Costumo ensinar isto aos meus alunos: na democracia existe o primado da lei. Nas ditaduras, a lei é o arbítrio do chefe. A partir de agora, poderei ler-lhes o seguinte excerto de As Benevolentes de Jonathan Littell:


[Thomas] Expusera-me uma vez em termos luminosos o princípio do funcionamento do sistema (devia ter sido em 1939, ou talvez até nos finais de 1938, por ocasião dos conflitos internos que tinham sacudido o movimento depois da kristallnacht): «Que as ordens continuem a ser vagas, é normal, até qualquer coisa de deliberado, e que decorre da própria lógica do Führerprinzip. Compete ao destinatário reconhecer as intenções do dispensador e agir em consequência. Os que insistem querendo ter ordens claras ou medidas legislativas não compreenderam que é a vontade do chefe e não as suas ordens o que conta, e que compete ao receptor das ordens saber decifrar e até antecipar essa vontade. Aquele que sabe agir assim é um excelente nacional-socialista, e nunca lhe hão-de censurar o seu excesso de zelo, embora possa cometer erros (…).» (p.499)
A obra As Benevolentes é um murro no estômago. Merecidamente, conquistou o prémio Goncourt, apesar de ser uma primeira obra. Nenhum aspecto do nazismo, dos mais horrendos aos mais desconcertantes, ficou de fora do escrutínio do autor. Da meticulosidade com que se estuda quem é judeu de sangue ou, simplesmente, adoptou a religião no cadinho de povos que é o Cáucaso; da justificação da perseguição aos judeus (os únicos verdadeiros inimigos porque são os únicos que permanecem racialmente puros e bastaria deixar dois vivos para, cinquenta anos depois, o problema voltar a existir) às dissertações sobre música, arte e literatura (afinal, havia nazis que liam Kafka). Confesso, no entanto, que o mais desconcertante para mim foi ler a deturpação dos princípios essenciais da grande filosofia alemã. Fica, aqui, a dissertação sobre Kant.
Eichmann continuava: «O imperativo [categórico], tal como o compreendo, diz: O princípio da minha vontade individual deve ser tal que possa tornar-se o princípio da Lei moral. Agindo, o homem legisla.» Limpei a boca: «Creio que estou a ver onde quer chegar. Pergunta-se se o nosso trabalho está de acordo com o Imperativo Kantiano.» -«Não é bem isso. Mas um dos meus amigos, que se interessa também ele por este género de questões, afirma que em tempo de guerra, em virtude se você quiser do estado de excepção causado pelo perigo, o Imperativo Kantiano fica suspenso, porque bem entendido, aquilo que desejamos fazer ao inimigo não desejamos que o inimigo no-lo faça, e portanto o que fazemos não pode tornar-se base de uma lei geral. É a opinião dele, claro está. Ora, pelo meu lado, eu sinto que ele não tem razão (…) mas ainda não encontrei um argumento imparável que lhe prove que ele está errado.» - «Apesar de tudo, é bastante simples, penso eu. Todos convimos em que num Estado nacional-socialista o fundamento último da lei positiva é a vontade do Führer. Trata-se do princípio bem conhecido: Führerworte haben Gesetzeskraft. Bem entendido, reconhecemos na prática que o Führer não pode ocupar-se de tudo e que por isso outros devem também agir e legislar em seu nome. Em princípio, esta ideia devia ser alargada a todo o Volk. Foi assim que o Dr. Frank, no seu tratado de direito constitucional, alargou a definição do Führer Prinzip nos seguintes termos: Agi de maneira a que o Führer, se conhecesse a vossa acção, a aprovasse. Não há qualquer contradição entre este princípio e o Imperativo de Kant.» (…) «Todo o direito deve assentar num fundamento. Historicamente, este foi sempre uma ficção ou uma abstracção: Deus, o Rei ou o Povo. O grande avanço que fizemos foi fundar o conceito jurídico de Nação sobre qualquer coisa de concreto e de inalienável; o Volk, cuja vontade colectiva se exprime através do Führer que o representa.» (pp. 515, 516)
O interlocutor de Eichmann é Max Aue, simultaneamente narrador e protagonista deste livro em que só a história pessoal dessa figura é ficção. Obra de leitura imprescindível que impressiona pelo rigor histórico, pela minúcia e pela capacidade de nos conduzir ao mais fundo horror humano. Ao contrário de Dante na descida ao Inferno, aqui é o próprio verdugo quem nos orienta os passos e nos explica tudo.