e jóias. A segunda arrepia por parecer premonitória. O fausto está presente, mas o pintor parece que só quis pintar a decrepitude, fazendo incidir a luz – que se não percebe de onde vem – sobre as rugas dos rostos que a farinha ou o pó-de-arroz não conseguem disfarçar. Era como se ali coubesse todo o arcaísmo e a agonia da Rússia imperial!


2

A visita às salas que o Palácio da Ajuda tem abertas ao público magoou as duas visitantes. Num palácio cheio de janelas, situado numa cidade luminosa como Lisboa, é incompreensível que tudo tenha que ser visto com luz artificial! E tão mal colocada que, em certas salas, quem quiser olhar para os tectos ou, simplesmente, para a parte superior das paredes, fica encandeado e nada pode ver. Elas bem sabem que o sol é má companhia das antiguidades, mas também sabem que há sistemas que, aplicados às janelas, permitem coar a luz solar.

A distância imposta ao observador impede que se vislumbre, sequer, o recheio de muitos dos armários do recheio das salas e a informação disponível peca por escassa. Ou seja: quem não sabe o que é determinada peça ou qual a personalidade representada nos diversos retratos, bustos, etc. continua sem saber. Às vezes, é a simpatia de alguns guias (existentes só para grupos, mas ali presentes mesmo quando não há grupos a quem guiar) que, ouvindo os queixumes dos visitantes, esclarecem um ou outro pormenor. E foram os ouvidos de alguns desses guias que escutaram as reclamações das duas visitantes a quem chocou, além da questão da luz, a caducidade geral do edifício, o desagradável cheiro a mofo mas, sobretudo, as horrendas plantas artificiais espalhadas por todas as salas. Nem no jardim de Inverno se vislumbra uma planta verdadeira, daquelas que têm clorofila e função clorofilina!

A sala de banquetes mostrava a mesa à qual se sentaram tiranos e tiranetes que se aboletam com o sangue dos seus povos e que foram locupletados pelos democratas de Lisboa, tudo em sã harmonia, porque nisto dos negócios o sangue dos outros não é nódoa, é mais-valia, mormente quando se trata de cimeira entre África e Europa!

E quando as duas visitantes se preparavam para entrar na dita sala, uma guia despedia um grupo em Língua Castelhana. A alguém que lhe dirigiu a palavras em Português, ela pediu uma pausa para ser capaz de mudar de idioma porque, desabafou, nem Português nem Castelhano eram a sua língua materna. Qual é, então? Foi a pergunta imediata da mais vivaz das duas visitantes; que era o Francês, e um envergonhado “sou dos invasores”, foi a resposta escutada. “ Que faz aqui, então?” insistiu, curiosa.

Quero estudar o outro lado do Império!
"Nesse caso, suponho que já alguém lhe deve ter falado da infâmia praticada entre nós pelos exércitos de Junot!” Disse, em desabafo, a segunda visitante.
Que não, mas que se ela soubesse do assunto, por favor lhe contasse. A segunda visitante mal tinha começado a falar quando foi interrompida por uma senhora de belo penteado que proferiu doutorais palavras:
“Nós temos que agradecer aos franceses porque vieram trazer a civilização!”
Os olhos arregalados da segunda visitante devem ter sido eloquentes. A doutoral figura virou costas mas a gaulesa pediu-lhe que continuasse a falar. E ela disse do que sabia, e a ouvinte soltou um “oh!” arrepiado quando ouviu dizer que Junot desmembrara o exército nacional e que reunira os nossos melhores soldados e os obrigara a integrar a “Legião Estrangeira” do exército imperial, soldados que iriam combater numa guerra que não era deles e muitos dos quais, sabe Deus quantos, morreram nas estepes geladas da Rússia. A ouvinte, como que a pedir desculpa, dizia: “Mas sabe que Napoleão não queria guerra contra Portugal, a guerra era contra os ingleses…” claro que sabia isso, mas que importavam os motivos se o resultado era o mesmo? Portugal fora invadido, pilhado e, pior que tudo, humilhado! Que diferença fazia se era para combater os ingleses ou não? Aliás, em sua opinião, já que de opinião não passa, Napoleão era um grande cínico porque, sendo filho da revolução, traiu a revolução. Ele cresceu na República e fez-se coroar imperador! Ele afirmava-se libertador dos povos que invadia, mas tratava os países como feudos que concedia a familiares e sequazes! Napoleão só difere de Hitler porque não matou judeus! Aliás, era pior do que Hitler porque, ao menos, Hitler não entrava nos países com promessas de libertação!

A conversa foi longa, mas cordial. A guia despediu-se dizendo: “sabe, não aprendemos nada disso no liceu!” e a segunda visitante retribuiu: “a França começou a limpar-se no séc. XX quando recebeu tantos portugueses que, na sua Pátria, não tinham como sobreviver!”

3

A tarde já ia a meio e as duas visitantes ainda não tinham almoçado. Desceram a Calçada da Ajuda e entraram na primeira tasca que viram aberta. Saciadas, prosseguiram a descida, decididas a encerrar a jornada com um delicioso pastel de Belém. A meio da Calçada, frente ao Picadeiro Real, luzidio automóvel captou a atenção da primeira visitante, agora, caminhante. A discrição nunca foi o seu forte, por isso não se coibiu de dar a volta à antiguidade enquanto pensava em voz alta: “Parece um Saab!"

“Parece-lhe o quê?” ouviu-se dizer a uma voz masculina. “Repare bem”; "Pois, já vi que é um Renault”; “Mas não é um Renault qualquer” “qual é então?” “digo-lhe que veio para fazer concorrência ao Volkswagen” “a qual Volkswagen?” “Diga lá a senhora que está aí tão calada” “Por aquilo que diz deve ser de fins dos anos 40, início dos anos 50, mas olhe que eu não percebo nada de carros” “não percebe mas acertou, este é de 1950. “Então o carro é seu?” insistiu a primeira caminhante “está em meu nome, mas é mais do banco!” “E quanto custa um brinquedo destes?” “Minha senhora, as contas não são para aqui chamadas!” “Ele está todo renovado, deve ter gasto um dinheirão”, e o homem, pouco amigo de números, continuou “a senhora deve ser economista… olhe, na Renault guardam ficheiro de todos os carros vendidos, por isso, com o número de série, consegui mandar fabricar estofos iguais aos originais e também está pintado com a cor de fábrica!” “O senhor anda por aí com ele? Vai a corridas de carros antigos? Quanto consome de gasolina?” “Que importa isso? Eu bem digo que é economista! O que importa é o prazer de o conduzir. Entre e experimente!” “Eu nem carta tenho, mas mesmo que quisesse não cabia lá!” “Entre a senhora!” “Eu não gosto de conduzir, nem sei quantas velocidades tem o carro. Três?” “Não importa, entre para o lugar do passageiro!” Sem saber porquê, a segunda visitante sentiu-se na necessidade de agradar à masculina figura e, gargalhando para dentro, pensou que estava a interpretar uma adaptação invertida da Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen.


Os avanços da tarde que já tinha escondido o sol e a necessidade de regressar a casa puseram fim a esta cena de comédia. As duas caminhantes tiveram que prescindir do pastel de Belém porque, em dia de Benfica-Belenenses, a bicha era de susto. A gargalhada foi companhia do regresso.

Epílogo

O português parolo (incapaz de fazer a destrinça entre as jóias da família e a fancaria lustrosa), o português basbaque (para quem é ouro tudo aquilo que vem de fora, mesmo que de fora venha a destruição e a miséria) e o português perdulário (que gasta o que não tem, de preferência adquirindo no estrangeiro): eis a súmula deste autêntico passeio filosófico aos defeitos nacionais. Uma das amigas chegou a casa e releu a última página de A Ilustre Casa de Ramires para se irmanar com Eça na descrição dos vícios nacionais e, mesmo assim, encontrar motivos para amar profundamente a Pátria e o seu povo. Somos, de facto, Gonçalo Mendes Ramires!

4 comentários:

Porca da Vila disse...

Adorei o passeio. Pena que não tenha sido mesmo rematado com uns pastéis de Belém! ['Joaninha', era como se chamava ao Renault 4cv]

Quero desejar-lhe um Bom Ano Novo. Que o 2008 traga mais paz, saúde e alegria do que o 2007 que logo se acaba.

Um Xi Muito Grande

MPS disse...

Caríssima PV

Consigo é sempre a aprender!

Obrigada pelos seus votos. E que o 2008 que, apesar de redondo será bissexto, lhe franqueie a concretização dos seus anseios.

Um abraço forte

Isamar disse...

Por falta de tempo, não li o passeio mas cá voltarei porque não quero perder a oporetunidade de visitar um palácio.
Beijinhossss

MPS disse...

Sophiamar

Temo que fique decepcionada!

Um abraço