31/12/2009

A SARAMAGO COMO SE DISSESSE CRIME

Eu era indefectível de Saramago.

Aquando do lançamento de Caim gerou-se uma polémica enorme, não em torno da obra (pelos vistos, ninguém a lera), mas em torno das declarações que o autor teceu sobre a Bíblia, apodando-a de “manual de maus costumes”. Dei pouca importância à contenda porque me convenci de que o Saramago da Caminho, já velho e frágil, se deixara enlear pelas manobras publicitárias da capitalista Leya. Erro meu. Saramago não se deixou enlear, ao contrário, pragmaticamente, serviu-se da capacidade publicitária da editora para que muitos mais quisessem ler o seu livro, tornando a mensagem mais eficaz.

Li toda a obra do autor e reconheço-lhe a rara capacidade de ter escrito duas obras-primas que são o Memorial do Convento e o Ensaio sobre a Cegueira e uma quase obra-prima, o Todos os Nomes. Desculpei-lhe os actos falhados de O Homem Duplicado e de A Caverna, enterneci-me com o Evangelho Segundo Jesus Cristo e com O Ano da Morte de Ricardo Reis e agradeci-lhe o tanto que me ensinou sobre a vida do camponês alentejano no Levantado do Chão.

Agora li Caim, nome de uma personagem Bíblica que Saramago aproveita e a quem, na sua liberdade criativa, inventa uma biografia, levando-o a passear-se por episódios do Génesis e do Êxodo. Identificando-se com o protagonista, Saramago faz de Caim o agente concretizador da sua utopia. Caim é Saramago e Saramago é a descrença.

As utopias são filhas do tempo, deixando-o transparecer mas, no fundo, trazem com elas a crença de que o ser humano é capaz de construir um futuro que seja perfeito. Onde encaixa, então, o pessimista Saramago na ideia de utopia? Encaixa perfeitamente, se aceitarmos que existem utopias negras, aquelas que pressupõem o extermínio de tudo quanto possa contribuir para a sua não concretização, que vociferam contra a violência quando é praticada pelos outros, mas instigam à sua prática se for para atingir os objectivos que almejam. Existem utopias destas e a de Saramago nem sequer tem o mérito de ser a primeira!

No Memorial do Convento associei-me a Saramago no nojo contra os autos-de-fé e a profunda hipocrisia do braço condenador. Em Caim percebi que Saramago não é contra os autos-de-fé, que não chora a morte pelo desperdício da vida – de qualquer vida – ele apenas se irrita por não ser a sua, a mão do carrasco e o seu motivo, o motivo da condenação. As vítimas seriam as mesmas e muitas mais!

A obra é um manifesto anti-semita na versão de anti-judaísmo e, não vá algum leitor deixar escapar a filosofia, o autor semeia juízos desses por toda a parte, nem sequer falhando a associação de episódios bíblicos com a leitura que faz da actual situação do país que é Israel.

Saramago, porém, não se satisfaz com o sangue dos judeus. A ele, só o sangue de todos os crentes o saciará e nisso se consubstancia a sua utopia. Antes de passar a ela, devo referir a ideia de mulher que o autor deixa transparecer: lascívia, nada mais que lascívia. De nenhuma das mulheres referidas sai uma ideia, uma palavra que marque; apenas a volúpia da sua entrega consciente ao corpo de Caim, para já não falar de Eva que se serviu da fraqueza da carne do querubim, guardião do jardim do Éden, para conseguir iludir o castigo de Deus e obter alimentos (e da repugnância que é a sugestão de que a espada de fogo do querubim é, afinal, o seu falo).

Como já disse, Saramago põe Caim a percorrer alguns episódios dos dois primeiros livros da Bíblia. Logo no início, Caim mata Abel porque não pode matar a Deus; mais adiante, será Caim a segurar o braço de Abraão quando este se preparava para sacrificar Isaac e o mesmo Caim instila o germe da descrença no patriarca, ao dizer-lhe que Deus foi cruel por não ter poupado os habitantes puros de Sodoma: as crianças! Sodomitas com filhos! Saramago tem de explicar o prodígio! À medida que Caim percorre os episódios bíblicos vai-se convencendo da suprema maldade de Deus e, quando chega à narrativa da construção da Arca da Aliança por Noé, toma uma decisão: se não pode matar Deus, matará todos os crentes, os únicos que Deus salvara do dilúvio. É por suas mãos que mata cada um dos filhos de Noé; é por suas mãos que mata cada uma das noras de Noé com quem se deitara e que estavam grávidas de si, tão grávidas como a mulher de Noé que também quis dormir com este Caim inventado por Saramago e este Caim-Saramago, que não cessa de chorar os filhos improváveis dos sodomitas, não hesita em matar as crianças que ainda não nasceram porque cometeram o supremo crime de terem sido geradas no ventre de gente obediente a Deus. Caim-Saramago só não mata Noé porque quer que seja ele o instrumento da sua vitória definitiva sobre Deus, obrigando-o ao suicídio.

Saramago salva Caim e, presume-se, será este assassino o primeiro habitante da sua utopia. Quem leu a obra, há-de entender a razão de ser do título que dei a este artigo.

Na classificação pessoalíssima que faço dos livros, merecidamente, arrumarei Caim ao lado do Mein Kampf. Não citei passagens de Caim pelo mesmo motivo que, a não ser no estrito cumprimento do dever profissional, me recuso a citar Hitler.

Eu era indefectível de Saramago!

01/12/2009

1640 e mais Fialho

Esta manhã, de nevoeiro e chuva, está de feição para nos trazer o Encoberto. Verdade, verdadinha, ele já chegou na pessoa de D. João IV. Quem o afirma é o jesuíta Padre António Vieira, e eu acredito mais nele do que em mim própria (será que a sanha antijesuítica se deve à lucidez dos seus membros?).

Volvidos 369 anos sobre a manhã refundadora da liberdade pátria em 1640 (outras existiram!)que povo somos nós? Seguidores acríticos da propaganda republicana que repetimos como papagaios, sem lhe conhecer a origem, atiramos mancheias de lama sobre 270 anos de História, o tempo da IV dinastia. À História de Portugal exigimos que cumpra a impossibilidade de se manter eternamente no apogeu, enquanto todos aceitamos a inevitabilidade da queda dos impérios, em sinal do devir histórico. E que fazemos por nós, para não soçobrarmos de todo? Em vez de delinearmos o futuro, atiramo-nos como cães raivosos a quem nos não dá a vida de lordes a que julgamos ter direito. Lá está: "a quem nos não dá", como se não fosse obrigação de cada um suar para conseguir o próprio sustento. Acusamos a Pátria da quimera sebastianista e não reconhecemos nesse "não nos dá" o nosso contributo pessoal para a alimentar. Acusamos todo o mundo, menos a nós.

É muito interessante este trecho do Fialho:


Como se todos tivessem nascido para destinos de príncipes, o menor contratempo desilude esses inermes (...). À preguiça que lhes deu o clima, juntam o fatalismo sorna que a tradição histórica lhes deu, e a cobardia física, vinda da dependência estrangeira e da esmoplante miséria em que Portugal tem vivido, desde o senhor D. João IV. Nenhum país possui, sob esse ponto de vista, mais autómatos. A iniciativa particular escandaliza a nossa inércia. Qualquer vontade medianamente enérgica nos faz medo E daqui dois males graves. O primeiro é aguardarmos toda a vida, por um fundo sebastiânico da raça, esse protector misterioso que numa manhã de névoa há-de vir pôr-nos a mesa, arranjar-nos o emprego, mobilar-nos a casa, casr-nos rico, e que não vindo nunca, constantemente nos impede de ganhar a vida por um trabalho sólido e higiénico. O segundo é estarmos aptos a sofrer constantemente o jugo dum subalterno audaz que qualquer golpe de mão leve ao pináculo, e que uma vez sagrado chefe, chicoteie a seu gosto a caterva de humildes pulhas que nós somos. Estes dois males ponte-vistam a história de todas as nossas misérias e de todas as nossas subserviências, internas ou externas, quaisquer que sejam (...).

E o que mais confrange é esta abdicação, no Estado como no indivíduo, ser feita de indolência estúpida, de desgoverno insólito, de falta de brio cívico. Não nos cerceia a miséria filha dum estancamento completo de recursos; cerceia-nos o desleixo, derivante dum descaminho de força, e de uma aplicação viciada e de predilecções e faculdades. (...) O resultado é este:em cima, o País gozado por dez ou doze charlatães, de parceria com dez ou doze bandidos, o todo fazendo permutaç~oes d'infâmias e jigajogas de negociatas, que lhes permite aguentarem-se alguns meses mais no tombadilho; em baixo a massa avulsa, morrinhenta, sórdida, sem força, desiludida de tudo, irrespeitosa de tudo, insultando-se como os cães, vendo passar as afrontas indiferente, e deixando-se cair alfim no próprio vómito, onde a letargia a açovaca, té que uma chicotada nova a faça outra vez estrebuchar!

(...)De sorte que o salve-se quem puder não deve exprimir-se no momento actual, por este grito: «quem nos livra dos ingleses!» mas por este outro - quem nos livra de nós mesmos!

In: Os Gatos, 31 de Agosto de 1890


Em 2009 damos por nós um vintém, ou vendemo-nos por um vintém?