
Camilo Castelo Branco tem um ódio de estimação: o Marquês de Pombal. Por alturas do centenário da sua morte, em que se organizaram grandes comemorações com particular empenho dos republicanos, Camilo, no melhor do seu estilo eloquente e verrinoso, traçou-lhe o retrato. Transcrevo algumas passagens do final da obra.
(Capa da 4.ª edição, de 1943, revista pelo Dr. Augusto César Pires de Lima)
O rei estava a expirar, quando o Marquês foi demitido de um modo original. Saiu-lhe o cardeal da Cunha ao salão da entrada, e disse-lhe: V. Ex.ª pode retirar-se do paço, onde já não tem que fazer. A intimação brutal partia de um homem que o Marquês elevara depois de o ter humilhado a vilíssimas condescendências. O cardeal vingava-se. – Ponha-se na rua! E depois o proscrito assanhado vingava-se do cardeal: - que ele votara pela morte dos meninos da Palhavã, que ficara com a baixela da casa de Aveiro sem pagar. «Ah! Ele é isso? O ladrão das pratas disse que fui eu que as roubei? Então deixa estar que eu já te arranjo, patife!» Supremos biltres, os dois ministros! (P. 243)
(…)
O Marquês deixara o povo na sua velha miséria bestial, e o fidalgo na sua arrogante imbecilidade – mas povo e nobreza sem vislumbres de dignidade. A opressão, um longo sofrimento são os maiores aviltadores da alma. O povo beijava a fímbria do hábito andrajoso de Fr. Miguel da Anunciação, que saía trôpego e cego do cárcere de Pedroiços. Os Távoras aceitavam comandâncias de tropas, e o marquês de Alorna esquivou-se a aparecer na côrte sem que a sua augusta senhora e rainha o ilibasse da mancha de conspirar contra seu augusto senhor e rei D. José. O Marquês não tinha que temer-se da ira do povo nem da honra da nobreza. O despotismo embrutecera-os todos em vinte e sete anos de terror, de tristeza, de uma desconsolação profunda, que se revela na paralisação da jovialidade popular daquele longo período. Durante o reinado de D. José I não houve uma festa nacional (…). A inauguração da estátua equestre foi ainda um violento assalto aos haveres do comércio, quebrantado pelas Companhias, e à classe dos operários, espoliados pela rapacidade do correeiro (1), uma das trombas absorventes do Marquês. (p 251-252)
(…)
A História, para vingar a Justiça, levantou um patíbulo a esse infame imortal, e a democracia engrinaldou-lhe o cadafalso em altar, volvido um século. Há muito que recear da doblez de tais sacerdotes. A Liberdade, essa então não tem nada que esperar dêstes seus filhos bastardos. Ao passar pelo monumento ao Marquês, que vai erigir-se, a Justiça há-de procurar nas praças de Lisboa a estátua do conde de Basto; e, não a encontrando, perguntará se as fôrcas da Cordoaria e de Belém eram mais necessárias que as fôrcas do Cais-do-Tôjo e da Praça-Nova ao progresso do género humano. (p. 264)
S. Miguel de Seide, 31 de Maio de 1882
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(1) O juiz do povo Manuel José Gonçalves