30/12/2006

Tiro nos miolos

Abraão estendeu a mão e agarrou a faca, para sacrificar o próprio filho. Mas, do céu, o mensageiro do Senhor chamou por ele: “Abraão! Abraão! (…) E Deus disse-lhe: “Não levantes a mão contra o menino; não lhe faças nenhum mal.(…)Abraão voltou-se e viu atrás de si um cordeiro que estava preso pelos chifres a um arbusto. Foi buscá-lo e ofereceu-o em sacrifício, em lugar do seu filho. Génesis, 22, 10-13

Todos conhecemos esta história que vem narrada no primeiro dos livros da Bíblia. Para os muçulmanos, que também entendem Abraão como seu fundador, este acontecimento transformou-se numa festa importante: a do Aid El Quebir que se celebra, anualmente, após o Ramadão, sendo a festa do sacrifício ou do cordeiro.

Dando cumprimento a uma sentença iníqua, o governo iraquiano enforcou, hoje, Saddam Hussein. Dificilmente poderia haver decisão mais estúpida: a festa do Aid El Quebir coincidirá, este ano, com a nossa passagem de ano! (1)


Este não é um tiro no pé, é um tiro nos miolos! Pode argumentar-se que foi uma decisão de muçulmanos, mas todos sabemos que ela só aconteceu devido à invasão ocidental do Iraque. E, embora haja iraquianos a comprazerem-se com a morte do seu tirano, muitos outros milhões por todo o mundo entenderão o acontecimento como intromissão dos cristãos em assuntos e terras islâmicos. Apesar de detestado por quase todos os muçulmanos do mundo, na sua morte, Saddam transformar-se-á em pretexto para agudizar as tensões religiosas do nosso tempo. Quem decidiu a sua morte e a data da execução tinha obrigação de pensar em tudo isto!

Reli, hoje, estas palavras que o ismaelita Faranaz Keshavjee publicou na véspera de Natal:


Já tinha ouvido o Aga Khan, o Imã dos Ismailitas, dizer numa entrevista recente que não se pode pensar em choque de religiões quando existe tanto em comum entre as religiões de Abraão. De resto, também o sr. cardeal-patriarca Dom José Policarpo recentemente o disse, que há muito mais convergências do que divergências nestas tradições religiosas. Agora, reflectindo sobre o que fiquei a conhecer, compreendo melhor o que isto quer dizer.Jesus é para os muçulmanos não só um Profeta mas também um Guia Espiritual que se demarcou de muitos outros tanto na forma como o Alcorão o descreve, enquanto um ayat (sinal) de Deus, mas também como um exemplo a seguir, na forma como os Evangelhos Muçulmanos proporcionaram o conhecimento sobre Jesus e moldaram a espiritualidade nas várias civilizações islâmicas. Jesus surge no Alcorão e nos Evangelhos (ditos) Muçulmanos como o Profeta do Amor; o Guia das virtudes cardinais: a Paciência, a Humildade, a Renúncia ao materialismo, o Silêncio. Jesus também aparece como o "obreiro dos milagres"; o "viajante"; o "arrependido"; o "Redentor". Jesus é para os muçulmanos o Selo dos Santos. Jesus, é o grande Sufi. Jesus também é muçulmano! (…)



Há uma semana, estas palavras pareceram-me uma porta aberta. Hoje, a náusea só me deixou sentir um nó na garganta.

(1) Pelos vistos não fui a única a dar importância à coincidência das datas. No seu editorial do dia 1 de Janeiro no DN, António José Teixeira faz notar isso mesmo.




17/12/2006

Acende-se Jesus

Acenda-se de novo o presépio no mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
Passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
Para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
Como a casca do ovo ao latejar-lhe a vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
Dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumo, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o presépio nas almas,
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

David Mourão Ferreira



Este poema de David Mourão Ferreira tornou-se, desde que o li pela primeira vez, no meu poema de Natal. Ofereço-o a quem me lê, muito embora não seja meu!

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Fui ler o Público depois de ter publicado o post. Um artigo de António Marujo intitulado "Quando Celebrar o Natal é Proibido" deixou-me uma sensação indescritível de mágoa, porque de perda. Transcrevo o início e o fim do artigo que vale a pena ler na íntegra (não há link disponível):

Espanha, Reino Unido e Estados Unidos com polémicas sobre comemorações natalícias para não ofender não-cristãos
Festas de Natal proibidas numa escola em Saragoça (Espanha) para não ofender crentes não-cristãos, empresas que não querem festas natalícias no Reino Unido, árvores de Natal removidas e depois recolocadas no aeroporto de Seattle (EUA) na sequência de polémicas sobre as decorações. O Natal, festa que comemora o nascimento de Jesus Cristo, está a ser limpo da sua raiz, com argumentos como o pluralismo e a laicidade.
(…)
Em Portugal, a Associação República e Laicidade resolveu protestar com a lembrança dos factos históricos que estão na origem do Natal. Em causa está a revista Professores do 1º e 2º Ciclos do Ensino Básico. No seu número de Dezembro, a publicação decidiu apoiar os professores que queiram desenvolver uma "Representação do Nascimento de Jesus". Citando excertos do texto sugerido na revista, a associação pergunta: "Quantos professores estarão habilitados para "trabalhar", para "analisar" e "aprofundar", com as crianças que têm sob a sua tutela pedagógica, as questões que aquele "simples" auto de Natal pode facilmente suscitar?"


Historicamente não me lembro de tal esquizofrenia, de tamanha onda suicida! É como se as árvores de uma floresta transformassem os galhos em mãos possantes e se arrancassem a si próprias pela raíz! Para tal mundo nem um "rico enterro" se pode augurar!

11/12/2006

O mestre e os discípulos



Li um livro que me foi emprestado. Gosto de ler livros emprestados, simplesmente, porque gosto de ler e comprar todos os livros que a minha ânsia exige seria incomportável. Assim, as bibliotecas e os amigos fazem o favor de permitir que sacie a minha sede. Eles nem sabem o tamanho do meu bem-hajam!

A Senhora Sócrates, de Gerald Messadié é um excelente romance aparentemente policial. Entenda-se: a Senhora Sócrates é Xantipa, esposa do filósofo Sócrates, ateniense do séc. V a.C. O texto é um excelente retrato de Atenas, mãe da democracia, aquela que excluía as mulheres de qualquer participação na vida da pólis. O autor propõe-se narrar toda a história segundo um ponto de vista feminino, ou seja, segundo a interpretação de Xantipa, pessoa de quem, na História, apenas conhecemos o nome. Claro que tudo resulta num relato crítico, mas esclarecido e correcto.

Sócrates foi mestre de Péricles, o homem que consolidou a democracia, nomeadamente acabando com o patronímio que, queiramos ou não, é sempre motivo de distinção social, pela positiva ou pela negativa. Atenas pagou a Péricles acusando-o do roubo de bens da cidade, mesmo usufruindo de todos os edifícios que se construíram a seu mando durante os 15 anos em que, sucessivamente, foi eleito estratego e devendo-lhe a derrota dos persas.


Os tempos a seguir à morte de Péricles foram conturbados: Alcibíades, seu protegido, foi eleito estratego. Alcibíades fora, desde menino, discípulo de Sócrates, nas suas andanças peripatéticas. Era belo, encantou o filósofo e ambos tornaram-se amantes. A par de Alcibíades (no estudo, entenda-se) outros discípulos rodeavam Sócrates, sendo Platão aquele que, no nosso tempo, mais destaque merece. Mas Alcibíades conduziu Atenas a uma guerra imperialista para a qual não tinha vocação. Julgado e condenado, fugiu e foi oferecer-se a Esparta, a maior inimiga da democracia que não perdeu tempo a voltar à guerra e a perpetrar pesadas derrotas a Atenas. Eu só não sei como é que ele, amante do luxo, conseguiu tragar o caldo dos espartanos, mas enfim… A verdade é que não respeitou a hospitalidade e envolveu-se amorosamente com a rainha. Apanhado, fugiu novamente e foi oferecer-se aos persas, ou seja: Alcibíades foi responsável por muitos anos de guerra mas, acima de tudo, é um grande traidor. Ainda regressará a Atenas, mas o seu ser não dá descanso a ninguém. Atenas, cansada da democracia, regressa a uma forma de tirania onde pontuam outros discípulos de Sócrates.

Ora, é aqui que bate o ponto, pois parece-me Gerald Messadié deixa uma acusação a Sócrates: foram os seus ensinamentos e os seus conselhos que formaram estes homens que são traidores ou tiranos ou defensores da tirania. Deixo no ar a mesma questão: é o mestre responsável pelos actos dos seus discípulos?

01/12/2006

1.º de Dezembro

Há algumas décadas que se perdeu, em Portugal, a ideia de povo. O povo iletrado, terceiro elemento do corpo social, foi substituído pela classe média ignara. Nunca Portugal esteve tão em perigo!

Ao longo destes oitocentos e sessenta e três anos de existência, sempre o povo primou por não ceder às pretensões hegemónicas, primeiro de Castela, depois, de Espanha, mesmo que a lei lhe não desse razão, como aconteceu em 1383. O povo pensou bem: os acordos insanos celebrados por um rei vaidoso e fraco não têm que condenar a Pátria. Exerceu, então, aquilo que os iluministas, muito mais tarde, viriam a designar por “direito à revolta”.

Em Santarém, em Junho de 1580 o povo, e só ele, proclamou D. António, Prior do Crato, rei de Portugal. D. Henrique, o cardeal-rei, falecera em Janeiro, velho e doente, acompanhando no destino as vinte e cinco mil mortes nacionais provocadas pela peste. Desde Abril do ano anterior que os pretendentes ao trono escreviam à coroa, a seu rogo, expondo os argumentos em defesa da respectiva pretensão. O velho rei nunca chegou a decidir. Decidiu o povo por ele! Mas o povo não tem armas, nem tácticas militares, nem dinheiro para subornos. Filipe II tinha e serviu-se em abundância!

Recebi de V.M. a três de Agosto e outra de D. Cristóvão em que me diz quanta mercê V.M. deseja fazer a esta sua casa; e só com entender a muita justiça que V.M. tem à sucessão destes reinos eu estava determinada de pôr por ela os filhos, estados e vassalos, com diferente gosto o farei agora que V.M. se mostra disso servido e mais ficando de novo obrigada com esta tão grande mercê e favor que V.M. me fez. (…) Meu filho beija os pés de V.M. Da Vidigueira a 5 de Agosto de 1579
Beija as reais mãos de V.M.
A Condessa da Vidigueira


*
Por último, direis ainda ao Sereníssimo Rei, meu tio, que pois o tenho no lugar de pai, me não negue o de filho primogénito, que me deram Deus e as leis; e considere atentamente nas misérias e calamidades públicas (…), obrigando-me a tomar outro caminho que não o da brandura, amor e liberdade, que proponho (…)

(Carta de Filipe II ao duque de Ossuna, seu embaixador em Portugal, escrita a 24 de Agosto de 1579 )

Nesta carta Filipe II fazia inúmeras promessas que repetirá nas Cortes de Tomar de 1581 em que será aclamado rei: que o herdeiro do trono será educado em Portugal; que teremos administração própria, moeda própria, lei própria, separação de impérios, mas que o império espanhol estaria aberto aos portugueses, enfim… haveria união dinástica mas não de reinos. Este é o pedacinho do cinismo que lhe fica bem a ele mas muito mal à nossa nobreza.

Cedo se constatou que tudo não passava de palavras, saindo à nossa nobreza o tiro pela culatra. Distantes da corte, tornámo-nos periféricos e a nossa nobreza tornou-se provinciana (veja-se Rodrigues Lobo e as “Cortes na Aldeia”). O povo tinha razão, mas a nobreza só se deu conta disso 60 anos mais tarde, porque deixou de ter o que pensava que teria.

Hoje, já o disse, não existe povo. Temos uma classe média que lhe não herdou o ser, e se consome na ânsia de ter. O pecado da nobreza atingiu as classes baixas. Hoje, qual aristocracia de há 623 anos e de há 426 anos, estes nacionais a nada mais aspiram senão a ser espanhóis. Porque lhes invejam o ter e se esquecem da História.

Amo profundamente a minha pátria, mas já não sei se amo os portugueses!